Sobre corrupção, corruptos e corruptores

Waldisio Araujo
Revista Krinos
Published in
5 min readMay 28, 2016
Legislação Corrupta (1896), por Elihu Vedder. Imagem Wikipedia.

Tendo em vista os acontecimentos dos últimos dois anos no cenário nacional, cremos que o que está cada vez mais claro é o que, no fundo, já sabíamos desde sempre: o Estado brasileiro, em seus três poderes e nos níveis federal, estadual e municipal, é uma estrutura cheia de buracos em que TODOS (sobretudo servidores públicos não concursados e grandes empresários) de uma forma ou de outra podem meter a mão, ainda que uns talvez tenham mais acesso ou menos escrúpulos que outros em fazê-lo. Em outras palavras, o mal é estrutural mesmo e essa ladainha e troca de acusações entre partidários e “apartidários” não toca na ferida que deveria ser escancarada: é preciso fechar os buracos, ao menos fazer disso um progresso constante de tapamento, dificultando que corruptos e corrruptores os encontre e deles se utilizem. Em suma, o remédio para a maioria dos males seria uma profunda reforma administrativa, política e judiciária que fundamentasse algumas cláusulas pétreas na Constituição, suficientes para que algum partido não tivesse fácil condição de burlar os níveis de proteção instituídos — se possível enchendo de armadilhas comprometedoras o caminho dos mal-intencionados.

No entanto, se olharem em volta verão que ninguém está seriamente interessado nessas reformas e o nível continua na baixaria das acusações de lado a lado, de modo que, infelizmente, resta-nos esperar que o mau-cheiro levantado quando se mexe a carne putrefata incomode mais — o que tende a acontecer mais frequentemente do que nunca, a julgar pelos efeitos das recentes delações (premiadas ou não) e divulgação de escutas telefônicas.

Está cada vez mais claro que corrupção sempre houve no Estado brasileiro e em todos os partidos, e esperar investigações para acreditarmos nisso é somente uma questão de prurido legalista, aliás em franca decadência porquanto também o Judiciário e os mecanismos de controle e divulgação de delitos têm estado sob fortíssima suspeita. De fato, o imaginário do povo é que tende a só ver corrupção no Executivo, mas ela está por todo lado, e no próprio Executivo encontra-se por toda parte — já que inclui mesmo cargos concursados, ou seja, não nomeados pelos governantes e até opositores destes. Contudo, é no Legislativo que tem se concentrado o fluxo principal do mal-caratismo e da desonestidade, sem contar que o Judiciário aparece cada vez mais como peça-chave dos jogos de facilitação e acobertamento dos crimes contra os cofres públicos.

Mas é espantoso como a população e a mídia em geral ameniza o caráter corrupto das empresas, num movimento sinistro que as torna algo praticamente incacessível à investigação e punição legal, e a isso se relacionam várias anomalias legais. Em primeiro lugar, costuma-se agir contra as pessoas físicas com muito mais rigor e mesmo requintes de crueldade jurídica e policial que com as pessoas jurídicas empresarias, que em geral escapolem sempre ilesas. Tudo ocorre como se a empresa fosse apenas um aglomerado de indivíduos e não tivesse uma estrutura que exerce efeitos no mundo. Em segundo lugar, as pessoas parecem cegas ao fato de que as empresas que aparecem na maioria das delações doaram milhões tanto para as campanhas de Dilma quanto para as de Aécio, Marina e outros. É ingênuo demais acreditar que o retorno desse “investimento” só aconteceria se o PT fosse eleito (como foi) e não o PSDB ou o PSB. O que essas grandes empresas querem mesmo é o acesso fácil e sigiloso aos buracos do Estado, e pagam muito alto por tal acesso, que será efetivamente utilizado, independentemente do partido ou governo que for eleito. E há ainda, em terceiro lugar, a cegueira popular em não querer ver que essa lambança não é coisa especifica do nosso tempo. A Oderbrecht, por exemplo, era ponta de lança dos governos militares em países do Oriente Médio e da África durante a ditadura militar, e continuou assim nos governos democráticos que se seguiram, até hoje, vencendo licitações de nível nacional e internacional por todo esse tempo. A OAS era apelidada, também durante os governos militares de “Obras Assistidas pelo Sogro”, porque diziam que o seu diretor era genro de ACM, mantido no governo da Bahia pelos militares e vencedora de praticamente toda licitação estadual do Governo baiano; e continuou assim nos governos militares e nos seguintes. Achar que essas empresas eram boazinhas e honestas antes e só nos governos do PT tiveram acesso aos buracos do Estado é ingenuidade ou má-fé. Sobre a atuação suspeita dessas e outras gigantes das licitações desde (pelo menos e inclusive) a ditadura militar, sugiro a leitura deste interessante ARTIGO de Adriano Belisário.

Portanto, é burrice achar que se fossem extintos todos os grandes partidos de situação e de oposição atuais a corrupção acabaria ou seria reduzida a níveis insignificantes; isso seria negar que o buraco é grande e está espalhado por toda a estrutura — mais ainda: que ele é tão estrutural quanto a opção pelo presidencialismo ou quanto a divisão em três Poderes. É preciso, sim, responsabilizar partidos como culpar empresas, assim como é preciso investigar e punir tanto políticos quanto empresários (sem contar as pessoas comuns, do funcionário público concursado ao mais humilde cidadão, pois os tentáculos adocicados do Estado se oferecem em profundidade a todos). Que se prendam políticos e empresários, mas acima de tudo que a tripla reforma que mencionamos (política, administrativa e judiciária) também cobre responsabilidade dos partidos e empresas, pois há em seus estatutos ou programas cláusulas que tanto facilitam operações fraudulentas quanto dificultam as ações de investigação, fiscalização e punição.

Em suma, é assim que vemos o abismo que estamos ainda a cavar. Esse buraco imenso e poroso estende-se para todos os lados e não vemos quase ninguém preocupado em tapá-lo. Mas temos feito certas conquistas de duas décadas para cá e cremos ser necessário que as defendamos com afinco nesses tempos turbulentos que correm: a proibição dos showmícios, a urna eletrônica e biométrica, a relativa autonomia investigativa da Polícia Federal e a extinção do financiamento privado de campanha eleitoral. Esses quatro itens tornaram mais difícil a manipulação e o casuísmo que fertilizam todo tipo de corrupção. Precisamos estar atentos, pois políticos profissionais, mídia e juízes tentarão neutralizá-los, a fim de retomarem a facilidade e a impunidade, ainda vigentes, e tentarem impedir que cheguemos ao ponto ideal: que um dia corrupção seja caso de polícia antes que bandeirinha política, ou seja, que a política venha a ser campo de debate de opiniões mais do que guerra de patrulhas ideológicas que disfarçam interesses escusos de todos os lados. Esperamos conquistar o tempo em que imaginar que corrupção é em si coisa de um partido e não de outros seja tão bobo quanto desconverter-se do Catolicismo só porque existem padres pedófilos.

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