DEPOIS DA CHEIA

AMAZÔNIA REAL
18 min readJul 13, 2015

Trabalho de campo da perícia nas usinas do Madeira está parado por falta de recursos

Os peritos deveriam coletar dados do reestudo do impacto socioambiental das barragens. População será reassentada de áreas afetadas

Ana Aranda, especial para a agência Amazônia Real

Porto Velho (RO) — As cheias recorrentes do rio Madeira e o aumento do volume de chuvas - que se prolongaram neste ano até o mês de junho, quando antes cessavam em março - provocaram nas populações ribeirinhas de Rondônia um medo constante de que suas casas e bens voltem para debaixo d´água na próxima enchente e, assim por diante.

Um ano depois da maior enchente em 100 anos no Estado, registrada em 2014, os efeitos das inundações permanecem presentes na vida e no sentimento no povo com uma certeza: além das mudanças climáticas, a instalação das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau alterou a rota migratória dos peixes e aumentou o assoreamento do leito do rio Madeira.

Os pescadores reclamam do sumiço dos peixes tanto acima quanto abaixo das barragens, diz o ecólogo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), um dos especialistas que deveria estar analisando em campo, por meio de uma perícia técnica independente, o reestudo do EIA-Rima (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) das usinas que foi determinado por uma liminar da Justiça Federal, em março do ano passado.

A usina da Santo Antônio foi instalada a 7 km acima de Porto Velho a jusante de Jirau (ESBR), que foi construída a 120 km (a montante) da capital de Rondônia, distante a 100 km da fronteira de Rondônia com a Bolívia.

Philip Fearnside disse à Amazônia Real que ele e mais dois especialistas - Célio Bermann, do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) e Edna Maria Ramos de Castro, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) - viajaram apenas uma vez para acompanhar o reestudo do EIA-Rima em campo, em Rondônia. A comissão é formada por oito peritos, todos indicados pelo Ministério Público Federal. Sem recursos, eles analisam os dados dos impactos ambientais por documentos elaborados pelos consórcios e enviados ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

“Com exceção de uma viagem inicial às duas barragens e um evento em Porto Velho, o grupo tem ficado basicamente parado. Está parado! Parece que um juiz acima do Raphael (procurador) não apoia a iniciativa, e tem bloqueado recursos e formalização do processo”, disse o maior especialista nos estudos de impactos de construções de barragens na Amazônia, citando o juiz Herculano Martins Nacif e o procurador da República, Raphael Bevilaqua.

Philip Fearnside (blusa azul) em visita ao canteiro de Jirau com membros da Jusitiça (Foto: ESBR)

O procurador Raphael Bevilaqua é um dos autores da ação civil pública com pedido de indenização por dano moral as famílias afetadas. A ação foi julgada pelo juiz Herculano Nacif, da 5ª. Vara Federal de Porto Velho. A decisão obrigou os consórcios Energia Sustentável do Brasil, que construiu e opera a usina de Jirau, e Santo Antônio Energia, responsável pela usina de Santo Antônio, a custearem a perícia técnica. O juiz também determinou que os peritos analisassem o reestudo dos impactos socioambientais, supervisionado pelo Ibama.

Em outra ação, o juiz Herculano Nacif revogou a sua própria decisão que obrigava os consórcios a pagar o trabalho dos peritos. O Ministério Público Federal entrou com um recurso contestando, mas perdeu. Segundo o procurador Raphael Bevilaqua, os peritos indicados trabalham voluntariamente, mas faltam recursos para os deslocamentos da equipe e das viagens de campo, entre outras despesas, o que inviabiliza a análise independente.

Além de Philip Fearnside, Célio Bermann e Edna Maria Ramos de Castro fazem parte da comissão de peritos Carlos Bernardo Vainer, do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN); Alfredo Wagner Berno de Almeida, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA); Sônia Maria Simões Magalhães, do NUMA (Núcleo de Meio Ambiente); Jorge Molina, do Instituto de Hidráulica e Hidrologia (IHH) da Bolívia; e Paulo Andreas Buckup, do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Ictiologia.

Na decisão que obrigou os consórcios a refazer o EIA-Rima, juiz Herculano Martins Nacif pediu que fossem considerados no reestudo todos os impactos decorrentes da vazão histórica do rio Madeira em relação aos aspectos mais relevantes como a ictiofauna, tamanho dos reservatórios, população afetadas e reservas ambientais atingidas, entre outros. O juiz também obrigou os consórcios das usinas a atender as necessidades das famílias atingidas pela enchente, como moradia, alimentação, transporte, educação e saúde sob pena de multa diária de R$ 100 mil e perda da licença de operação.

Na decisão, o juiz Herculano Nacif afirmou que apesar das usinas de Santo Antônio e Jirau serem construídas a “fio d´água” (sem armazenamento) “o modelo criou reservatórios que ampliaram a área alagada a montante (nascente) das barragens”. “O dano é o alagamento suportado pelos moradores da região à margem dos reservatórios. Já o nexo casual entre a conduto e dano é o fato de que áreas que nunca antes seriam alagadas — mesmo com a cheia extraordinária do rio Madeira — agora passam a ser”, disse o magistrado.

Em entrevista à agência Amazônia Real, o juiz Herculano Nacif afirmou que revogou o pagamento da perícia técnica dos especialistas pelos consórcios porque o trabalho deles não é uma perícia judicial determinada pela Justiça, que tem previsão de despesas com honorários.

“Não nomeei essa comissão de peritos. O Ministério Público foi quem indicou a comissão para acompanhar o reestudo. As despesas têm que sair do Ministério Público”, disse o magistrado Herculano Nacif.

Sobre a declaração do cientista Philip Fearnside de que o magistrado não apoia a perícia técnica independente e tem bloqueado recursos, Herculano Nacif reagiu: “Não cabe a mim apoiar “a” ou “b”. Não cabe a mim apoiar ninguém. Os réus da ação (os consórcios) não são obrigados a custear essa ação, não é devida. Se o Ministério Público Federal ou quem quer que seja interessado no processo não concordar, que busque a reformar a decisão, e não fazer um juízo de valor de que a Justiça não está apoiando, isso é irrelevante”, afirmou o juiz.

Para o procurador do MPF, Raphael Bevilaqua, o juiz Herculano Martins Nacif “mudou de opinião” quanto ao pagamento da perícia pelos consórcios. (Leia entrevista exclusiva aqui)

Peixes sumiram e subsistência foi comprometida

Passados 16 meses da decisão que formou a comissão da perícia técnica independente para analisar o reestudo EIA-Rima das usinas de Santo Antônio e Jirau, o ecólogo Philip Fearnside afirma que as análises já comprovam o que as pesquisas anteriores confirmavam sobre os impactos socioambientais das duas barragens no Madeira. Segundo ele, “os impactos são muitos” e enumera cada um:

1) O bloqueio da migração dos bagres é inegável.

2) Sumiço dos peixes tanto acima quanto abaixo das barragens.

3) O deslocamento da população.

4) Destruição dos meios de subsistência da população de pescadores, representando graves problemas sociais.

5) Erosão da orla de Porto Velho.

6) O isolamento do Estado do Acre durante meses na ocasião da enchente de 2014, ambos com um papel das barragens.

Navegue no mapa produzido pelo InfoAmazônia

Com as barragens, assoreamento aumentou

O físico, professor e pesquisador da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Artur Moret, não faz parte da comissão de peritos que analisa o reestudo do EIA-Rima das usinas. Em entrevista à Amazônia Real sobre a relação das enchentes com a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, ele disse que em intervalos de 18 a 20 anos ocorria uma cheia excepcional no rio Madeira. Foi o que aconteceu em em 1950, quando as águas tomaram ruas do centro de Porto Velho. Em 1997, quando o nível do rio chegou a 17,56 metros, até então a marca histórica em 47 anos das medidas hidrológicas.

Em 2014 foi registrada a enchente história, a maior em 100 anos. Este ano ocorreu uma grande cheia, com menos danos, mas foi a quinta mais forte.

“A diferença das outras cheias para estas mais recentes é fundamental nos estudos da hidrologia. O rio Madeira carrega muitos sedimentos. Com a redução do movimento da água nas barragens os sedimentos se acumulam, provocando o assoreamento do rio. Nas proximidades de Nova Teotônio não dá mais para pescar porque o lago já está assoreado”, disse Moret.

O pesquisador da Unir diz que no dia 17 de fevereiro do ano passado, a Agência Nacional da Água (ANA) determinou a abertura das comportas da hidrelétrica de Santo Antônio para garantir a integridade de estruturas das usinas. Segundo Artur Moret, quando uma energia é disponibilizada provoca uma grande turbulência.

“A quantidade de energia disponibilizada na ocasião carregou o sedimento que já estava no lago mais o que era carregado pelo rio Madeira, que se depositou à frente da barragem”, afirmou o físico.

Artur Moret exemplifica as consequências do assoreamento do rio Madeira com a situação da comunidade de Cujubinzinho, que fica no entorno de Porto Velho.

“As pessoas já não têm mais aquela quantidade de produção de frutas e outros produtos cultivados na região por que o sedimento se depositou na frente das casas e em bancos de areia que chegam a um e dois metros. Não é difícil perceber que isto está acontecendo. É só ir lá e olhar. Muita gente, inclusive alguns operadores da Justiça, não têm sensibilidade de olhar este aspecto”, afirmou o pesquisador da Unir, Artur Moret.

Consócios negam relação das obras com a enchente e inundações

Os consórcios das hidrelétricas Santo Antônio Energia e Empresa Sustentável do Brasil (ESBR), que opera Jirau, negam que as barragens construídas ao longo do rio Madeira tiveram relação com a cheia histórica, em 2014.

As obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) receberam investimentos de R$ 33,4 bilhões do governo federal para gerar energia para mais de 40 milhões de pessoas a partir da subestação de distribuição de Araraquara, em São Paulo, no Sudeste do país.

A reportagem procurou os consórcios de Santo Antônio e Jirau para comentar os questionamentos do MPF e do cientista Philip Fearnside, mas apenas a Santo Antônio Energia respondeu por meio de nota. (Leia aqui).

A assessoria de imprensa da Presidência do Ibama, em Brasília, também foi procurada, mas o órgão federal que licenciou as usinas do Madeira não respondeu às perguntas enviadas pela Amazônia Real. Não é a primeira vez que a Presidência do Ibama não comenta denúncias contra os danos ambientais das usinas do Madeira. Em 2014, o órgão não se posicionou sobre a mortandade de peixes no reservatório de Jirau, leia aqui.

Porto Velho durante a enchente histórica.(Foto: Lunaé Parracho/Greenpeace)

Poços artesianos continuam contaminados

Enquanto a perícia técnica no EIA-Rima das usinas de Santo Antônio e Jirau não é concluída para saber se as populações foram afetadas pelas barragens, as famílias vão tentando retomar a vida em meio a novas inundações.

A cheia desse ano do rio Madeira foi considerada a quinta maior em 47 anos do monitoramento realizado pelo Serviço Geológico do Brasil, em Porto Velho. O nível da água alcançou a marca de 17,18 metros, ficando 2,56 metros abaixo da enchente histórica de 2014 que chegou a 19,74 metros, a maior em cem anos.

O coordenador da Defesa Civil afirma que estas famílias tiveram os poços artesianos contaminados e estão sendo abastecidas com água potável. A cada 20 dias, é o órgão que entrega a cada família fardos contendo garrafas de 2 litros de água e kits de material de limpeza.

“O número de pessoas atingidas esse ano (8.055) pela enchente só não foi maior porque no ano passado já haviam sido retiradas as populações mais vulneráveis”, afirma o diretor de Planejamento e Operação da Defesa Civil de Rondônia, tenente-bombeiro Artur Luiz Santos de Souza, classificado a enchente histórica como um desastre natural de grande proporção.

Já o coordenador da Defesa Civil de Porto Velho, Marcelo Silva Santos confirma os impactos na pesca e no assoreamento do rio Madeira, mas não cita responsabilidades das usinas nos danos sociais e econômicos da população.

Os sedimentos endurecidos (areia e vegetação) levados pela água formaram bancos de areia com mais de um metro de altura, o que impede a agricultura de várzea. As famílias que sobrevivem da pesca estão com a produção reduzida. Elas dependem da ajuda de parentes e de recursos governamentais”, disse Santos.

Governo fará deslocamento oficial de famílias dos distritos

Como o nível das águas do rio Madeira permaneceu mais alto do que nos anos anteriores no período da vazante (seca) e, para evitar que as populações sofram com inundações e tenham danos sociais e econômicos na próxima cheia, pela primeira vez o governo de Rondônia e a Prefeitura de Porto Velho irão promover um deslocamento institucional das populações afetadas pela enchente nos distritos.

Os primeiros distritos beneficiados com os deslocamentos serão os da chamada região do baixo Madeira. Nessa área, a população que conseguiu voltar para casa continuou impedida de plantar na área de várzea, pois as terras férteis permanecem alagadas. Durante a cheia do ano passado, não foi possível salvar animais domésticos. As árvores frutíferas morreram e os poços artesianos foram contaminados, dificultando o acesso a água potável. Casas foram destruídas por sedimentos. Com o tempo, eles endureceram, formando grandes bancos de areia que hoje impedem a utilização de banheiros e até mesmo o acesso aos locais onde vivia antes a população.

Cerca de 1.800 mil famílias (9.000 pessoas) moradoras dos Distritos de Porto Velho: Nazaré, Calama e São Carlos serão removidas para uma área descontínua de cerca 2.687 hectares localizada em terras altas. Nelas, o governos planejam construir casas populares, reformar e transferir escolas, postos de saúde, entre outras bens públicos. Os terrenos serão divididos em lotes para reassentar as famílias.

Em Nazaré, uma das áreas mais afetadas pelas inundações e distante a 200 quilômetros de Porto Velho, cerca de 300 famílias (1.500 pessoas) foram retiradas do distrito pela Defesa Civil durante a enchente do ano passado e abrigadas em Porto Velho e comunidades vizinhas. Com a aquisição de uma faixa de terra de 150 hectares, a prefeitura vai reassentar 400 famílias (2.000 pessoas), porém em terras altas, distantes das alagações

No Distrito de Calama, no baixo Madeira, 692 famílias (3.460 pessoas) foram atingidas pela enchente de 2014. Essas famílias serão deslocadas para uma área de 300 hectares distante de inundações. Já em São Carlos os reassentamentos de 700 famílias (3.500 pessoas) serão numa área de 149 hectares, mas para a outra margem do rio Madeira.

Segundo o secretário municipal de Planejamento, Jorge Elarrat, essas terras estão longe de áreas de risco das enchentes do rio Madeira. Elas foram adquiridas de terceiros e da União, mas precisam ainda de regularização fundiária, licenciamento ambiental e urbanização. Ele disse que após o processo que envolve a Secretaria de Patrimônio da União, o Programa Terra Legal e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) é que os órgãos públicos poderão providenciar as instalações de escolas, unidades de saúde e reassentar as famílias. Não existe uma data para começar as obras de infraestrutura e da mudança da população de Nazaré, Calama e São Carlos.

Elarrat afirma que os deslocamentos das populações dos distritos para áreas mais altas e, em alguns casos distantes do local de origem de nascimento delas, dividiram opiniões. Há os moradores que querem se mudar e os que se negam a sair dos locais de origem. No Distrito de São Carlos, por exemplo, a resistência é deixar o lugar onde há o cemitério das comunidades, a igreja tradicional e toda uma história de vida. As famílias serão removidas para outra margem do rio Madeira, distante 5 quilômetros do local de origem.

Para amenizar os impactos sociais em São Carlos, Elarrat disse que um projeto de urbanização foi elaborado por alunos e professores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Uniron (União das Escolas Superiores de Rondônia). O distrito, que está sendo chamado de “Nova São Carlos”, ficará a 70 quilômetros de distância do centro de Porto Velho. O projeto prevê construção de infraestrutura do serviço público, com escolas, posto de saúde, área de lazer com arborização e vias de tráfego específico para veículos, pedestres e ciclistas.

O secretário municipal de Planejamento, Jorge Elarrat, não informou o total de gastos previstos para as construções dos novos distritos, mas anunciou que o Plano de Trabalho e Reconstrução destinado a recuperar ou refazer prédios destruídos pela cheia, proteger encostas ameaçadas de desmoronamento, reconstruir os distritos, entre outras obras, foi orçado em mais de R$ 200 milhões. Esse plano, segundo ele, foi enviado para o Ministério da Integração em setembro do ano passado. “O governo ainda não se manifestou sobre este recurso, e não sei se haverá prioridade para estas obras diante da crise econômica do Brasil”, afirma o secretário.

A Defesa Civil apoiou o plano de deslocamento das famílias dos distritos afetados pela enchente. Para o coordenador de operações da Defesa Civil do Estado de Rondônia, tenente Artur Luiz Souza dos Santos (do Corpo de Bombeiros), a cultura difundida na Amazônia de viver em áreas de várzea precisa ter um fim. Ele afirma que as áreas mais baixas, com risco de alagação, devem ser desocupadas e as populações deslocadas para áreas livres de inundação e desabamento, tanto na região urbana como na rural.

“As prefeituras e os estados sempre aceitaram esta situação, mas a determinação agora é que não sejam construídas obras públicas em áreas de risco”, disse tenente Souza dos Santos.

“A beira do rio é o meu lugar”

No Distrito de Calama, no baixo rio Madeira, 692 famílias foram atingidas pela enchente de 2014. Essas famílias serão deslocadas para uma área de 300 hectares localizada na região mais alta do distrito.

Moradora de Calama, Maria das Graças Ferreira Silva, 55 anos, disse à agência Amazônia Real que cresceu vendo o rio Madeira subir e descer na cheia e na seca. Mas o que enfrentou na enchente histórica lhe provocou um medo. “Passei a sofrer de depressão depois da grande cheia. Por um bom tempo eu não conseguia comer e nem beber água. Fiquei tão magra que dava para entrar numa garrafa”, afirmou.

Maria das Graças Silva disse que procurou o SUS (Sistema Único de Saúde) para receber atendimento psicológico, mas só conseguiu marcar uma consulta médica para depois de dois meses. Com isso, passou a se tratar com medicina homeopata e plantas medicinais, por sugestão de uma amiga. “Melhorei bastante. Pelo menos eu já consigo comer”, afirmou, mas contou que a família ainda não conseguiu consertar a casa “que entortou com a cheia”.

A dona de casa Raimunda Soares das Neves, 43 anos, confirma a situação desoladora no Distrito de Calama. Proprietária de um sítio na localidade de Ilha Nova, ela afirma que “perdeu tudo: os animais, as fruteiras, a lavoura. O sítio ficou irreconhecível”.

Também de Calama, mas moradora de Porto Velho, a técnica administrativa Veradiana Bezerra dos Santos, 43 anos, trabalha com a venda de bombons, bijuterias e outras miudezas nos barcos de passageiros que navegam ao longo do Madeira. Ela reclama das vendas, ” que diminuíram em 80%”, calcula.

“Sem peixe desde a construção das hidrelétricas e sem ter como plantar, está todo o mundo sem dinheiro. O movimento só aumenta quando o pessoal recebe a ajuda de custo do governo”, disse Veradiana Santos.

Conferente de um barco de passageiros que percorre os distritos do médio e baixo Madeira, Mateus Ferreira Neto confirma a redução do poder aquisitivo da população do Calama. “As cargas de hortifrutigranjeiros reduziram drasticamente, assim como o número de passageiros”, disse.

Na área de influência da BR-364, que liga Porto Velho a Rio Branco (AC) e que também ficou intransitável pela força da água, foram afetadas na enchente histórica do rio Madeira as populações dos Distritos de Abunã, Fortaleza do Abunã e Jaci- Paraná, região do alto Madeira. Das 636 atingidas, 35 não conseguiram retornar às residências por conta dos estragos provocados pela alagação do ano passado.

População do bairro do Triângulo não se recuperou

O bairro durante a enchente de 2014. (Foto: Lunaé Parracho/Greenpeace)
O bairro hoje sem asfalto, energia precária e abandono de casas (Foto: Ana Aranda/AmReal)

Em menor proporção do que no ano de 2014, a cheia deste ano do rio Madeira em Porto Velho fez o município decretar estado de alerta no mês de janeiro, quando as águas começaram a subir. Os bairros Nacional, Triângulo, Balsa, São Sebastião, Baixa União, Belmont e Milagres foram novamente atingidos por inundações.

A reportagem da agência Amazônia Real visitou o bairro do Triângulo, um dos mais antigos pela cheia do rio Madeira desde 2014. A população ainda não se recuperou dos danos passados e enfrentou outra enchente este ano. As marcas das destruições das inundações estão nas ruas, nos prédios e nas casas.

Habitado por descendentes de trabalhadores da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o Triângulo está distante a 6,5 quilômetros da usina hidrelétrica de Santo Antônio. Por causa dos transbordamentos e forte correnteza, parte da orla do bairro na margem do rio desmoronou e desapareceu.

Antes mesmo da grande cheia histórica, a abertura de comportas da hidrelétrica de Santo Antônio já tinha causado estragos no Triângulo. Um total de 150 casas do bairro foram atingidas pelos banzeiros e destruídas pelas águas. A Justiça determinou que o consórcio responsável pela obra Santo Antônio Energia (SAE) indenizasse os moradores.

Filho de ferroviário e neto de um dos trabalhadores da construção da ferrovia, o aposentado Jesuá Johnson, 64 anos, lembra do bairro com “saudade e tristeza”. “Aqui moravam as famílias mais antigas da cidade. Uma comunidade importante da história e da cultura de Porto Velho. Que desapareceu. Uma perda irreparável para a cidade”, disse Johnson.

Um dos poucos moradores que ainda vivem na região afetada do Triângulo, próximo ao ponto em que o bairro desmoronou, é o produtor de goma de tapioca e farinha de macaxeira Nathan de Oliveira, 78 anos. Ele diz que também está se preparando para sair do local, onde viveu durante 52 anos.

“Comprei um terreno em uma região próxima, mas distante das águas, onde instalar uma fábrica e a minha família. Com as hidrelétricas (no rio Madeira), tenho medo de ficar porque não sei o que pode acontecer”, afirmou Nathan de Oliveira.

(Foto: Ana Aranda/AmReal).

Recurso do governo é a atual fonte de renda dos ribeirinhos

Ao todo, 7.640 famílias (cerca de 39 mil pessoas) receberam o pagamento do aluguel social do governo de Rondônia, em 2014. Já em março deste ano, o Estado teve dificuldades para a distribuição do recurso. O Banco Central determinou que os pagamentos deveriam ser feitos por meio de cartões magnéticos, ao invés da apresentação de documentos. Uma investigação apura se os entraves nos pagamentos aos beneficiados foram provocados por fraudes no recebimento dos recursos no ano anterior.

A Prefeitura de Porto Velho anunciou um projeto de apoio aos ribeirinhos como a recuperação de áreas agricultáveis, estradas e retirada dos bancos de areia levados pela cheia nas áreas habitadas. No último dia 3 de junho, o secretário municipal de Agricultura, Leonel Bertolini, anunciou a recuperação da Feira do Produtor, em 60 dias, com recurso de R$ 227, 7 mil.

Já na zona urbana de Porto Velho, as famílias atingidas pela cheia de 2014 ainda aguardam os benefícios do Programa Minha Casa, Minha Vida. A distribuição das casas esbarra na falta de documentação dos moradores. Das cerca de mil pessoas cadastradas para receber uma casa do Condomínio Orgulho do Madeira, aproximadamente 200 ainda não apresentaram documentos pessoais exigidos pela Caixa Econômica Federal.

“Alguns delas não têm nem a Certidão de Nascimento”, afirmou coordenador de Defesa Civil municipal, Marcelo Santos. Por isso, muitas famílias atingidas pela cheia histórica retornaram às moradias que foram inundadas pelas águas do rio Madeira.

O relatório da Defesa Civil sobre os danos sociais e econômicos decorrentes da enchente histórica aponta que os prejuízos de sete municípios afetados: Porto Velho, Cacoal, Pimenta Bueno, Rolim de Moura, na área de influência da BR-364, Guajará-Mirim, Nova Mamoré e Costa Marques, na região de fronteira com a Bolívia, somam R$ 2, 8 bilhões (bens privados) e R$ 620,5 milhões (bens públicos).

A população atingida pelas inundações foi de 153.692 pessoas, em 2014. Destas, 47. 992 ficaram desabrigados e 14.917 desalojados. Em 2015, foram afetadas 8.055 pessoas pela enchente no Estado.

Segundo informações do governo de Rondônia à agência Amazônia Real, foram destinados R$ 22 milhões (incluindo R$ 15, 4 milhões da Defesa Civil Nacional) para o atendimento das famílias afetadas e ajuda humanitária à população. (Colaborou Kátia Brasil)

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  • Esta reportagem especial faz parte do projeto “Amazônia Real — promovendo a democratização e liberdade de expressão na região amazônica” que recebe financiamento da Fundação Ford, por meio do programa “Promovendo Direitos e Acesso à Mídia”.

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