Porque Libertários Devem Parar de Usar o Termo “Anarcocapitalismo”

Relsen
9 min readJan 31, 2019

O termo “anarcocapitalismo” é frequentemente utilizado por austrolibertários para se referir à filosofia política que é consequência lógica da ética austrolibertária, porém acredito que o uso deste termo seja um tiro no pé do movimento libertário.

O que significa “anarcocapitalismo"?

E o que significa anarcocapitalismo? Curiosamente, após uma busca pelo significado do termo que fiz há algum tempo nos livros de Rothbard e Hoppe, não fui capaz de encontrar nenhuma definição além de “anarquismo de livre mercado”, definição que ainda não nos esclarece muito, pois se utiliza de outro termo indefinido, “anarquismo".

E afinal o que é “anarquismo"?

Esta é uma pergunta difícil, pois o termo já foi utilizado com significados muito diferentes, a ausência de coerção, a ausência de estado, a ausência de hierarquias… Qual destas definições seria a utilizada no termo “anarcocapitalismo” é uma questão preocupante.

A grande dificuldade em qualquer análise sobre o anarquismo é que o termo abrange doutrinas totalmente conflitantes. A raiz da palavra é o termo anarche, que significa oposição à autoridade ou a ordens. Essa definição é suficientemente ampla para abranger um conjunto de diferentes doutrinas políticas. No geral, essas doutrinas foram amontoadas em conjunto e definidas como "anarquistas" por causa de sua hostilidade conjunta à existência do estado, esse ente que tem o monopólio coercivo da força e da autoridade. (ROTHBARD, Murray. Os libertários são anarquistas?)

Com a definição do termo “anarquismo" em aberto a definição do termo “anarcocapitalismo” fica também em aberto, tentarei fazer algumas reflexões das possibilidades de definição do termo com base nas variadas definições do termo “anarquismo”.

Anarquismo como a ausência de coerção

Assumindo a definição do termo “anarquismo" como “ausência de coerção”, quais são as possíveis definições de “anarcocapitalismo”?

Coerção é uso da força ou ameaça do uso da força com o fim de obrigar alguém a fazer algo (estou utilizando a definição de Kinsella). Poderia possivelmente haver a completa ausência de qualquer coerção? Não, pois para eliminar alguns tipos de coerção devemos utilizar outros tipos de coerção, por exemplo, para impedir um ladrão de assaltar alguém (o que seria coerção) a força ou ameaça deve ser utilizada para impedi-lo (o que também seria coerção). Conclui-se que o Anarcocapitalismo não pode ser contra qualquer tipo de coerção, mas sim contra alguns tipos de coerção, tratando-se de uma filosofia relacionada ao Libertarianismo o “anarquismo" do “anarcocapitalismo” poderia apenas ser a ausência de iniciação de coerção. Esta definição é razoável, com ela anarcocapitalismo seria a ausência de iniciação de coerção em uma sociedade de livre mercado. O problema desta definição é que ela ainda deixa algumas questões em aberto, por exemplo, assassinato não seria nem coerção (embora seja agressão e seja uso da força) nem algo que contrarie o livre mercado (embora seja algo nocivo para ele). Sendo “ausência de iniciação de coerção em uma sociedade de livre mercado” uma definição incompleta para se definir alguma das posições libertárias em questão da organização da sociedade abandonarei está definição como uma possibilidade de definição utilizável para o termo.

Anarquismo como a ausência de hierarquias

Da mesma forma como ocorre com a coerção não pode haver a completa ausência de qualquer hierarquia, pois para acabar com um tipo de hierarquia você deve criar outra, por exemplo, para que anarcosindicalistas acabem com a hierarquia de uma empresa eles devem criar outra hierarquia, no mínimo colocando-se como superiores aos empresários para que possam mandar eles acabarem com seus poderes na empresa.

Anarquismo é a ausência de qual hierarquia então?

Alguns libertários utilizam como definição de “anarquismo" a “ausência de hierarquias ilegítimas’, bom, esta definição simplesmente não é útil para nada, já que qualquer filosofia política, desde conservadores até comunistas, acredita que as hierarquias que defendem são legítimas, ou seja, se esta for a definição de anarquismo então qualquer um irá se identificar como “anarquista".

E se o “anarquismo" do “anarcocapitalismo” for a ausência de hierarquias agressivas? Neste caso “anarcocapitalismo” seria a ausência de hierarquias agressivas em um livre mercado. O problema desta definição é que ela é um pleonasmo, pois a ausência de hierarquias agressivas já implica em livre mercado, logo ela não é uma definição logicamente utilizável.

Anarquismo como ausência de estado

Estado, na definição de Weber e Rothbard, é a organização com o direito exclusivo de uso da força (para a aplicação de leis), isso significa que qualquer outra organização que queira fornecer segurança e aplicação de leis ou será proibida pelo estado ou terá que receber sua permissão formal para aplicar. Anarcocapitalismo então, segundo esta definição do termo “anarquismo", sendo “anarquia de livre mercado", seria uma sociedade sem uma organização com o monopólio do uso da força para a aplicação de leis que tem livre mercado. Esta definição me parece perfeitamente lógica. Alguns talvez argumentem que o termo seria também um pleonasmo pois a ausência de estado já implica o livre mercado, mas eu discordo, podemos provar que a ausência de estado implica em livre mercado através de axiomas da ação humana, mas o conceito de “livre mercado” não está implícito na definição de “ausência de estado”, então a definição não constitui um pleonasmo e é perfeitamente lógica.

Apesar disso ainda acredito que o uso do termo “anarcocapitalismo”, mesmo com esta definição, ainda seria danoso para o movimento libertário, explicarei a seguir.

Porque o uso do termo é um tiro no pé

Mesmo com o uso de uma definição mais objetiva e exata o fato de o termo “anarquismo" ter sido utilizado com diferentes definições ao longo do tempo ainda faz com que possam haver algumas confusões, explico: nem todas as pessoas que tiverem contato com a palavra e a filosofia necessariamente conhecerão esta definição, podendo se confundir.

Além disso o termo “anarquismo" e “anarquia" foi historicamente muito utilizado por grupos vândalos agressivos, com isso há uma forte conotação negativa da palavra, que costuma ser relacionada (mesmo que implicitamente) a caos, destruição, vandalismo e agressividade. E como o Libertarianismo é o exato inverso de agressividade e vandalismo, representado a rejeição da agressão e a busca por uma sociedade pacífica, o uso do termo “anarco" pode vir a causar a impressão errada do que é a filosofia política defendida por defensores da ética libertária.

E o terceiro ponto é que o termo “anarquismo" foi historicamente muitas vezes utilizado por grupos comunistas, fato que também ajuda a passar uma ideia errada do termo.

Além disso, descobriremos que todos os atuais anarquistas são coletivistas irracionais, estando portanto em pólos opostos aos nossos. Assim, devemos concluir que nós não somos anarquistas, e que aqueles que nos chamam de anarquistas não se baseiam em uma etimologia séria, e estão historicamente errados. (ROTHBARD, Murray. Os libertários são anarquistas?)

Ou seja, o uso do termo “anarcocapitalismo” por libertários acabará passando uma ideia errada do que defendemos, por isso o termo deve ser abandonado.

E qual termo usar?

Eu proponho a utilização de dois termos para dois diferentes conceitos defendidos por libertários como consequência lógica de sua ética, voluntarismo e panarquismo.

O que são estes termos?

Panarquismo foi um termo cunhado por Pail Émile Puydt em 1860. Mais ou menos entre 1800 e 1900, após a ascensão da economia lasseiz faire alguns economistas como Molinari e Puydt buscavam encontrar uma forma de aplicar o princípio do livre mercado e da livre concorrência também à criação de segurança e proteção, defendendo um livre mercado de serviços de segurança, o termo “panarquismo" foi cunhado por Puydt para a sua proposta de privatização do serviço de segurança. Puydt defendia o mesmo que muitos libertários de hoje, uma sociedade na qual as pessoas buscassem proteção legal em organizações concorrentes e a criação de regras privadas por elas que seriam aceitas contratualmente pelos clientes (daí vem o nome “panarquia", “pan" de vários, com o sentido de que haveriam vários tipos e formas de uso da força para a aplicação de leis, porém eles seriam aceitos contratualmente pelas pessoas), com a única peculiaridade que ele propunha que estes fornecedores de segurança fizessem uma assembléia para decidir questões fundamentais ou questões importantes a mais de um fornecedor, ideia que não é necessariamente defendida por qualquer libertário (já que podem haver outras propostas de solução para problemas do tipo). Assim, acredito que libertários devam começar a se denominar “panarquistas” e não mais “anarquistas”, dando a entender que defendem uma sociedade onde os serviços de segurança, além de regras privadas e contratuais de conduta social, sejam fornecidos por organizações concorrentes.

"Donde se conclui a necessidade da livre competição entre indivíduos primeiro, e então entre nações. Liberdade de inventar, trabalhar, trocar, vender e comprar. Liberdade para escolher os preços de seus produtos - e simplesmente nenhuma intervenção do Estado fora da sua esfera especial. Em outras palavras: Laissez-faire, laissez-passer.

Aí está, em poucas linhas, a base da economia política, um resumo da ciência sem a qual não pode haver nada além de má administração e governo deplorável. É possível ir ainda mais longe e reduzir esta grande ciência para a maior parte dos casos em uma fórmula final: Laissez-faire, laissez-passer.

Tomando esta idéia, eu posso dizer: no domínio da ciência, não existem semi-verdades. Não existem verdades que, sendo válidas por um lado, deixam de ser sob outro aspecto. O sistema do universo é maravilhosamente simples, assim como é maravilhosa sua infalível lógica. Uma lei é a mesma sempre, suas aplicações é que são diversas. Dos seres mais complexos aos mais simples, do homem ao zoófito, até o mineral, todos eles oferecem íntimas similaridades de estrutura, de desenvolvimento e de composição; e surpreendentes analogias ligam o mundo material ao moral. A vida é uma unidade, matéria é uma unidade, apenas as manifestações são diversas, as combinações inumeráveis, as individualidades infinitas; mas o plano geral a tudo encobre, sem exceção. É a fraqueza de nosso entendimento, o vício de nossa educação, os responsáveis pela diversidade de sistemas e oposições de idéias. Entre duas opiniões que se contradizem, há uma verdadeira e outra falsa, a menos que ambas sejam falsas, mas anão podem ser as duas verdadeiras. Uma verdade cientificamente demonstrada não poderia ser verdadeira aqui e falsa em outro lugar; não poderia ser boa, por exemplo, para a economia política e má para a política: isto é o que desejo demonstrar.

A grande lei da economia política, a lei da livre competição, laissez-faire, laissez-passer, é apenas aplicável ao regimento de interesses industriais e comerciais ou, mais cientificamente, apenas à produção e circulação de riqueza? Considere as trevas da ciência econômica que esta lei veio iluminar, o problema permanente, o antagonismo permanente de interesses que ela pacificou. Não são estas condições encontradas em mesmo grau na esfera política? A analogia não indica um remédio similar para ambos os casos? Laissez-faire, laissez-passer." (PUYDT, Paul Emile. Panarquia)

E sobre o termo “voluntarismo"… O termo “voluntário” nunca é muito bem definido, sendo apenas geralmente associado à ideia de livre mercado, entendo “voluntária” como qualquer relação entre pessoas que não dependa de uma agressão para existir, e é com esta definição em mente que proponho o uso do termo “voluntarismo”. Uma sociedade voluntarista seria uma na qual todas as relações entre pessoas não dependem de agressões para existir (um assassinato, por exemplo, seria, de acordo com esta definição, uma relação não-voluntária), ou pelo menos uma sociedade na qual há a busca pela existência apenas de relações voluntárias, onde pelo menos os órgãos aplicadores de leis buscam manter as relações voluntárias.

Então libertários defenderiam não apenas que em uma sociedade as organizações aplicadoras de leis busquem manter todas as relações voluntárias, mas também que elas sejam concorrentes, já que se fossem monopolistas teriam que manter seu monopólio através da agressão.

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Relsen

Para que você possa transformar o mundo você deve primeiro transformar a si mesmo.