Travestis e transexuais ocupam a Câmara Municipal de São Paulo

Jornalistas Livres
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6 min readJun 22, 2015

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por Leo Moreira Sá para os Jornalistas Livres com fotos de Ennio Brauns

Sob forte protesto da comunidade T, o texto do projeto que institui o PME (Plano Municipal de Educação) em São Paulo foi aprovado por unanimidade nesta sexta­-feira (19/5) pela Comissão de Finanças da Câmara, depois que retirou referências e expressões relacionadas a ‘identidade de gênero’, ‘orientação sexual ‘ e ‘sexualidade’ do texto original.

Foi incluído no final do texto o Artigo 203, da Lei Orgânica do Município, que diz que “é dever do município garantir educação igualitária, desenvolvendo espírito crítico em relação a estereótipos sexuais, raciais e sociais nas aulas, cursos, livros didáticos…”.

Desde às 12hs, a militância LGBT, com predominância de travestis e transexuais, engrossou a fila para entrar no plenário da Câmara Municipal de São Paulo, misturados à presença massiva da comunidade católica e evangélica, onde pastores, padres e fiéis se perfilavam para, segundo eles, defenderem a família contra a ‘ideologia de gênero’.

Conversei com uma senhora que comentava com duas colegas a tragédia que seria se a ‘ideologia de gênero’ fosse instituída nas escolas. “Eu sou a Neuza da Renovação Carismática católica. Nós defendemos a família. Queremos que a família seja responsável pela educação sexual das nossas crianças. Queremos também o fim da ideologia de gênero onde os pais serão proibidos de dizer: ‘é meu filho’ ou ‘minha filha’ e eu me recuso a isso. Essa ideologia diz que a criança não tem sexo quando nasce e é ela quem vai decidir se ela é homem ou mulher só quando for maior. Nascem homem e mulher e foi assim que Deus nos fez: homens e mulheres. “ Dona Neuza acredita que medidas institucionais de prevenção a preconceitos e discriminação dentro das escolas sejam parte de um plano diabólico de dominação e destruição da família e dos valores católicos.

A fila estava lenta por causa de uma minuciosa revista da PM, que dispensou especial atenção às pessoas Ts, reforçando o estigma que recai sobre Travestis e transexuais sempre vistas como pessoas ligadas ao crime. Sobre isso, Aline Marques, bolsista do programa da prefeitura Transcidadania, que oferece um salário mínimo para pessoas Ts voltarem a estudar, declarou: “Fomos revistadas aqui porque somos travestis. O preconceito começa aqui na frente. A polícia tá agindo com truculência encima da gente.”

A parte de cima do plenáro da câmara estava literalmente dividida ao meio: de um lado, a presença massiva de católicos e evangélicos com cartazes com frases escritas como: ‘Sim à família, não ao gênero’, ‘Abaixo a ideologia de gênero’. De outro lado, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans seguravam uma grande bandeira da transexualidade ao lado da bandeira LGBT. Durante a primeira hora houve uma batalha de palavras de ordem, acusações e gritaria sem fim.

Uma senhora se posta entre as duas alas com um terço na mão e começa a rezar o pai nosso, seguida de toda a ala religiosa. LGBTs acabam aderindo à reza gritando: “Jesus também é meu mestre”. Essa senhora ficou ali a maior parte do tempo rezando de olhos fechados.

Houve um princípio de tumulto quando Aline respondeu a agressão de um jovem católico com comportamento transfóbico que chamou uma travesti de homem. Imediatamente 4 PMs rodearam o rapaz dando segurança ao agressor que ficou gritando “Isso é Cristofobia”.

A assistente social Amanda Palha, 27 anos, comentou a agressão: ‘’ São muito agressivos porque eles não sabem lidar com a nossa presença, eles não sabem lidar com pessoas diferentes do mundo deles. A PM está aqui pra defender o conservadorismo e se o negócio apertar, vãos defender eles . Eu sou travesti, tenho 27 anos e estou aqui pra defender uma educação inclusiva que promova toda a sociedade e não só quem está no poder. A população de travestis e transexuais veio aqui unida pra defender uma educação inclusiva. Os setores conservadores e reacionários estão aqui pra defender um modelo excludente.”

Aline falou indignada: “É uma vergonha. A Câmara Municipal se tornou uma feira de quem grita mais. Foi isso que a gente ouviu do presidente da Câmara: “Eu vou ouvir quem gritar mais”. Eu não posso permitir que a minha vida e a vida das crianças que estão por vir, homossexual ou transexual, sejam interrompidas por pessoas eleitas por nós e que colocam a religião na frente de vidas. Exigimos que esse assunto vá para as escolas. A discussão de gênero não precisava nem ter que passar por aqui, deveria ser obrigatória.”

Foto: Ennio Brauns

A travesti Nicolle Mahier, articuladora social da Secretaria de Direitos Humanos de São Paulo, levantou outra questão relevante: “É importante a inclusão de “identidade de gênero” pra gente saber que a nossa população existe realmente dentro da escola, e se acontece alguma coisa temos que saber também. Se a gente não sabe, como é que vamos construir políticas públicas pra essa população que não tem nenhuma informação? Só aquela que a professora ou professor passa dentro da escola. Se acontecer a exclusão vai ter um ‘retetê’, um beijaço, um panelaço, tudo que você imaginar.”

No final da votação, católicos e evangélicos comemoraram o golpe teocrático contra o Estado laico brasileiro. Daniel Martins, representante do Instituto Plínio Correia de Oliveira (fundador da TFP -Tradição Família e Propriedade), disse que a votação representou uma vitória da família brasileira. “Educação, sobretudo nessa matéria sexual, é um direito da família e não é o Estado quem vai impor uma ideologia homossexual, como se fazia no nazismo ou no comunismo”. Disparates como esse pode ser ouvido ontem, falados por fiéis que disparavam palavras de ordem sem sentido como ‘abaixo o gênero’ sem saber sobre o teor conceitual de seus discursos que mais pareciam terem sido instruídos de forma superficial por seus pastores ou padres.

Travestis e transexuais fizeram uma manifestação em frente da Câmara, levantando a bandeira da transexualidade e decidindo as formas de continuidade dos protestos quando o texto voltar para ser votado nos dias 11 e 25 de agosto. Em seguida, saíram em passeata rumo à Praça da República.

A comunidade T, uma das populações mais vulneráveis do planeta, vem se emponderando e tomando consciência de que é no embate político que se conquista a garantia de respeito aos seus direitos civis, ocupando os espaços públicos das ruas e conquistando na raça sua cidadania. A presença de travestis e transexuais num dos centros decisórios de poder como a Câmara Municipal de São Paulo, cobrando daqueles que deveriam representar os anseios de toda a população, e não somente dos que já tem espaço e direitos assegurados pela cultura cisheteronormativa, marca a mudança de paradigmas que a nossa sociedade tem que encarar para construir um futuro mais democrático e inclusivo.

Por um Brasil com mais justiça social e menos discursos de ódio de fundamentalismo religioso.

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