Tomates

Ana Casilas
P-alavras
3 min readFeb 28, 2015

--

O som da faca encontrando a madeira tomou conta do ambiente. Repetidas vezes ela a empunhou e lançou contra o desconhecido em suas mãos. Vermelho era uma cor que gostava. Ali naquela pequena cozinha feita de móveis comprados a prestações havia muito dessa cor. Cado canto, cada esquina, o criado mudo: lá estava a escolha do vermelho. Paulo tinha razão quando dizia que ela era uma pessoa difícil. “Vermelho não combina com nada”. Mas não eram suas as mãos que estavam impregnadas de pedaços de vida, um fluido viscoso escorrendo pelos dedos.

No ar, nenhum som que não fosse a faca encontrando a madeira, mas ele estava ali — ela desviava o olhar, mas ele estava — e ela não conseguia encará-lo. Empunhava a faca e desferia novo golpe. A pequena cozinha parecia ainda menor sem ele (a velha geladeira ocupava muito espaço), mesmo que continuassem ali. Quando Paulo iria se levantar e deixar-se escorrer, como fluido, de suas mãos?

Ela deveria dizer alguma coisa, responder àquele adeus, porém tudo que conseguia era erguer a faca, já cega, e cravá-la na madeira. “Talvez essas sejam as melhores palavras que já disse em toda a minha vida” pensou, e ainda assim, ele esperava. Talvez estivesse contando as facadas para saber exatamente como aquele amor iria morrer. Talvez só esperasse o adeus, e este não vinha. Como poderia vir, se ele era a causa de todo o vermelho que estava naquela sala?

Teve a impressão de que algo havia sido dito porque, de repente, a faca hesitou no alto. É, ele havia dito duas palavras e esperava, contra todo bom discernimento, que ela respondesse a um “e então”. Só se juntasse toda a baga de suas mãos, os pedaços vermelhos esmagados na faca e os entregasse, humildemente. Mas ele não entenderia, como nunca entendera sua mania de vermelho ou seus pequenos bilhetes feitos à mão. Ele era do mundo. Se ela pudesse ao menos dizer-lhe isso, quem sabe ele compreendesse.

Pensou em largar a faca. Não conseguiu, porém o silêncio da hesitação provocou os olhos de Paulo sobre ela. Consciente de que estava sendo observada, tentou levantar os olhos e encontrou a imensidão de Paulo diante de si. Teve a certeza de que iria se afogar. Queria falar, nem que fosse sobre como os olhos dele a lembravam do mar, mas ela não sabia falar, ela só sabia sentir. E sentia o vão que a faca abrira na palma de suas mãos, os veios que suas mãos haviam aberto na madeira. Paulo usava azul — “Você está usando azul” — .

Foi a única coisa que conseguiu dizer durante a noite mais importante de sua vida. Não ouviu o que ele disse, mas tinha a certeza de que respondia algo realmente bonito e inteligente sobre o azul ou qualquer outra coisa.Não ouvia. Não conseguia porque os ladrilhos lhe chamavam a atenção, nunca reparara em sua brancura envelhecida antes, possivelmente o único esconderijo que não se propusera a tingir. Ela concentrou todos os esforços em olhar fixamente para o ladrilho enquanto Paulo esperou fixamente uma resposta e, quando esta não veio (não saberia dizer ao certo o quanto ele esperou olhando pra ela, que olhava pro ladrilho), ele partiu. O sonoro adeus de uma antiga e estreita porta de madeira a atingiu ao mesmo tempo em que um pedaço da linfa do tomate sujou o ladrilho incólume.

Não hesitou. Pegou novo tomate, moveu os braços cortando o fruto de forma automática. A cabeça baixa, o coração sangrando e as mãos rasgando as veias do tomate. O sangue se espalhando pela bancada de madeira e ela abrindo as artérias de um tomate. Paulo pensava que sua obsessão por vermelho se explicava pelo desejo de sofrer, não desconfiava que era apenas uma forma de lhe dizer todo o amor que sentia. Ela não saberia dizer de outra maneira e ele não via que junto com os vermelhos espalhados pela casa estavam todas as juras de amor que o coração não tinha podido dizer. Ele não desconfiava que cada tomate que jazia no chão de ladrilhos brancos era um pedaço dela. Paulo nunca desconfiaria, mas era ele quem desatava todos os seus nós.

--

--