Terça-feira, burocraticamente

Ana Casilas
P-alavras
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10 min readApr 16, 2016

Era uma terça-feira e nada de bom acontece numa terça-feira. A tarde já escorria no abafado dos passos que nunca descansam no centro da cidade, embora o sol ainda queimasse as janelas da prefeitura mais do que o velho ar condicionado era capaz de evitar. Aquele era um antigo edifício, enforcado por dentre duas colunas que mal e mal o separavam das centenas de salas comerciais que se entulhavam nos prédios vizinhos. O som de digitação era ocasional, mas o estalido do duto de refrigeração, não. Um velho prédio estalando de calor no fim do verão levava consigo todos no seu interior. Era uma terça-feira e uma das novas estagiárias lhe avisara que haviam ganhado uma ação. Nesse caso — lhe dissera — cobremos os honorários. Talvez algumas boas coisas acontecessem às terças-feiras. Naquele dia, ao acordar, notara que a vizinha preparava um bolo e o cheiro adocicado da laranja terminou por invadir seu apartamento bem a tempo de perfumar a religiosa rotina com que preparava o café. Primeiro, alcançaria o pó aromatizado que o pai lhe enviava de casa e o coador que o sugava eficazmente lento. Depois, esquentaria o leite e o debruçaria sobre a bebida já filtrada, na exata temperatura que esfriasse os grãos e os adensasse, a tempo para que a canela salpicada realçasse o gosto da manhã em seus pálidos lábios. A maneira com que desempenhamos os pequenos atos, todos os dias, é que definem o caráter e asseio devidos a Deus — diria a qualquer um que a indagasse sobre os cuidados com uma casa. Diria assim a meio do caminho entre o humor e a seriedade, de forma que ninguém saberia exatamente a cor do seu segredo. Desde que o café fosse coado da maneira correta, todas as demais fatalidades poderiam ser suportadas. Ela o beberia sozinha, à mesa, enquanto mentalmente repassaria as obrigações que a esperavam. É certo que eram alguns poucos minutos a que se reservava, porém a sacralidade de cada segundo em que o líquido espesso e quente encontrava sua pele a fazia encontrável, ali, tão longe de casa, mas por alguns momentos ainda no amanhecer do passado que a abraçava com sabor de manhã. Naquele dia, o leve sopro da laranja havia transtornado tudo porque não se lembrava de ter comido, na casa dos pais, bolo de frutas. Outro dia, outro café, outra manhã, tudo revirado. A nota adocicada da laranja se impregnara em seus ouvidos como uma melodia sem que o encanto fosse perdido, e talvez por isso, o trânsito estivera agradavelmente fluido até que chegasse ao trabalho. Nada disso lhe fizera suspeitar da normalidade daquela terça-feira, entretanto haviam ganhado um caso e, então, agora poderia fazê-lo. Havia, é claro, uma nova pendência em sua mesa, de forma que talvez tivesse que encurtar o café da tarde ou ameaçaria o tempo apropriado à reunião com os advogados da COMCAP. “É por uma boa causa”, decidiu. O caso lhe fora apresentado e o veredicto era claro. De qualquer maneira, podia pedir a nova estagiária que elaborasse a petição e, então, tudo se ajeitaria. De toda maneira, agora o sol que entrava pela janela pesava mais sobre os papéis em sua mesa. Era uma terça-feira e, como em outras terças-feiras, o trabalho se acumulava sem exigir dela nenhum tipo de comprometimento. Fazia calor, era fevereiro e os restos mortais de carnaval jaziam enterrados, de forma que nada se diferenciava do dia anterior ou do dia seguinte para os pobres diabos que ali trabalhavam. Com sinceridade, duvidava que qualquer um deles sequer festejasse o carnaval, o que era uma pena, realmente. Quanto a ela, não se poderia dizer que festejasse qualquer coisa, tampouco poderia ser dito que se privava de pequenas insensatezes plenamente justificáveis em razão de feriados nacionais. Inclusive, naquela mesma terça-feira, recebera o indiscreto convite para um encontro casualíssimo de ex — amantes de avenida. Julgava melhor adiar o encontro para um dia mais apropriado, sem reuniões, sem casos ganhos, sem terças-feiras. Pensava, desde o dia anterior, numa maneira graciosa de recusar a proposta que lhe fora feita assim, meio sem pensar, sem querer, a meios lábios. Talvez seja para o melhor, refletiu, pessoas confiáveis se comportam dessa forma. Mas, se quisesse vê-lo novamente, precisaria elaborar alguma mensagem de recusa adorável, o que ainda não conseguira fazer e, por isso, convencia-se de que deveria ir ao encontro de qualquer jeito. A petição ficaria para o dia seguinte e o café seria breve. Não era o cenário ideal, entretanto ela poderia fazer aquilo funcionar, se relaxasse. Estava relaxando, o nó no peito já passaria. Reviu as notas para a reunião de logo mais, respondeu e-mails e assinou todos os ofícios que esperavam sobre a mesa, tomando o cuidado de fazer uma lista e repassar ao oficial de gabinete as pendências que ficariam para o dia seguinte. Chamou a estagiária a fim de que fizesse a petição, porém acabou por pedir-lhe uma pesquisa — ela própria cuidaria do assunto no dia seguinte, não confiava em mais ninguém para um trabalho bem feito. Por fim, levantou-se e avisou aos colegas que estava de saída para o café. No corredor, ainda lembrou-se de fazer uma pausa e retocar a maquiagem. Conhecera Marco há poucos dias, na euforia do álcool e das expectativas jamais correspondidas, e agora, vista a luz do sol em sua própria pele, poderia ser que o escandalizasse. Entrou no banheiro feminino e parou, diante do próprio reflexo, tentando acalmar o refugo da respiração. Vestia preto, como de costume, num vestido sobriamente adequado a uma mulher na sua posição e idade. O rosto pálido emoldurado pelo pequeno par de brincos de ouro que ganhara de presente do pai, juntamente com o escapulário, em seu aniversário de quinze anos. A maquiagem era leve demais para esconder os primeiros sinais da idade e da solidão. Tinha quase trinta anos, mas pendia na casa dos vinte por mero descuido, sua alma contava muito mais. Cogitou delinear os olhos e realçar as bochechas, mas desistiu, subitamente tomada por uma epifania de amor-próprio. “Essa sou eu numa tarde de terça-feira, dane-se”. Tinha medo de parecer que se esforçara demais para um mero café entre nunca-antes-ou-depois-amigos, ao estrangular da tarde, no centro de Florianópolis. Continuou enfeitiçada pelos segredos que trazia sua imagem refletida no espelho e não viu quando o celular apitou, desmarcando o encontro. Já estava a meio caminho no momento em que decidiu checar as mensagens e o avisou, com a voz menos ressentida que pode evocar, que já estava esperando-o no local combinado, mas poderia voltar. Sorriu um riso de frustração nervosa e virou as costas para percorrer o caminho de volta à prefeitura, porém uma visão conhecida a chamou de cima da escada logo a seu lado e ela não teve outra escolha senão retornar. Marco se desculpou brevemente, dizendo que achara melhor desmarcar para não incomodá-la ainda mais no trabalho, que ele sabia ser importante. Assegurou-se de dizer pelo menos três vezes que desejava estar ali e por esta razão ela se permitiu ficar. Ele não parecia em nada diferente do dia que haviam passado juntos e ela se perguntou como não percebera antes o gélido brilho metálico de seus olhos castanhos. Pediu um sanduíche, ele um café. O lugar era simples, mas adoravelmente honesto e a luz que entrava pelas paredes de vidro fazia com que o formigueiro incessante daquela parte da cidade tomasse a proporção de um sonho agitado. Um café quente no meio do caos. Marco trabalhava naquele mesmo prédio, um andar acima, num escritório de contabilidade que não figurava na placa de endereços pendurada sobre o pórtico de entrada. Conhecera-o através de amigos, durante ébrias comemorações de carnaval e a única coisa que sabia a seu respeito, além da profissão e do número de telefone, residia no fato de ser o tipo de homem que deixa a carteira, o celular e os óculos sempre juntos, em cima da mesa, enquanto se encontra para um café com desconhecidos. Exceto pelo incidente do cancelamento, ele parecia um rapaz limpo o suficiente e educado, irrepreensível no empenho de dissipar o constrangimento inicial e o nervosismo que se impregnara no gosto do café. Falaram amenidades, riram. O clima estava mais leve, o sol já descia no horizonte e, naquele ângulo, parecia estender o dia ao limite da eternidade. Não fora de todo mau aquela pausa inesperada, quem sabe devesse deixar o acaso intervir mais vezes em sua rígida rotina, mesmo que às terças-feiras. O assunto se desviava para o trabalho e contou-lhe das pendências que a aguardavam sobre a mesa, do caso que haviam ganhado, da reunião que se anunciava. Estimulada por suas perguntas, falou sobre o novo entendimento dos tribunais acerca da tributação do município e que havia sido responsável, afinal, por um resultado favorável naquele mês. Achou que ele parecia interessado, embora sua xícara de café já estivesse vazia e trouxesse os braços cruzados sobre a mesa. Falou um pouco mais da relação entre os procuradores e os honorários. Notou quando ele colocou os óculos de sol na cabeça e percebeu que o tempo se esgotava. Era uma pena que tivessem falado tanto sobre trabalho. Pensou em lhe dizer isto, mas não encontrou as palavras certas, talvez ele tivesse a impressão errada do que queria dizer. Ele mencionava os amigos que tinham em comum e que os haviam apresentado, deviam todos se encontrar num café atrasado de quarta-feira de cinzas, dizia. Ela o ouvia sem atenção, chateada consigo mesma por ter sido tão autorreferente e perdido a chance de perguntar-lhe todas as coisas que havia planejado. Ali estava um homem que tivera tão perto de si apenas alguns dias antes e com quem havia escolhido conversar sobre direito tributário, dentre todas as criaturas e criações do universo. Sentiu-se um fracasso, em nada alterado pelo fato de ser muito mais bem-sucedida na carreira do que ele, que agora balançava as pernas sob a mesa. Ambos tomaram consciência de que lá fora as pessoas já andavam em ritmo mais acelerado, antecipando a volta para casa , e talvez por culpa da cafeína, tomada de súbito heroísmo, decidiu fitar-lhe os olhos, diretamente e sem rodeios, a cabeça levemente inclinada ao dizer “A Heloísa disse mesmo que você me achava tímida”. Com isso, esperava sussurrar-lhe obscenidades a luz do dia, retomar de onde haviam parado. Queria que ele soubesse que se lembrava de como flertar com um homem de mãos secas. Não eram amigos, nunca seriam amigos e não existia um único motivo pelo qual devesse desviar-se de um momento de intimidade com alguém com quem já dividira tanto. Com efeito, alguns dias após terem se conhecido, uma amiga em comum lhe confidenciara o comentário feito por ele sobre sua timidez e desde então planejava provar-lhe que não era tímida — a menos que ele achasse nisso algum encantamento, caso em que poderia assumir aquela crítica com humilde afetação. Em condições normais, resguardaria-se do constrangimento de deixar-se nua em frente ao público de terça-feira de um café de esquina decadente, para quem o torpor da cafeína ainda aplacava as dores de uma existência dispensável. Em dias de normalidade, o teria feito por hábito, da mesma maneira como vestia preto e trazia os cabelos soltos emoldurando a face, como também fazia com todo o resto de seus dias em razão da habitualidade tóxica que lhe impregnara as células. Marco não sabia, mas ela estava morrendo e fora esse seu único motivo para aceitar encontrar-se com um homem de seu tipo, numa terça-feira morbidamente cheia de trabalho. “A morte é mesmo impenetrável”, ecoou para si mesma enquanto proferia aquele convite estupidamente íntimo. “A morte é mesmo impenetrável” foi a única coisa que conseguiu pensar diante da violenta rejeição daquele homem que subitamente levantou-se em direção ao balcão, deixando-a só, aguardando ainda por qualquer tipo de resposta. Não fosse o céu que escurecia com espantosa rapidez para um dia de verão, nenhum outro indício haveria de alteração no curso de vida de qualquer criatura viva, embora ela agora fitasse o próprio reflexo nas paredes de vidro, o coração despedaçado como os restos de comida que Marco deixara por sobre a mesa. Não sabia o que faria em seguida e ele demorava um tempo demasiado longo para pagar a conta, como que exigindo dela que decidisse os rumos daquele encontro, mais uma vez. Deixou-se ficar na cadeira porque não esperava tornar nada daquilo mais fácil. Estava de costas para ele, mas seu reflexo encarava-o com olhos antecipadamente úmidos, enquanto ela mesma ardia de ódio da própria vulnerabilidade refletida em imagem. A mortalha de sua solidão só seria mensurável com o amparo de Deus. Pelo reflexo das paredes, viu triplicar os braços e pernas de Marco no momento em que este se dirigia indecisamente de volta à mesa. Pelas paredes, observou enquanto o próprio reflexo ergueu-se para encontrar com o dele, a meio do caminho entre o balcão e a porta. Os débitos estavam pagos, as pendências cumpridas, terça-feira seguiria seu ritmo, burocraticamente. Infelizmente, estava certa de que nem uma pessoa sequer, dentre todas que ainda encontraria naquele dia, seria capaz de perceber tratar-se apenas de sua sombra — todos aqueles que poderiam vê-lo já estavam longe demais para tanto. Em sendo assim, infelizmente, deixar-se-ia permanecer naquela cadeira o quanto pudesse, enquanto dali não fosse retirada por algum tipo de força bruta, um pedido ríspido, um olhar turvo. Precisava ter certeza de que ainda era visível, de que a realidade da sua existência conseguiria afetar o ambiente ao redor, ainda que por mera inconveniência. Precisava se certificar disso, não porque houvesse perdido a capacidade de engolir a seco mais um dissabor, empurrar a rejeição pelas paredes do intestino e continuar, rotineiramente, religiosamente, os compromissos; mas porque, ao contrário, a insipidez com que era capaz de fazê-lo ofendia sua humanidade. Parecia-lhe uma insensatez que as coisas vivas estivessem tão mortas. Por isso, ali ficaria, enquanto pudesse, ainda que fosse ridículo, até que sentisse algo. Para todos os efeitos, estava certa de que sua sombra seria capaz de cumprir diligentemente toda a burocracia que dela fosse requisitada para terminar o dia. Perdida em seus próprios pensamentos, com duro estoicismo assistiu, horrorizada, ao momento em que seus lábios encontraram os de Marco no beijo mais tortuosamente indesejado que dois seres humanos poderiam usar como despedida. Dividida em duas, mas tomada por inteiro de ressentimento, pensou distinguir por detrás do vidro as promessas mutuamente feitas de se encontrarem novamente para um café, ou sabe, qualquer outra coisa. Continuou fitando a própria sombra, incrédula, enquanto descia as escadas de volta ao trabalho. Seu corpo era tomado do pânico de perceber que fora ela quem buscara, apesar de tudo, o torturante encontro daqueles lábios destinados ao desencontro. Seus passos eram apressados, mas conseguia vislumbrar o brilho lacrimoso que se anunciava no rosto de sua substituta. Ainda teve tempo, antes que ela virasse a esquina e sumisse no asfalto, para um último pensamento de autorreflexão, e não pôde deixar de achar irônico que somente ao deixar-se ir pudesse compreender que morreria pela brutalidade daquela última solidão.

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