O químico amaldiçoado e o composto fantasma

Ana Casilas
P-alavras
Published in
14 min readNov 26, 2016
Michael Carson “Man in blue”

Mesmo no metrô lotado, Jorge sentia o cheiro de formaldeído subindo da ponta dos dedos. Podia suportar as tonturas, as dores de cabeça e as longas horas na bancada do laboratório, mas aquele cheiro de coisa morta realmente o aborrecia, como se fosse, ele mesmo, um cadáver vivo, aprisionado ao destino odorífico de um químico profissional.

Quando chegava em casa, gostava de tirar as meias e cheirá-las por alguns segundos, como se fosse um pacto consigo mesmo de que estava vivo e cheirava como gente viva, o que podia nem sempre ser agradável, mas já era alguma coisa. Ele não sabia, mas já pressentia a saudade que a vida lhe causaria.

Morava num pequeno apartamento, não muito longe da estação, num prédio marrom de esquina, onde dia e noite estouravam os canos das motos no passeio abaixo da janela. O antigo inquilino deixara nas paredes as marcas do crescimento de suas samambaias, mas Jorge não se incomodara em mandar pintá-las porque as plantas tinham sido o único sinal de vida feliz em meio à alvenaria e à infiltração. Eram belas, afinal, as samambaias do velho, e eram enormes, como uma cascata de clorofila sólida na parede do apartamento.

Do antigo manancial, Jorge herdara os rastros do tempo e da umidade, estampados nos veios da parede aberta.

Enquanto cheirava suas meias, ele ouvia os barulhos diários dos vizinhos entrando e saindo e batendo portas e mandando que crianças fossem tomar banho, agora não pai, ah agora sim moleque, eu já mandei, eu sou seu pai etc etc etc. Depois ele esquentava água para fazer café e geralmente era capaz de sincronizar a ebulição do líquido com a chegada da amante do Seu Vizinho, que sempre trazia com ela muitos beijos e ahhs e uhhs que distinguia sob o apito da chaleira. Jorge, então, segurava a xícara quente no silêncio, sozinho no meio do sala, contemplando o odor da cafeína e o alívio de estar sozinho.

Mas aí ele caía no sono, a xícara pendendo de sua mão direita e tudo recomeçava. Abria os olhos e estava de novo num laboratório, dessa vez improvisado, numa cozinha cujas paredes haviam sido derrubadas para acomodar os equipamentos de que precisava. Em cima do pesado tampão de pedra, confundiam-se as vidrarias, ainda sujas, os canos e funis do dia anterior, as amostras, os tubos, os potes etiquetados e o cheiro da acetona que subia da pia molhada. Das gavetas da bancada escapavam papeis, tabelas e lembretes para todas as experiências que ainda precisava realizar. Ao lado dos armários verdes desbotados, luzia um pequeno relógio redondo de prata maciça. Como verdadeiro carrasco, ele marcava horas irrecuperáveis esvaídas em medições e pesagens malsucedidas.

Noite após noite, Jorge abria os olhos do sonho e suspirava, no centro do laboratório, antecipadamente exausto. Expirava pelos poros o sabor de uma resignação hermética, como blocos de concreto expelidos pela boca. Parecia-lhe que dormia, todos os dias, para acordar ali, num extravio de sentido que nem seu arraigado ceticismo podia resolver. Marchava até o canto onde guardava seus diários e debruçava-se sobre eles para descobrir o que fizera na madrugada anterior, o que lhe restava experimentar agora. Logo mais ela chegaria, silenciosa como de costume, e se poria num dos cantos, sentada sobre a bancada, de onde o observaria ainda até o crepúsculo sem dizer palavra. Certa noite fora surpreendido ao descobrir que já somavam três meses desde que fizera a primeira entrada no registro de rotina e por isso havia chorado um soluçar seco, como de cachorro. Agora, passados meses de cárcere onírico, Jorge estava imperturbável no seu destino de coisa.

Kees von Dongen “Loulou naar Kees van Dongen”

Nunca mais sonharia, disso estava certo, nunca nada além dos mesmos laboratórios e dos mesmos ruídos do ofício incessante, até o dia em que cairia morto, súbito, embalsamado, para a decomposição final. Quando esse dia chegasse, imaginava que ela estaria ali ainda, com ele, naquele pacto silencioso, misteriosa como somente uma mulher violeta pode ser. Quem sabe ela levantaria os olhos de gata e com um leve aceno de cabeça lhe concederia um adeus breve, uma espécie de reconhecimento pelos trabalhos prestados. Quem sabe até chorasse um choro tímido, encolhida no canto onde ficava para o observar, os longos cabelos roxos escondendo o púrpura de seus olhos injetados. Quem sabe ali dar-se-ia conta de que o tinha amado durante as madrugadas, no delírio do metanol e do álcool etílico, enquanto buscavam, como falsos deuses, manipular a matéria orgânica. Se ela o tivesse amado, pensava Jorge, ao menos na hora final, então não só a sua morte como a sua vida teriam tido algum significado.

Mas ela não o amava. Não tinha amado em nenhum momento sequer, desde que se pusera cruelmente silenciosa, no canto da bancada, para observá-lo com rigor científico. Talvez nunca tivesse amado ninguém, antes ou depois. Jorge pensava que as coisas sentimentais lhe eram todas insignificantes, como as formigas que ela esmagava com o polegar no azulejo da parede. Por ele Violeta não sentia nem mesmo compaixão, o que é somente outra forma de dizer que não sentia nada, olhando-o à distância, como às formigas, enquanto ele pranteava próximo aos inflamáveis, colocando tudo a perder.

2

Naquela semana, Jorge tivera de fazer horas extras no trabalho para compensar as distrações de cansaço durante a tarde. Certo dia, enquanto baldeava no metrô muito depois da hora habitual, ele percebeu próximo de si um casal excentricamente familiar. O homem de olhos fundos trazia os cabelos negros penteados para trás e um sobretudo bege. Cambaleante, cada movimento seu parecia despropositado, como se das terminações lhe saltassem fios invisíveis. Esses fios, quem os controlava era sua companheira, uma mulher de longos cabelos castanhos desordeiros. Puxava os fios invisíveis como que por diversão e carinho, puxava e soltava, delicada com seus olhos de cão.

No frio da estação vazia, Jorge caminhava a passos arrastados por entre os arcos de concreto, quando o homem do sobretudo o alcançou pela direita, movendo-se naquela dança artificial. Logo à frente deles, a mulher os esperava plácida, como se aquele fora um encontro diversas vezes repetido. Frente a frente, os três se entreolharam um instante antes que o homem perguntasse diretamente à Jorge como se dava o trabalho. Podemos confiar que tudo estará pronto dentro do prazo? Ele perguntou, cortante como seus olhos geométricos. Jorge, confuso, imaginou se aqueles poderiam ser clientes da empresa, mas logo se deu conta de que os clientes da empresa não andariam de metrô e nem teriam com ele tamanho mistério. Não há tempopara fazermos tudo isso de novo, Jorge, dessa vez foi a mulher quem o disse. Concentre-se. O composto estará pronto no prazo?

Talvez fosse o ritmo daquela dança, talvez fosse a memória recuperada de algo nunca esquecido, o fato é que Jorge foi tomado pela sensação delirante de que o interpelavam sobre seus sonhos. Como se o mundo de repente girasse numa espiral acelerada, ele teve vontade de gargalhar, incrédulo diante do absurdo. O casal aguardava dele uma resposta com impaciência, mas Jorge sorria sozinho enquanto via o homem retorcer as mãos e olhar um relógio maciço feito inteiramente de prata. Os ponteiros marcavam as nove horas, ao longe um novo vagão se anunciava na estação, o homem retorcia as mãos e olhava o relógio, quando Jorge vislumbrou, logo abaixo da pulseira prateada, uma mancha violeta.

Atônito, mal se deu conta quando já estava balbuciando frases desconexas, fórmulas químicas atrapalhadas. O homem a tudo ouvia contrariado, balançando a cabeça e as mãos, como se quisesse dizer coisas que não cabiam na língua. Imóvel, a mulher fitava o chão debaixo de si. Quando os levantou, eles já não eram os mesmos. Não há tempo, ela disse, os dentes estalando como o frio da estação. Trabalhe sozinho, mesmo que seja impossível, e não fale a ninguém sobre o que estamos fazendo — foi tudo o que disse antes de subir as escadas para o sereno da noite.

Jean-Guy Dagneau “People”

3

Percorrendo o caminho até o apartamento, Jorge sentia a terra abaixo de si girar em desatino, nauseado enquanto subia os lances de escada. Aquela descoberta ia pouco a pouco tomando-lhe a forma e os sentidos. Ia disposto a sonhar e, então, pesar e medir até que o composto prometido estivesse finalizado por seus próprios esforços, sem mulher Violeta, sem mistério, sem nada. Havia um tom de ameaça inconfundível na forma como a mulher ventríloqua pronunciara a palavra ninguém e Jorge não pensava em descobrir o porquê.

Naquela noite, trabalhou com a determinação esquecida da juventude e dispensou uma frieza ressentida para a mulher violeta que o observou, fielmente, durante todo o amanhecer, curiosa e entristecida, antes de partir. No dia seguinte, acordou somente quando já estava de volta ao laboratório, pesando e medindo o ácido clorídrico sob orientação da chefia. O cansaço que o corroía cortava-lhe o tutano dos ossos, dando-lhe ao rosto um aspecto arsênico.

Na madrugada seguinte, e também nas que a sucederam, Jorge esteve cansado e sozinho, entre um trabalho e outro, esquecido de si e do mundo, abandonado pelos sonhos e pela mulher púrpura, entre a obsessão e o fracasso. Esteve anestesiado, mas são e salvo. Eis que certo dia, nesse estado de coisas, teve um estremecimento quando, numa crise de memória, uma de suas jovens colegas entregou-lhe, em mãos, um condensador na forma de recomendação. Talvez com esse outro método funcione, ela disse, prestativa, as mãos estendidas oferecendo-lhe a vidraria em questão. Soxhlet, um frasco alemão, cilíndrico, centenário; desimportante face àquelas unhas cuidadosamente pintadas de roxo — estendidas e triunfantes, como Violeta.

Vitoriosa, ela ia pouco a pouco se dispersando por todos os espaços, em cada fresta, na placa dos carros, nas roupas, no mercado, ali estavam traços de seu espectro, rastros de uma perseguição atroz. Suas mãos estão manchadas, Jorge. É impossível fugir. Atormentado, o protagonista olhou de relance para o condensador esquecido no canto de sua pilha de experiências. Aquele recipiente respondia suas dúvidas noturnas com uma clareza que ele havia preferido ignorar, enquanto esperantava. Porém, agora que o trabalho das moiras estava debulhado diante de seus olhos, decidiu por esconder o equipamento debaixo da muda de roupas, roubando de um trabalho para dar ao outro.

Jennifer Mehigan, 2016

4

Tal foi o preço pago por Jorge para a continuidade de sua pesquisa secreta.

Renovada, Violeta o observa agora mesmo, estirada na bancada, mais misteriosa do que nunca. É ela quem corta o silêncio com uma combinação usual de palavras: “Eu tenho sido sua aliada, você sabe”. Não, ele não sabe. “Há tanto que você não sabe, Jorge”. Ele suspira, fatigado. “Sei que não deveria estar falando com você”. “E quem foi que disse isso?”. “Sabe, Jorge, sonhos são coisas muito mais perigosas do que você imagina” — ela conclui, a frase pendendo na atmosfera do solvente químico.

Hesitante, ele digere lentamente aquelas palavras antes de encarar Violeta nos olhos selvagens. Ela retribui ao olhar com intensidade antes de dizer: “Você tem certeza de que estamos adormecidos em seu próprio sonho?”. “Tente se lembrar da última vez que sonhou fora deste laboratório, deste trabalho. Olhe ao redor, Jorge, de que parte de seu inconsciente vieram todas essas coisas?”. De costas, apoiada na bancada, um sorriso malicioso desponta em seu rosto ao dizer: Nenhum homem deveria ser tão vazio que não possa sonhar o próprio sonho, Jorge. Talvez seja esse o risco que eu represento, ela diz, quase sussurrando. Lembrar você da liberdade. Tente se lembrar de como você veio parar aqui, e perceberá que a única forma de sair deste laboratório é trabalhando comigo.

5

Violeta tinha razão, havia muito que Jorge não sabia, desde que se lançara à tarefa absurda de extrair compostos desconhecidos em sonhos alheios. Por isso, noite após noite, ela passou a narrar-lhe as fantasias da projeção onírica e os recônditos do inconsciente. Divertia-se, maldosa, com as dúvidas rudimentares de seu aprendiz, que a escutava com olhos semicerrados. Aprendeu, de início, que era possível levar qualquer ferramenta que desejasse para o sonho, desde que fixasse suas imagens no fundo do cérebro consciente.

Em pouco tempo, havia transferido todos os materiais de sua bancada pessoal, na empresa, para o laboratório especial, sendo suficiente para isso que os levasse para casa, fixando neles o olhar durante algumas horas do dia. Mais tarde, aprendeu também a transportar reagentes e soluções, usando a meditação. O trabalho fluía e Jorge comichava por dentro o estupor do sucesso. Estavam cada noite mais próximos e muitas vezes surpreendia Violeta enquanto ela o espiava por cima dos ombros caídos. Ele percebia agora os muitos segredos que a mulher carregava, as dobras do vestido azul que mal escondiam sua pele flamejada, coberta de uma brilhescência sanguínea que tremulava à meia luz. Pensava nela o tempo todo, calculava a distância daquelas pernas roxas intermináveis, acordado ou adormecido, afligia-o a necessidade da separação. Por isso, certo dia, parou de ir ao trabalho e dedicou-se ao sono inteiramente.

Isso se deu pouco antes de o casal finalizar uma reação especialmente demorada e que os deixou muito próximos do resultado desejado. Naquela noite, quando chegou ao laboratório, Jorge foi logo invadido pelo cheiro do âmbar e pela visão da mulher púrpura tecendo uma longa trança. Em pé, ela trazia os olhos enevoados. Sem pausas, disparou: “Não há tempo suficiente”. Jorge fixou os olhos no relógio, eram as nove horas, num relógio redondo de prata maciça. Súbito, lembrou-se do homem de sobretudo e seu relógio de pulso.

- Este é o sonho daquele homem? O homem do relógio de prata? — Jorge indagou, exasperado. — Quem é ele? Onde ele está?

Violeta, serena, trançando os próprios fios, respondeu:

- A questão é quem é você, e onde aquele homem não está.

Ela tinha razão, como de costume, e Jorge é quem demorava tempo demasiado a lembrar-se de sua parte naquele acordo malfadado: retirar do inconsciente do homem a fórmula para obter um composto inédito. Depois de uma série de perguntas, o químico desatinou-se com a sua sorte e, ofendido, quis saber como poderia afinal voltar para os próprios sonhos.

Simples — Violeta respondeu — apenas acorde e vá para aonde quer que você vai quando sai daqui pela manhã.

Para ela, havia muito pouco a que causar espanto, experimentada em assuntos oníricos. “Fazer as perguntas certas pode ser tão perigoso quanto conseguir as respostas erradas”. Para Jorge, porém, havia a tormenta que o atingira, como o mar em ressaca, ao ver-se esmagado entre dois sonhos, o corpo repentinamente sem gravidade. Ele mirou as próprias mãos e imaginou onde estariam as verdadeiras — as outras. Poderia ser que estivessem em franca decomposição, ele não saberia, como não sabia mais da sensação do frio e do calor em sua pele, ou como lhe tocava o incômodo da umidade, o suor nas dobras do pescoço, ou o morno torpor das madrugadas de chuva.

As perguntas vagavam pela sua cabeça, rápidas, inconclusivas, elas se misturavam — como havia consentido, porque chegara até ali, como poderia ir embora. Dessa vez ele repetiu em voz alta, eu preciso ir embora, me faça voltar. Violeta disse que ele precisava de uma porta. Vá para o inferno, ele pensou, cansado de seus enigmas, de tudo aquilo. Eu odeio esse homem, essa porra desse homem. Para criar uma porta num sonho, você precisa mais do que projetar, ela disse, impaciente. Você precisa de um elemento que rompa a ordem e crie, por alguns minutos, uma saída, uma espécie de porta.

Antes que ela continuasse, Jorge soube que Violeta se referia ao composto secreto, o triunfo final que o homem de sobretudo fragmentara e guardara por toda a parte, no seu próprio inconsciente. Quando ela confirmou suas suspeitas, Jorge já abrasava a desconfiança e a traição. Imaginava quais motivos escusos ela teria para fazê-lo ir até o fim e perguntava a si mesmo se não era ela quem o usava, noite após noite, num terrível jogo de mentiras e trapaças.

Alberto Seveso “Tinta + Água”

6

Se não havia remédio, então, ficaria. Os dias e as noites se repetiriam numa sucessão indefinida, marcada apenas pelo tilintar das vidrarias, o repuxo da capela e o cheiro do éter. A cada segundo estavam mais perto de uma substância impossível e o absurdo parecia ir preenchendo os espaços, solidificando partículas suspensas no ar. Os cheiros de substâncias químicas se acumulavam juntamente com o calor nos recipientes, todo o laboratório parecia vibrar e Jorge se convencia de que pulsavam no ritmo dos elétrons que formariam o produto fantasma. Quando estivesse pronto, o pequeno milagre cairia gotejando no erlenmayer, uma gota pequena, desbravadora, despencaria naquele recipiente; e depois dela, outras ainda romperiam o espaço e o limite da matéria: da ideia se faria o líquido.

Sustentava-o a noção de que presenciaria o surgimento de uma molécula fantástica, como o nascimento de uma estrela. Mesmo para um cínico, como ele, aquele acontecimento parecia qualquer coisa de prodigioso. E Jorge, afinal, definhava, em algum lugar, crepitando por dentro um ódio insano a respeito da própria condição. Ele adivinhava a falta que a vida lhe fazia, sobretudo agora que Violeta parecia agigantar-se em formas e odores. Seu corpo roxo trepidava, borbulhando com as misturas químicas, e os quadris se avolumavam no vestido justo, como um convite para o precipício.

Numa noite especialmente quente, ela freou de súbito e fitou-o longamente. Os olhos eram os de sempre, mas pareciam outros, de todo. Lânguida, se aproximou e o enlaçou com firmeza. “OSTRUM ACONITUM”. O mistério revelado. “PURPURA LETALIS”. As palavras eram terríveis, mas os seios fartos. Você nunca me tocou antes, foi o que Jorge murmurou. Ao fundo, o estampido da primeira gota machucava o vidro. Não havia tempo, ela respondeu, agora não há mais nada. A capela não conseguia arrastar os gases púrpura que subiam em profusão da bancada e a pele eterna de Violeta flamulou ainda mais nos braços eriçados do químico amaldiçoado.

Agora, à medida que o composto roxo jorra no erlenmayer, Jorge e Violeta se afogam no suor e no cheiro de âmbar. A testosterona queima no laboratório em chamas e a tensão se intensifica enquanto Jorge encara o futuro, maravilhado e atormentado por tê-los arrastado para o derradeiro final. Em meio a gemidos curtos, ele implora pelo perdão daquela mulher fascinante, que o ignora, como aos insetos. Com as pernas cruzadas atrás de si, ela controla a intensidade dos seus movimentos e diz tortuosa, gargalhante, que agora ele está livre.

7

No dia seguinte, ao raiar da manhã, no centro da cidade, uma pequena comitiva bate na porta de um apartamento de canto, num prédio marrom, próximo da estação de metrô. O zelador os acompanha, com o molho de chave nas mãos. Lá de dentro não se ouve nenhum som. À frente do pequeno grupo, Armando, o chefe do RH, coça as olheiras fundas, guardando as mãos no bolso de um grande sobretudo. Há anos que trabalha naquela empresa, onde se fabricam alvejantes para limpeza pesada, e gosta de considerar a si mesmo como um homem que já viu de tudo. É ele quem dá o sinal para que forcem a entrada.

Já na sala do apartamento, eles encontram os produtos do crime, diversas vidrarias e pequenos maquinários cujo sumiço vinha sendo reportado há meses. Todos estão intactos, sem qualquer marca de uso. Do fundo do corredor, um brilho mórbido emoldura a porta do quarto de dormir. Armando caminha até ela, friamente, porque não tolera atentados contra a propriedade. Antes de entrar, lê o comunicado da empresa que informa a Jorge de sua demissão. Seguro, empurra a maçaneta.

O quarto exala um aroma ocre e a fumaça acumulada no chão lembra um incenso queimado pela morte. No centro da cama, jaz um corpo putrefeito, de um roxo cadavérico intenso. Os braços de Jorge estão estirados e de sua boca fétida purulenta escapam pequenos vermes. Armando, boquiaberto, encara as paredes roxas, manchadas por uma terrível infestação orgânica que cobre todos os móveis e o chão. Ele se dirige até o cadáver e fita o púrpura dos olhos escancarados do funcionário, uma última vez. Armando pensa em Deus, enquanto encerra aqueles olhos violáceos. Chamem o IML, ele ordena.

Agora não há mais nada.

Acônito

Gostou do texto? Então aperte o botão recommend abaixo para que ele possa chegar a mais pessoas ❤

--

--