Alguém me diga que eu vou sobreviver

Sobre assassinato, mídia e ser uma mulher trans em 2015

Felipe de Moraes
8 min readMar 30, 2015

Ninguém percebe quando nós vamos embora. Quero dizer, o momento em que nós realmente decidimos partir. Na melhor das hipóteses, você pode sentir um sussurro, ou a ondulação de um sussurro, ululando para baixo […] Eu estava aqui por um momento. E então eu fui embora. Desejo a todos vocês uma vida longa e feliz. — Alice Sebold, Uma Vida Interrompida

Quando eu tinha 19 anos, li um artigo na revista Guernica afirmando que a expectativa de vida média de uma pessoa transgênero é de 23 anos de idade. O artigo confirmou o que eu já sabia havia mais ou menos uma década: eu estava condenada a uma vida desagradável, curta e miserável. Eu seria pobre, talvez sem teto, e teria poucas chances de conseguir um emprego. Eu seria submetida a violência emocional e sexual (e, de fato, eu já tinha sido), e então eu morreria, provavelmente brutalmente assassinada. O nome errado seria gravado no meu túmulo. Você sabe, a boa e velha história transgênero.

Eu não precisava de um artigo de revista para me dizer essas coisas — elas já tinham sido deixadas bem claras por todo babaca que eu conheci no parquinho da escola, no ônibus, na rua. Por todo filme dos anos 90 e especial de TV sobre uma pessoa trans que morre no final. Pelas massas de meninos e homens que vêm ameaçando me matar mesmo antes que eu pudesse definir ou sequer soletrar a palavra “transfobia”. Pelos meus pais, que, ao ouvirem que eu me identificava como mulher, começaram a chorar e me disseram que parecia que eu já tinha morrido. Ainda assim, algo sobre ver aquela realidade exposta em termos concretos, numa estatística (sendo ou não correta), me atingiu duramente.

23 anos de idade — o número está guardado na minha memória. Mulheres trans negras são forçadas a viver com a realidade de que nossos dias estão contados. Às vezes, entretanto, é bom não pensar em exatamente quantos faltam.

Em janeiro deste ano, depois de anos agonizando sobre as ramificações pessoais, políticas e sociais da “transição médica”, eu decidi começar a terapia de reposição hormonal pela primeira vez. É meio clichê, mas era como se eu estivesse renascendo. Existe algo na decisão de alterar radicalmente a composição física e química do corpo que faz com que a pessoa se ganhe uma nova consciência de estar viva. E para mim, é uma consciência alegre: por anos, eu acreditei que tomar hormônios era sucumbir à traiçoeira, hegemônica narrativa criada pela psiquiatria ocidental de que pessoas “verdadeiramente” trans odeiam seus corpos, e eu não conseguia conciliar isso com a minha realidade. Finalmente, eu entendi que para fazer a transição eu não precisava odiar meu corpo. Eu poderia fazê-la porque eu me amava. Na terceira semana de 2015, entrei em um consultório médico em Montreal para começar o processo hormonal. Na sala de espera, enquanto olhava o Facebook no meu celular, vi que nos Estados Unidos, uma mulher trans havia sido assassinada.

Seis semanas depois, era final de Fevereiro e para cada uma daquelas semanas, uma ou mais mulher trans / trans femme havia sido encontrada morta nos Estados Unidos, a maioria delas mulheres negras: Lamia Beard. Ty Underwood. Yazmin Vash Payne. Taja DeJesus. Penny Proud. Bri Golec. Kristina Gomez Reinwald. Dois dias atrás, outra mulher trans negra chamada Sumaya Dalmar foi encontrada morta em Toronto, sob circunstâncias não reveladas. Suas mortes enviaram uma onda de choque que atravessou certas comunidades liberais e esquerdistas; imersa como eu estou na mídia esquerdista, todo dia vejo uma notícia, uma coluna, ou um post de blog sobre esta “onda de assassinatos de mulheres trans” em 2015. Meu feed do Facebook é um rio de postagens (a maioria feitas por pessoas cis) proclamando raiva, luto, solidariedade política. Tudo isso misturado com convites para eventos, comentários políticos e fotos de gatos. Para mim, ler tudo isso resulta numa espécie de absurdismo existencialista: Olhe o que meu gatinho comeu no café da manhã. Uma mulher trans foi esfaqueada hoje. Venha para minha DJ mixset! Uma menina trans foi assassinada por sua família. Foda-se o Oscar. É assim que você vai morrer.

O estranho é que, pouco tempo atrás, vivíamos numa época em que mulheres trans morrendo nunca viravam notícia — quando a grande mídia não optava por simplesmente não noticiar suas mortes, elas eram identificadas como homens. Hoje em dia, parece que a história de uma jovem e tragicamente morta mulher trans aparece na mídia pelo menos uma vez por ano, quase como um cordeiro sacrificial para mitigar a culpa de pessoas cis liberais que nunca teriam descoberto o nome daquelas mesmas mulheres trans quando elas estavam vivas. As reações são sempre as mesmas: ultraje, tristeza, pedidos de mudança. Então nada acontece, e mulheres trans continuam a morrer.

No verão de 2013, quando Islan Nettles foi espancada até a morte em Nova York, eu fui ao memorial e acendi uma vela, fui para uma passeata, escrevi um artigo, eu fui vocal e fervorosa, mas intimamente me senti perdida e desesperada. Em dezembro, quando Leelah Alcorn postou sua nota de suicídio no tumblr e se matou, eu desliguei meu laptop e fiquei sozinha no escuro por horas. Nestes últimos dias, olhei as últimas notícias sobre mulheres trans esfaqueadas, baleadas e espancadas, procurei em mim mesma por lágrimas, mas não consegui encontrar nada. Eu quero chorar e me enfurecer. Eu quero honrar todas as nossas irmãs — as milhares que a cada ano são arrancadas, sem nome e sem repercussão, dessa vida — que são levadas tão jovens, antes de seu tempo. Mas a dor e raiva — até empatia — não vêm. Eu não consigo sentir nada além de torpor e cansaço, e em algum lugar abaixo disso, medo.

O sociólogo Kai Erickson certa vez escreveu que o trauma coletivo é “um golpe nos tecidos básicos da vida social que danifica os ligamentos mantendo as pessoas unidas […] de forma que ‘eu’ continuo a existir, apesar de danificado, e ‘você’ continua a existir, apesar de distante e difícil de se relacionar. Mas ‘nós’ não existimos mais como células ligadas num grande corpo comunal.” De forma simples, se um grupo de pessoas é traumatizado — aterrorizado — o suficiente, elas deixarão de se sentir conectadas umas com as outras. Essa desconexão é uma reposta defensiva, uma tentativa de desligar a dor de ser associada ao grupo. Como resultado, tornamo-nos retraídas, isoladas dentro da narrativa de que nós estamos sozinhas e não temos esperança.

Eu estou começando a pensar que mulheres trans e trans femmes — todas nós ligadas pelo pecado capital de sermos tidas como meninos no nascimento — estamos presas a uma história traumatizada. Desde a mais tenra idade, somos inundadas com a história de nossas mortes, que revivemos repetidamente várias vezes antes de realmente morrermos. Esta mesma história é retomada, comoditizada e produzida em massa para outras comunidades — canais de mídia procurando por histórias sensacionalistas, acadêmicos fazendo análises para a produção de pesquisas, e como aponta Morgan Collado, até organizações de direitos humanos “LGBT” ansiosas para utilizar as estatísticas de violência transfóbica para angariar fundos que servirão para defender os interesses de gays e lésbicas cis e brancos. Mesmo pessoas cis liberais e bem intencionadas, ansiosas em ganhar pontos como “aliadas”, consomem e exploram a história de destruição da mulher trans.

Eu estou dizendo que nós não deveríamos estar falando, escrevendo e discutindo sobre o assassinato de mulheres trans? Definitivamente não. O que estou dizendo é que mulheres trans deveriam receber a palavra nessa discussão. Nós precisamos ter a oportunidade de escrever nossa própria história. E nós deveríamos estar falando sobre as trans vivas tanto quanto falamos sobre as mortas. Deveríamos estar oferecendo às jovens mulheres trans que estão começando a pensar em si mesmas a esperança de que elas serão capazes de viver vidas longas e felizes.

Janet Mock e Laverne Cox são maravilhosos “modelos possibilidade”, mas elas não são o suficiente. Eu quero — nós precisamos — de mais: mais do que a revolta justificada dos liberais, nós precisamos de financiamento concreto de abrigos trans, bolsas de estudo, programas de subsídios. Mais do que a niilista retórica esquerdista, nós precisamos de criatividade e transformação. Precisamos que as pessoas parem de falar sobre como as mulheres trans são mortas o tempo inteiro. Precisamos que as pessoas comecem a nos dizer que elas não permitirão que as nossas mortes aconteçam.

Uma semana atrás, eu postei o seguinte status no Facebook: “Toda vez que vejo um artigo sobre uma mulher trans sendo morta, eu lembro que um dia eu posso morrer desse jeito.” Dentro de uma hora, meia dúzia de pessoas cis haviam comentado que elas se sentiam tristes por habitarmos um mundo onde eu preciso viver com medo. Eu gostaria de me sentir comovida, mas só sentia pavor. O fato dessas pessoas se sentirem tristes não vai me proteger na rua de noite quando um homem decidir que eu sou diferente demais para ter o direito de viver. Postar artigos sobre assassinatos de mulheres trans não vai evitar que isso aconteça comigo. Isso apenas aumenta minha convicção de que eu vou estar sozinha naquela rua, naquela noite, quando finalmente chegar o momento em que meus dias contados se esgotarem.

Um pouco depois, outra amiga, também uma mulher trans negra — e uma das mais ardentes, mais fabulosas meninas da cidade — me enviou uma mensagem privada. Nela, ela prometeu que “aquilo” não aconteceria comigo. Que ela me protegeria, de alguma forma, de algum jeito. E lendo isso, eu chorei pela primeira vez neste ano terrível repleto de irmãs assassinadas. Porque ninguém nunca me disse isso antes. Ninguém nunca se importou ou se arriscou o suficiente para fazer essa promessa: para me dizer que eu vou sobreviver.

Jovens meninas trans, eu tenho uma história para lhes contar: desde que era criancinha, eu sabia que era uma menina. Todos aqueles que eu conhecia tentaram me convencer do contrário, e quando eu recusei ser persuadida, eles disseram que eu iria morrer. Mas eu não morri. Eu encontrei um grupo de irmãs audaciosas, e nós vivemos, rimos, amamos, mesmo em meio a todo o ódio que existe. Eu estou olhando para você, cuidando de você. Nós podemos mudar essa história juntas. Mês que vem, eu faço 24 anos.

Esse artigo foi publicado originalmente no xoJane.

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Felipe de Moraes

Não atire no pianista, ele está fazendo o melhor que pode.