Tédio

Ana Casilas
P-alavras
Published in
4 min readFeb 28, 2015

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Veio e engoliu o tempo. Abarcou tudo ao seu redor, fazendo o universo girar no ritmo cadenciado de sua própria respiração e eu,que duvidava ser possível alguém tão poderoso assim, me rendi e me perdi na luz ofuscante que emanava de si. Atônita, procurei algum meio de salvar-me e encontrei o tempo, ao meu lado, sentado sobre o estofado azul. Ele me olhava hesitante e foi a primeira vez que vi o tempo verdadeiramente responder ao meu olhar. Ficamos ali, encarando a infinitude daquele momento em que o próprio tempo se ausentou. Exasperada, busquei por qualquer pedaço de salvação na superfície metálica daquele amigo, mas, perdição minha, seu toque era gelado e com a extensão dos tentáculos me envolveu sem ao menos se mover.

Foi então que o silêncio se fez ouvido. Não era senão adequado que não houvesse nada além de um duro, estóico e essencial silêncio no mundo sem mundo e sem tempo. Não havia a menor possibilidade de escape daquela revolução das coisas: voavam todas, embora parecessem dançar ao som da polca. Os pedaços do mundo voando, o som que não se propagava e o ar parado que cavava para si um buraco negro. O mundo desintegrado. O mundo dançando um reggae. Eu, estanque. Como aliado apenas o tempo e a solidão metálica.

O mundo acabou? Ousei perguntar a meu amigo que não me olharia mais. Como resposta, apenas o ressoar do magma movendo as placas tectônicas. Ouvi um pequeno estalo e ao ver certo floco de neve distingui suas palavras fractais: o Everest caiu. Eram palavras incríveis, mais ainda porque combinadas à perfeição geométrica dos ângulos daquele pedaço branco de gelo que flutuava veloz, mas parou dançando diante de meus olhos incrédulos e então, bem ali despedaçou-se, átomo a átomo, decompondo-se e englobando o sol. Destruir, reconstruir. Cada célula ganhando nova cor que brilhava através da luz até se tornar estrela.

Não saberia ao certo dizer quantas vidas durou aquele milagre que fragmentou o gigante do nosso mundo e terminou por tornar gélido tudo o mais. O tempo que já se ausentava decidiu encolher-se até que finalmente sumiu e deixou o resto de nós, sobreviventes do juízo final, relegados a infinitude imensa e aos pedaços laranjas de Deus, o mais magnífico pôr -do -sol da natureza, a prece conjunta do mundo e o desconhecido em comunhão carnal.

Tamanha foi a euforia que o ar se tornou ensurdecedor e calou a fome dos homens. Todos silenciavam seus medos diante das palavras vociferadas pela fonte da vida e da morte, embora desconhecessem-nas (E mesmo, quem precisaria delas?). O mistério do mundo deveria permanecer desconhecido e nisso todos concordavam, mas ousei escutar por breves segundos: estendi os dedos curtos, estiquei o corpo e entreguei os ouvidos de todos, meus naquele instante, ao clamor daquela voz. Desacostumado a ouvir, meu corpo demorou a identificar sua origem, porém ao final distingui a mistura e dissolução de timbres animais que a tornavam tão intrigante. Muitos me eram desconhecidos e foi difícil manter a atenção naquela tarefa enquanto brilhava o pecado laranja no céu. Prestes a desistir, entregue à dominação completa, percebi apenas quando o chamado da girafa marcou a ferro e fogo todo o resto de vida que poderia haver para qualquer um de nós. Ninguém mais parecia ouvir, muitos voavam em direção ao novo sol somente para colapsar em seu núcleo e a girafa insistia no chamado forte: “Alíquota”, “Constituição”. Oh, perdição minha, estava descoberta a pura essência da vida.

Recobrada a consciência, tive medo. “Assim deveria ser o fim dos tempos”. E era? Nunca saberia dizê-lo, porque também a segurança estava ao alcance dos dedos que, a um comando poderiam segurar vigorosamente a verdade na palma úmida das mãos, me fazendo voltar a respirar. Eu poderia, se quisesse, esmagar a massa disforme e asquerosa da verdade e sentir-me intoxicar a pele com sua acidez penetrante que daria conta de substituí-la pelo pedaço carcomido e ferroso que a constituía antes. Assim, eu poderia respirar, já àquele deus pagão fulgurante no céu, sucumbiria sem reservas. Inatingível, ele tremulava distante e desnudo, afrontando a todos com sua luxúria, fazendo-nos envergonhados de nossa própria efemeridade. Natural, livre e perturbador, mas verdade crua. E eu, que sempre buscara a verdade entregue daquela forma, me assustei ao encontrá-la na respiração celular, minhas próprias mitocôndrias a ela incorporadas em fusão orgânica.

Prestes a desabar, ponderei que o melhor a fazer deveria envolver algum tipo de plano de fuga daquela ausência de controle, mas naquele mundo, como no de agora, não estava mesmo tudo de ponta a cabeça? Os que concordavam comigo corriam na direção oposta à da estrela fulminante, gritando palavras indecifráveis e puxando as próprias orelhas com tanta força que de algumas já podia vislumbrar sangue. Temi por minha própria sanidade. Minha, ainda que por pouco. A dimensão de toda a liberdade.

De que vale?

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