Um lembrete do Ribeirão da ilha, em Florianópolis, onde o tempo definitivamente passa mais devagar

O tempo, sujeito subjetivo

Ana Casilas
P-alavras
Published in
6 min readMar 24, 2016

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Essa semana me peguei dizendo: “não imaginava ser possível fazer tantas coisas em um dia só”. O tempo que se passou nesses sete dias, de alguma forma, trouxe consigo mais minutos do que eu conhecia, com a pressa de serem preenchidos por ainda outros minutos, encadeados, você tá atrasada, corre, vai.

Por isso mesmo, comecei dizendo: o tempo, sujeito e subjetivo. Não tenho a intenção de ser melodramática, mas foi justamente o tempo (ou melhor dizendo, a compreensão dele) que revolucionou a condição existencial deste último século, e que também esteve presente na revolução político-existencial que foi a teoria marxista, por exemplo. Tem coisa mais louca do que a dimensionalidade relativa do tempo?

Mas o tempo de que falo aqui não tem a pretensão de ser quântico. Quero apenas falar do palpável cotidiano. É possível ter tempo?

Eis um paradoxo: vivi uma semana intensa, mas em cujo tempo coube o tempo de todas as coisas que me eram necessárias. Outras vezes, por muito menos, “não houvera tempo”.

Você não precisa de mim para repetir aquela espécie de lifehack de que “tempo a gente faz”. Eu e você já ouvimos diversos conselhos sobre isso que envolvem palavras como organização, prioridades, etc etc.

E não é que é pode ser verdade?

Como regra, eu detesto ser o tipo de pessoa que confirma uma ideia assim, com potencial para ser universal, uma ideia simples, limpa, clara e incontroversa. Então não foi sem uma certa relutância que me descobri, a mim, um pessoa que acredita ter tempo para (quase) tudo. Descobri, em meio a reflexões atuais, que pelo menos desde que me lembro, sempre estive disponível.

Para me fazer entender, vou exemplificar o que isso significa:

Quando adolescente, sempre estive disponível para fazer os trabalhos da escola. O que não quer dizer que eu não tivesse lá minhas atividades extra-classe, meus compromissos familiares ou que quer que seja, eu tinha, mas tudo seria arranjável: falta-se uma aula, atrasa-se um compromisso, adianta-se algo a mais, etc.

Mais tarde, na faculdade, participei de um grupo de extensão que fazia trabalho(s) voluntário(s).Esses trabalhos podiam envolver reuniões em órgãos do poder judiciário, reuniões para organizar eventos, aulas de minicursos, etc etc. O importante é que eram diversos, frequentes, gratuitos e voluntários. Eles exigiam de mim tempo, compromisso, dedicação, organização, dinheiro. Nunca (ou quase nunca) faltei a esses compromissos, ainda que fossem longe, longos, de menor importância, ou qualquer outra coisa do tipo.

Sem dúvidas, tudo nessas duas experiências foi muito diferente: outra época de vida, outra pessoa, outra cidade, outra organização familiar, outras exigências. Mas se tem uma coisa que parece ter mudado muito pouco é a frustração tremenda que me causa o que vou chamar de indisponibilidade coletiva. Explico: eu tenho tempo, mas ninguém mais tem. Sabe aquele velho diálogo que começa com a pergunta “quando” e que é seguido por “não sei”, “não posso”, “não, nem segunda, nem terça, nem quarta, nem quinta, nem sexta, nem sábado, nem domingo”. Bom, é isso. A pessoa não tem nem um segundo do dia livre, de nenhum dia, não importa que você se ofereça para desmarcar todos os seus compromissos e encontrar com ela na casa dela, não, ela não pode.

Pois é, ela não pode, ninguém mais pode, na verdade. Se você pensar bem, é fantástico que pessoas tão ocupadas estejam ali, na sua frente, convivendo com você todos esses dias. Uma pessoa tão ocupada não deveria ter de estar em algum lugar mais importante, uma hora dessas?

Qualquer pessoa que tenta construir algo no âmbito coletivo entende do que eu tô falando: o projeto era de todo mundo, mas a construção é só sua e de dois ou três que ainda tentam sonhar junto, por enquanto. O voluntariado, para usar a palavra de uma professora querida, é volúvel: ele está extremamente motivado, interessado, apaixonado, engajado, disposto; até a segunda reunião.

E assim nós vamos, construindo como dá aquilo que se consegue, solitariamente buscando o coletivo, sentindo meias saudades, convidando amigos que meio que furam e aqueles que nunca vão, etc e tal. Vamos marcar hein? Muitas saudades suas. Vamos pegar uma praia essa semana? Claro que sim!

O amigo que fura seu convite pra uma praia é a outra face da moeda do colega que desaparece no fim de semana antes da entrega de um trabalho. Pode apostar que semana que vem o tal amigo dirá que sente saudades, é uma vergonha que a gente nunca se encontre na mesma cidade; assim como o colega vai aparecer domingo às 23:45 com sugestões brilhantes pro trabalho do dia seguinte.

Talvez você pense que eu seja inflexível demais, afinal as pessoas têm problemas e a vida é corrida mesmo, tem o trabalho, a família, o(a) namorado(a), os filhos, sei lá, fiquei doente, meu carro quebrou, prova semana que vem, meu cachorro morreu, ia viajar e esqueci, tô grávida… Essas coisas são assim, você me diz. É, pode ser. Essas coisas são assim, eu repito ao responder a terceira mensagem do dia, que pena que você não pode vir pra formatura dessa vez, quem sabe de uma próxima. Não, não tem problema, entendo sim, magina. Também tô com saudade, eu ainda respondo antes de abrir a próxima conversa. Tomara que não seja a fulana cancelando, ufa, não era.

Então, de verdade, não tem problema se você não pôde vir. Eu entendo. Essas coisas são assim. A vida é corrida. Eu entendo mesmo, mas é que eu preciso das pessoas que vão.

Eu poderia concluir esse texto com alguma lição sobre prioridades, sobre ouvir as próprias necessidades, sobre respeitar o tempo do outro, mas eu não vou.

Não vou, porque é óbvio. É claro que imprevistos acontecem, mas também é razoavelmente simples estar ali para as pessoas que te importam, encontrar-se com quem nos faz bem, mostrar interesse pela vida das pessoas que a vida nos trouxe e levou. Pode ser mais fácil ou mais difícil, a depender da vida de cada um, mas é certamente possível, se houver um compromisso sincero.

Porque também é razoavelmente simples criar imprevistos previsíveis, desculpas plausíveis que encobrem motivos ordinários, repetindo à exaustão um “não posso” que, na verdade, é um “não quero”. É simples, porque é também cultural, porque é também conveniente.

Já pensou que perigoso pensar: recebi este convite, mas não vou, porque prefiro estar em outro lugar? Porque estou com preguiça? Porque não gosto tanto assim de passar o tempo com quem me convidou? Pelo amor de Deus, por segurança, convença-se de que não era possível, não tinha jeito, mesmo, espero que você entenda. E se a outra pessoa se desse conta, afinal, de que pra mim, estar ali não era importante? E se ela pudesse perceber que a amizade esgotou ou não engatou? E se ela ficasse livre pra fazer o próprio sentido da minha negativa? Oh, não….

Porque eu estou, de fato, com preguiça, e de fato não me é importante e, pensando bem, não gosto tanto assim de passar meu tempo com você, mas pelo amor de todas as convenções, jamais pense isso de mim! Te adoro muito, você é iluminada, parabéns, estou morrendo de saudade, vamos marcar algo semana que vem, estou aqui pra tudo que você precisar, não fique bravo comigo.

Não, não vou concluir assim, porque também a discussão está posta num outro nível, em que não se trata de buscar soluções moralistas no plano individual, mas de repensar a relação que nós estabelecemos todos os dias com o nosso tempo e com o tempo do outro. Esse tempo que é meu e me pertence para dispor, para fazer as minhas escolhas, e estar aonde seja importante para mim estar; mas tempo também que é nosso, enquanto coletividade, para construir sonhos a muitas mãos. Estar junto, seja dos amigos, seja de conhecidos com quem nos associamos por motivos diversos, é colocar-se em contato; é tocar, sobretudo, a matéria que nos constitui de humanidade.

E existem, ainda hoje, por mais inacreditável que pareça, coisas que precisam ser voluntárias, que precisam ser gratuitas e improdutivas. Coisas que não se pode profissionalizar. E talvez te surpreenda, mas existe tempo também para essas.

Vou te fazer um pedido
Tempo Tempo Tempo Tempo
Compositor de destinos
Tambor de todos os ritmos
Tempo Tempo Tempo Tempo
Entro num acordo contigo
Tempo Tempo Tempo Tempo
Oração ao tempo — Caetano veloso

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