A dominação estrutural sobre o corpo da mulher

Atanásio Mykonios
Revista Krinos
Published in
10 min readMay 30, 2016
Manifestação de mulheres acerca do estupro coletivo divulgado no Twitter

Que poder a mulher tem sobre sua condição social? Que poder a mulher tem sobre sua existência corporal? Quais sentidos são possíveis em face de um processo histórico de dominação que não aponta apenas para uma violência sistêmica contra seu corpo, sobretudo pelo fato de que a sociedade humana construiu uma estrutura de poder que tem na exploração da mulher um de seus pilares mais importantes?

Friedrich Engels, em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, apresenta uma pesquisa que é reveladora, do ponto de vista das relações sociais de poder estabelecidas sobre a mulher, como corpo social de dominação. É bem certo que determinados traços de poder exercidos sobre a mulher, na atualidade, remontam a uma série de elementos históricos que devem ser considerados. Engels afirma:

Os sistemas de parentesco e formas de família, a que nos referimos, difere dos de hoje no seguinte: cada filho tinha vários pais e mães. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a família havaiana, um irmão e uma irmã não podem ser pai e mãe de um mesmo filho; o sistema de parentesco havaiano, pelo contrário, pressupõe uma família em que essa é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de formas de família que estão em contradição direta com as até agora admitidas como únicas válidas. A concepção tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez a poliandria de uma mulher, silenciando, como convém ao filisteu moralizante — sobre o fato de que na prática aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da história primitiva revela-nos, ao invés disso, um estado de coisas em que os homens praticavam a poligamia e suas mulheres a poliandria, e em que, por consequência, os filhos de uns e outros tinham que ser considerados comuns. É esse estado de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de transformações, resulta na monogamia. Essas modificações são de tal ordem que o círculo compreendido na união conjugal comum, e que era muito amplo em sua origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, abrange exclusivamente o casal isolado, que predomina hoje. (1)

Atentem para o aspecto mais significativo dessa citação. A monogamia. Engels prossegue em sua toada e nos mostra que a monogamia se tornou uma imposição histórica sobre o corpo da mulher, precisamente à medida em que o homem-social delimita a sua esfera de produção e para tanto necessita de uma prole bem definida para que trabalhe sob sua jurisdição. O que isto significa em termos concretos? O fato de que é preciso, a partir de um determinado período histórico, controlar o corpo da mulher com a instituição jurídica na monogamia para que a prole seja devidamente marcada, carimbada.

Aqueles filhos gerados a partir do corpo daquela mulher não pertencem mais ao grupo social, a pais e mães comuns, pertencem exclusivamente a uma única propriedade, e para tanto é imprescindível que um corpo de direito seja estabelecido — a monogamia. Esse fato histórico explica muito da condição social da mulher ao longo de milhares de anos. Esse é um aspecto primeiro que deve ser considerado. A monogamia é um ato de poder de dominação sobre o corpo da mulher a fim de que possa gerar a prole necessária para o trabalho na terra, como propriedade do homem.

No entanto, uma das consequências antropológicas da imposição da monogamia, como Engels deixa implícito, é que surge como contrapartida a prostituição, uma vez que o homem não praticar a monogamia, continua a ser poligâmico, enquanto obriga a mulher, socialmente a ser monogâmica. Daí toda a construção de um arcabouço moral instituído, por meio da organização social da família, do clã, da religião, do Estado, chegando às hostes do próprio sistema do capital, que se valeu dessa condição de exploração para manter a estrutura de realização do valor, da abstração da força de trabalho, do dinheiro e do capital.

Mesmo que o capital como sistema global de exploração se valha de toda a humanidade para a sua autovalorização em escala expansionista, teve de se valer de determinados elementos para dar sustentabilidade à sua base estrutural totalizante. Foi necessário, de alguma forma, contar com determinadas organizações da sociedade para produzir a valorização como funcionalidade da exploração.

É preciso aqui dizer que o capitalismo não se caracteriza pela exploração, esta é uma consequência sine qua non do modo de produção e do imperativo que o caracteriza — a sua imperiosa autovalorização, pois capital significa, invariavelmente, mais capital, uma vez que ninguém gera capital para que fique estacionado, como um corpo inerte. Capital é mais capital!

Nesse sentido, o sistema do capital, como articulação orgânica empreendida por parte de seus gestores valeu-se dos instrumentos às suas mãos, historicamente determinados, como a família e sua organização jurídica, em que a mulher tinha a responsabilidade acerca da preservação da monogamia, como propriedade estrutural das formas de produção e reprodução sociais. Mesmo que no processo de modernização das relações de troca, em que a mulher teve seus espaços abertos no interior da sociedade capitalista voltados para o trabalho em especial, a ordem da propriedade não mudou, porque, de alguma forma, a estrutura e o modo como o sistema do capital se desenvolveu e foi gerenciado tem a ver, exclusivamente, com a forma assumida pelo patriarcado. Dentre tantos aspectos a serem destacados, um deles é o fato de que o capitalismo, como sistema estruturado, é substancialmente uma forma masculina.

Aliás, todas as grandes estruturas sociais que vigem são masculinas. As grandes religiões, os grandes sistemas políticos, as relações de troca, as relações sexuais são conduzidas exclusivamente pelo poder masculino como poder social, a ordenação e a operação do aparato jurídico, o contrato de trabalho, etc.

Protestos femininos nas ruas

Dessa forma, o poder sobre o corpo da mulher é exercido historicamente de várias formas. A coerção social como construção de um modelo de poder é, de fato, antiga, e se caracteriza por diversos aspectos que se conjugam. A ordem jurídica que mantém a mulher sob o controle social; a ordem religiosa, que se vale da monogamia e a transforma numa condição moral, haja vista o valor da virgindade como elemento obrigatório para que a mulher pudesse se apresentar como apta a ter a prole necessária à produção; a dominação sexual como garantia de que a mulher é um instrumento da propriedade, ou seja, como elemento das condições para a realização da produção, ela é o esteio dessa forma material, concreta.

Além desses elementos constitutivos, o capitalismo articulou todos esses mecanismos de dominação e inseriu a mulher numa dupla estrutura de produção. De um lado manteve a monogamia no Ocidente e possibilitou que a mulher se situasse na condição de mantenedora do lar, para garantir a produção material básica a fim de que o homem pudesse ser explorado livremente no mercado de trabalho. Em seguida, o capital na sua ânsia de transformar tudo em mercadoria, levou a mulher à mesma condição de exploração de sua força de trabalho, gerando assim uma dupla escravidão — a manutenção das tarefas essenciais monogâmicas e a sua capacidade de vender sua força de trabalho no mercado das mercadorias.

A empresa capitalista, assim como o Estado-nacional, são formas de controle sobre o corpo da mulher, de modo que o patriarcado ainda prevalece sobre todas as relações contratuais. A empresa exige da mulher os requisitos pré-históricos em que ela precisa se apresentar, até hoje, em condições confiáveis para vender o seu tempo de trabalho. Em outras palavras, o sistema do capital exige uma forma semelhante de monogamia sobre o corpo da mulher.

Não podemos, no entanto, olvidar o fato histórico de que nesse caldo de explorações, ainda contamos com a sociabilidade escravagista, que criou raízes profundas sobre o corpo social da mulher. O pertencimento, a ética da propriedade para o dono de escravos assume um caráter de absoluto domínio sobre o corpo e a vida da mulher. Os meios de produção e as forças de produção continuam sob o tacão da força masculina. A escravidão reforça na consciência social a lógica de que a mulher pertence ao grupo masculino e dessa forma, qualquer tentativa de romper essa trágica relação permanece sob o crivo da concessão masculina. Isto significa, em última instância, que ao violentar o corpo da mulher, tem-se a afirmação de que este corpo pertence aos proprietários da produção, essa ética combina perfeitamente com a ética da forma social da mercadoria, como também do capital.

Assim como também a miscigenação é uma violência mascara por uma espécie de discurso da democracia racial, que nada mais é do que obrigar a mulher a manter relações sexuais com seu proprietário, gerando assim uma prole de coloração mista que, de alguma forma, denuncia a prática do estupro escravagista.

Não basta, nesse aspecto, apenas exigir respeito e direitos iguais no interior da relação capitalista de troca. A troca sempre será desigual. Assumir o controle masculino dessas trocas e do modo de exploração não libertará a mulher dessa escravidão. Na verdade, penso que é necessária uma dupla luta. Contra a dominação histórica sobre o corpo da mulher e a luta contra o sistema do capital como um todo.

A democracia sexual só pode ser alcançada se ambas as formas de dominação forem extirpadas da sociedade e de sua história. Isso exige uma árdua tarefa de enfrentamento. A família é um dos conceitos que deve ser enfrentado a fim de que tenhamos possibilidade de abrir a sociedade para uma nova experiência de igualdade.

A resistência quanto a essa questão é imensa no mundo inteiro. O estupro é o aspecto mais brutal dessa relação de poder, em que a mulher se vê absolutamente tomada pelo masculino sobre sua existência corporal e social. É quando, por motivos diversos, o homem-social, coletivamente estabelecido pela ideologia da dominação, investe sobre o corpo da mulher para marcá-lo como sua propriedade definitiva. Não é à toa que na sociedade masculinizada, a pedofilia é muito mais combatida e condenada do que o estupro de mulheres, uma vez que a criança ainda é portadora da perspectiva futura da realização da propriedade na condição de reprodutora material em potencial. Ao passo que a mulher é aquela sobre a qual pesa a responsabilidade estrutural da prole e sua propriedade deve ser marcada institucionalmente. Significa dizer que, em sentido amplo e abstrato, o corpo da mulher pertence à instituição “homem” como detentor do poder sobre o gerenciamento estrutural da sociedade como um todo.

Por isso o estupro também adquire um caráter punitivo, dado que é sempre um recado que o “homem” dá às mulheres como forma de merecimento. Lembrem-se do pronunciamento do deputado federal Jair Messias Bolsonaro em que diz textualmente a deputada federal Maria do Rosário não merecia ser estuprada. No caso, o merecimento é, na realidade, uma punição, a mulher merece ser punida com o estupro para que saiba qual é o seu lugar social.

A reação da imensa maioria quanto a essa questão revela mais sobre o subterrâneo ideológico da sociedade do que o ato do estupro pode dizer por si. É na omissão e no silêncio que podemos confirmar de forma efetiva a estrutura de dominação sobre a mulher em todos os seus aspectos.

É lamentável que nesse cenário ideológico, a mulher também corrobora esse estado de coisas ao assimilar a longa construção de poder que sobre ela foi exercido. Podemos observar, por exemplo, a defesa canina de imensas quantidades de mulheres, em todas as camadas do estrato social, que defendem a monogamia e a família nuclear isolada como modelo de bem-estar social para garantia da ordem moral, como expressão, por exemplo, da vontade das religiões atuais, etc.

Com isso, temos de perceber de forma ampla, profunda e histórica que não se trata tão-somente de exaltar ou enaltecer o papel da mulher na sociedade, trata-se de que toda a forma de dominação para o exercício efetivo do poder sobre o modo de produção reside, substancialmente, na histórica determinação da construção de um modelo social que perpassou períodos até ser encastelado no sistema do capital. A dominação sobre o corpo da mulher nos trouxe até aqui, em que todos os sistemas sociais de reprodução, sejam materiais ou simbólicos, tiveram na exploração da mulher, a base fundamental para se manterem como estruturas de poder e extorsão.

Por outro lado, o apagamento da história da mulher é um elemento ideológico importante. Já nos primeiros trechos do livro sagrado dos cristãos e judeus, a Bíblia, encontramos a narrativa da criação da mulher que é gerada a partir de uma costela de Adão. Isso representa que a mulher não tem nenhum papel histórico, ao contrário, sua história deve ser formalmente apagada, é como se ela nunca tivesse existido dos pontos de vista sociológico ou antropológico, ela é simplesmente uma criação a-histórica que merece apenas continuar a ser dominada a bem dos interesses de quem tem o direito de exploração sobre o mundo — o poder masculino.

Por isso, devemos construir a história da mulher a cada dia, a cada etapa do processo exploração nas trocas do mercado de mercadorias, a cada violência cometida, a cada discriminação, etc. A história da mulher é a composição da forma do capital em sua expressão última — a globalização, é a condição de uma nova forma social só será possível se a história da mulher for escrita com seu sangue e seu sofrimento que não pode ser escamoteado por nenhum poder masculino social.

Referência bibliográfica

(1) ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado: trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan. 9. ed., tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984, p. 31.

Atanásio Mykonios é graduado em Filosofia, mestre em Filosofia Social e doutorando em Ciências Sociais. É também professor adjunto na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), fundador e pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia) e editor e articulista na Revista Krinos.

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