Abençoa estes pés que pisaram a terra

Ana Casilas
P-alavras
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9 min readApr 16, 2016
The Wild Unknown Tarot

Dava-se conta, agora, de que era a primeira vez que visitava a praia à noite, desde que se mudara, havia pouco, para Florianópolis. Afoita, pisava o caminho que repousava por sob os restos de mata atlântica e sentia espalhar em seu corpo uma centelha de eletricidade causada pela frieza da areia. Àquela hora, a trilha parecia-lhe ainda mais longa, dado que as árvores ocultassem-se em sombras disformes e o chilreado dos animais encobertos na penumbra preenchesse os espaços entre a areia e a copa das árvores. Antes de chegar às dunas, teria de percorrer ainda toda aquela estreita vereda, ladeada por pequenas encostas de areia de onde erguiam-se, por toda parte e densamente, árvores perfiladas cujas sombras revelavam destinos cruéis.

Pensava, inutilmente, que o resto do caminho se tornaria menos penoso assim que vencesse aquele primeiro trecho, assim que galgasse o topo do pequeno vale de areia que antecedia a praia. Trôpega, meio a olhos fechados, lançou-se na pequena subida sem olhar pra frente, mirando seus pés e somente eles, parando apenas quando já descia o primeiro declive de duna. Estar ali contrariava todos os seus instintos e seus membros pareciam gritar, retesados, para que voltasse. O cheiro do mar já lhe assaltava as narinas, antecipando o horror do que estava prestes a fazer. Nunca poderia ter imaginado, ao acordar naquela manhã inabalavelmente comum, os rumos que a levariam até ali.

Com efeito, não fosse pelo incidente da janela, tudo teria se passado sacramente ritual: o uniforme amassado, os cabelos em desalinho, engole um pedaço de pão e vai, etc. Mesmo enquanto subira a longa rua de paralelepípedos escuros, nada lhe tinha ocorrido além do leve sobressalto ao ver um portão abrir em hora tão adiantada. Naquele horário, o único em que por ali atravessava, aquela rua que acumulava horas depositadas era deserta como um fosso. Assim, não fora sem uma pontada de surpresa que notara, já perto de seu destino, os braços escancarados de uma pequena janela de madeira barata.

Eles pertenciam a uma casa igualmente pequena, inteira construída com tábuas já gastas, cuja cor acinzentada era o resultado dos anos de chuva intensa e baixa manutenção. À noite, a luz incandescente que escapava pelas frestas da madeira deixava entrever os sulcos apodrecidos e os insetos que roíam o chão. Durante o dia, no entanto, portas e janelas cerradas, nenhum sinal da gente que ali habitava. Por isso mesmo, mais estranho lhe parecia, agora, que tivesse dado com aquela fresta aberta ao raiar do manhã, a cidade ainda adormecida. Agora, enquanto fitava, assustada, os pequenos arbustos pantanosos que a separavam da praia, parecia-lhe inescapável que o dia tivesse começado daquela forma. Não fosse o pânico que sentia, estaria irritada consigo mesmo por não ter decifrado, então, o presságio que escondia o rosto que lhe fitara das janelas.

A velha já a mirava desde longe, embora não se possa dizer que entendia o que via. Seus pequenos olhos escuros acompanhavam, anônimos, os mais suaves movimentos de Ana, o chispado da boca reprovando de forma ininteligível qualquer detalhe. Trazia o semblante irritado, como a quem já foi dado conhecer de tudo. Os cabelos grisalhos caiam em desalinho pelo ombro ossudo que uma velha e puída camisola tentava esconder, as mãos grossas e enrugadas seguravam o batente a fim de sustentar aquele pequeno corpo na altura da janela. Tudo isso Ana percebia com o canto dos olhos, sua atenção deslocada para qualquer incidente menos memorável.

Tão desatenta costumava caminhar, não percebeu que a velha lhe dirigia murmúrios entre os dentes. Foi só quando esta repetiu mais alto o que havia dito que Ana parou de chofre, virando-se pra trás num salto, seu olhar encontrando a outra uma fração de segundo apenas. A velha fora removida dali por uma filha diligente, deixando diante de Ana somente o vão de um dos lados da janela e a ferida daquele conselho, cujas palavras tão ofensivas e rápidas já começava a esquecer, duvidando mesmo que as tivesse compreendido, em primeiro lugar.

As palavras desconhecidas lhe causavam grande impressão. Era incapaz de relembrá-las, se quisesse, mas não conseguia disfarçar o sentimento de vergonha que em si haviam provocado. Durante todo o resto do dia, estaria com elas, o peso de seu contorno sobre os ombros, incapaz de discernir seu verdadeiro formato, sumindo e apagando, as palavras jogavam com ela um jogo. Adivinhava-as, ao horror do que teria sido dito, as profecias que cabiam em poucas linhas. Experimentava-as, primeiro na pele, depois no gosto da saliva. Salivava enquanto alcançava o ônibus, salivaria ainda depois, mais rapidamente, antecipando os pequenos feitiços a tomar-lhe os órgãos, primeiro o estômago, num desalinho anatômico.

Mas havia um momento verdadeiramente mágico naquele trajeto diário, no instante exato em que o ônibus subia uma encosta elevada, feita de concreto, e lá de baixo, daquela longa BR que margeava casebres de madeira e riachos de esgoto aberto, emergia a promessa do mar ladeando o vale sinuoso tornado cinza, aquele tributo de asfalto à grandeza humana, força monumental que podia desfazer praias e planícies, reconstruindo o próprio relevo, afastando o oceano, direcionando as matas. Cirúrgico. Escavar montanhas. Construir túneis. O demiurgo do concreto. A geodésica da rodovia por onda passariam em grande velocidade, vislumbrando a vitória da própria espécie, o triunfo dos mais adaptados.

Talvez fosse o ângulo com que subiam a inclinação do arco, mera engenharia matemática, talvez fosse Deus que nascia em todas as coisas pela manhã, mas havia um momento verdadeiramente mágico naquele trajeto diário, no instante exato em que o ônibus subia uma encosta elevada, feita de concreto, e lá de baixo emergia a promessa do mar, reluzindo àquela hora, pequenos fragmentos geométricos. O mar não era azul, como nunca é, nem indivisível, mas feito de pequenos pedaços fractais, poliédricos encaixados desordenadamente, e a luz lhes batia como num espelho, irradiada em todas as direções. Há sempre qualquer coisa de mágico na maneira como a luz se encaixa nos objetos, nas janelas, nas gotas de água que se liquefazem nos espelhos. Há sempre qualquer coisa de linguagem, qualquer segredo que elas escancaram, e a luz que ali irradiava, naquele preciso instante, parecia rir-se das ruínas humanas, consciente de que em si guardava a eternidade proibida aos homens, ainda que o mar estivesse (momentaneamente) empurrado pelo aterramento rodoviário.

Por isso, quando ali passaram, Ana sentiu-se curada. Não saberia explicar de que maneira poderia curar-se de uma doença que desconhecia, e penso que a digo curada por ser-me impossível penetrar no incognoscível das suas experiências sensoriais. O que Ana sentiu jaz consigo, ainda hoje, em razão desta impossibilidade de descrever os complexos fenômenos da alma. O que posso oferecer são conjecturas. Naquele momento, o feitiço da velha interrompeu seu curso, exorcizado pelo gosto da ressaca.

O pequeno milagre acontecera e Ana salvava-se sem saber. Somente por essa razão o dia seguiria o seu curso. Ana, seduzida que estava pelas praias e encostas insulares, inconsciente dos perigos que corria, esteve despreocupada durante toda a tarde. Percorreu as ruas do centro da cidade, aquelas feitas de paralelepípedo e também as outras, divertiu-se com ambulantes, riu-se dos pombos, pegou chuva e depois passou calor, como era comum que se desse. Quando já estava farta, juntou-se à multidão que retornava à casa.

Seguia inerte, desacautelada. Sem dar por conta, colocou-se frente a um longo espelho, onde surgiriam refletidas três figuras femininas. Pouco sei a respeito delas, além da estimativa de suas idades, pois pouco havia para saber. Sei que existiam por tempos distintos, de forma que passado, presente e futuro não significavam nada além de um único instante infinito. Por isso, mesmo a estimativa que posso fazer de suas idades é uma ficção. Apenas posso dizer que eram três, e eram mulheres, e estavam ali, enfileiradas.

Disfarçadas, sua aparência era tediosamente regular. Queriam usar o banheiro. Era tudo que Ana sabia, desapercebida, como de costume, o que também era ridículo. Foi despertada do seu transe cotidiano pela interpelação da mulher mais velha. Não entendeu. O quê? Fitou-lhe os olhos. Estremeceu. Já não a havia visto antes? Não, impressão, desculpe. Ela sorriu, divertida. Havia um brilho em seus olhos. As consortes lhe acompanhavam no riso. Repetiu o que havia dito, as palavras atingindo Ana como um raio. A profecia. A mulher voltava para buscá-la. E ria, como ria, zombeteira. Ainda teve tempo de dizer, entre gargalhadas, que Ana gestava seu filho. E passou a repetir, sempre rindo, o destino de Ana, o filho, a morte iminente, o horror e o riso.

Ana rememorava a tudo enquanto cruzava a praia, tomada de escuridão. Chorava. Enlouquecia a cada passo, deixando diminutos rastros de desespero. Pela manhã, eles também haveriam sumido. O mar já não a salvaria, negro que estava, furioso, última testemunha de sua coragem. Silente, ele consentia, abraçando-a com a doçura. Cada vez mais próxima da costa, a memória de Ana ia tornando-se confusa, sobrepondo fatos e fantasias, começava a esquecer-se da profecia, mas a tudo compreendia na pele e na saliva. Tinha ali um encontro marcado, mas com quem? Olhou em redor. Ninguém viria. Se iria morrer louca, como lhe tinham dito, ao menos estaria ali para entender porque, para dizer que não gestaria o filho de ninguém. Morreria louca, mas não covarde. Os rostos do espelho já se apagavam. Ia repetindo para si a ordem dos acontecimentos daquele dia, confundindo-os todos.

Enlouquecera, como a mulher na janela; assim como a velha havia previsto. Parou diante dos rochedos. Os olhos vazios. Não se lembrava mais de nada. Não sabia porque estava ali. Subiu as rochas, por impulso. Pensou em como a areia, os rochedos e o mar eram uma coisa só. Um mistério. Virou-se para três pedras compridas que descansavam atrás de si e disse-lhes, sem titubear, que agora entendia tudo, eram elas quem tinham medo, que se escondiam da erosão marítima.

Photographs by Alessandro Puccinelli

Pois vocês tem medo da eternidade, disse. Vocês, que aparecem em espelhos públicos, que zombam da condição humana, que criam filhos e sugerem feitiços, vocês, sabe o que são? Covardes. Covardes, estão diante do mistério e dão-lhe as costas assustadas. Eu não farei parte disso, resolveu, colocando-se em marcha. Adiantou-se para o precipício. Eu não tenho medo das bruxas desta ilha, disse, dessa vez para si mesma, pois Deus nasce em todas as coisas pela manhã. Deu uma última olhada para os rochedos que a espreitavam, desafiadores, virou-se para mim e ainda teve tempo de dizer “Abençoa estes pés que pisaram a terra” antes que meus braços a acolhessem no abraço derradeiro.

Olhei-a com doçura, como sempre, em seus momentos finais. Nada mais soube dela. Apaguei seus rastros na areia, como ela previra, em sua homenagem. Ela estivera certa, a areia, os rochedos e o mar são uma coisa só. Nós guardamos o seu mistério. Quando o sol nascer, não encontrará sangue para secar. A manhã já vem nascendo, e eu aguardo por ela a vida eterna. Por hoje, balançarei as ondas em sua memória, amanhã já não restará nada. Outras como ela virão, com bruxas ou sem bruxas. Nas noites em que a lua se esconde, os pescadores fogem da praia. Outras como ela virão, mas amanhã já não restará nada.

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