O futebol nos arquivos da repressão

Gritos de gol, gemidos de dor: o futebol como instrumento de liberdade contra a Ditadura Militar

Revista Fora da Área
Revista Fora da Área
6 min readApr 2, 2015

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Por LUCAS PEDRETTI

Democracia Corinthiana

O que os documentos da ditadura ensinam sobre o futebol?

Em 2013, quando eclodiram as Jornadas de Junho, a entidade organizadora do futebol mundial passou a figurar como um dos principais alvos das críticas dos manifestantes: todos queriam saúde e educação padrão FIFA. Fruto da justíssima indignação de quem via bilhões de reais sendo destinados a estádios megalomaníacos e pouco coerentes com a realidade nacional, essas críticas acabaram, muitas vezes, recaindo sobre o próprio futebol. Em vários momentos, retomou-se a máxima segundo a qual o esporte bretão seria o ópio do povo.

Essa visão levou a embates homéricos entre os que pregavam o boicote total às competições organizadas pela FIFA e aqueles que, apesar de tudo, continuavam interessados em olhar para dentro das quatro linhas quando a bola rolava. Em jogo estava a questão sobre se seria ou não legítimo torcer para a seleção quando o futebol estava relacionado com os elementos que eram alvo dos protestos.

O dilema não era novo. Remonta, na verdade, às discussões travadas nos aparelhos comunistas e nas celas do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) no ano de 1970. Em plena ditadura empresarial-militar, com amigos presos e amigos sumindo assim, o Brasil jogaria a Copa do Mundo de Futebol no México, após a derrota na Inglaterra em 1966. Os militantes contrários ao regime de exceção e amantes do futebol se viram obrigados a decidir se seria coerente torcer por uma seleção que representava o país cujo governo torturava, matava e desaparecia em nome de um projeto político-econômico.

A Taça do Mundo é nossa!

O que para alguns pode soar como um dilema bobo, uma questão menor, na realidade revela aquilo que nós sabemos há muito tempo: futebol, no Brasil, é coisa séria. Não à toa, não foram poucos os militantes que, mesmo de dentro das celas das prisões, talvez entre uma sessão e outra de tortura, buscaram acompanhar os resultados das pelejas — e certamente comemoraram a vitória da amarelinha.

O homem que por muito tempo foi considerado inimigo número um da ditadura, Carlos Marighella, negro, baiano e torcedor do Vitória, provavelmente teria feito coro às comemorações. Amante do futebol, a ditadura não fora suficiente para fazê-lo parar de torcer — só quando o assassinou em São Paulo, um ano antes da Copa de 1970 e em um dia de jogo no Pacaembu.

Para entender o motivo pelo qual futebol é coisa séria, importa retomar suas origens no Brasil. O esporte chega no país como Football, um projeto das elites, uma manifestação branca e refinada. Entretanto, não demora muito para emergir o Futebol — negro, operário, suburbano. O significado que o esporte passou a carregar, sendo praticamente impossível desvinculá-lo da própria nacionalidade, foi fruto de muitas disputas e conflitos em torno dos significados e das possibilidades que o futebol oferecia como elemento de construção de identidade e como vetor de contestação (ou reafirmação) de regras sociais estabelecidas.

Dito isso, podemos voltar aos cárceres da ditadura (no sentido figurado, por favor). Para muitos, aceitar torcer para o Brasil em um momento como aquele poderia significar peleguismo, alienação ou quaisquer outras palavras que se queira usar. Comemorar a vitória de 1970 poderia ser visto como uma traição à revolução. Da mesma forma, assistir aos jogos da Copa das Confederações de 2013 ou da Copa do Mundo de 2014 poderia ser uma traição às jornadas de junho.

Essa visão empobrecedora de futebol como ópio do povo revela um profundo desconhecimento — sobre o futebol, mas principalmente sobre o povo (seja lá o que isso signifique). Para dialogar com ela, usarei como exemplo dois documentos do Sistema Nacional de Informações (SNI), órgão criado pela ditadura para monitorar todos os aspectos da vida dos brasileiros. Os documentos fazem parte daquela parcela da documentação sobre a ditadura que é pública e pode ser encontrada no Arquivo Nacional.

O primeiro deles, tornado público pelos jornalistas Aiuri Rebello e Rodrigo Mattos em matéria no site UOL de 11/04/2013, diz respeito a uma conhecidíssima figura: José Maria Marín, o Zé Medalha. Ex-presidente da CBF, Marín foi, como mandatário da entidade, um exímio ladrão de medalhas. Seu invejável currículo, entretanto, não se limita a larápio de premiações em competições juvenis. Ainda mais grave é o fato de Marín ser um personagem central no episódio que culminou na morte do jornalista Vladmir Herzog.

Como se vê, mais que um mero apoiador, Marín era um engajado com a ditadura. E isso se comprova com um documento do SNI que monitorava Zé Medalha (sim, a ditadura monitorava até seus aliados mais próximos). Os agentes do órgão, ao traçar um perfil de Marín, escrevem: “Atitude frente à Revolução de 1964: integrado”. O texto aponta para diversos fatos da ilibadíssima biografia do futuro dirigente, apontando que ele “é considerado fraco pelos seus pares”. Ainda assim, consta que “sua candidatura tem apoio de círculos militares e de elementos ligados ao Ministro da Justiça”. Fraco, mas integrado à “revolução de 1964” e próximo a quadros do regime. Talvez isso ajude a entender a ascensão política do dirigente.

O documento, datado de 78, não chega a abordar as relações específicas de Marin com o Futebol. Entretanto, nos deixa ver a origem daquele que se tornaria o presidente da CBF com a saída do também nada saudoso Ricardo Teixeira.

O segundo documento do SNI que quero abordar foi localizado pela Comissão Estadual da Verdade do Rio (CEV-Rio) e tornado público pelo Jornal EXTRA, no dia 22/03. O documento se refere ao monitoramento, por parte dos órgãos de informação e repressão da ditadura, a uma torcida organizada intitulada Flanistia. Em pleno Brasil x Uruguai no Maracanã, os torcedores organizados promoveriam um ato no estádio, em conjunto com o Comitê Feminino pela Anistia, em defesa da Anistia ampla, geral e irrestrita.

O SNI, ao tomar conhecimento de que o ato ocorreria, envia um telegrama para o DOPS. O delegado de plantão no dia, então, determina que uma equipe compareça ao estádio e afirma que “toda e qualquer faixa sobre a anistia deve ser arrancada, assim como cartazes ou panfletos”. Inclusive, para aqueles que hoje tentam entrar com faixas e dizeres políticos em estádios, ou mesmo que busquem se manifestar do lado de fora deles, a ordem deve soar bastante comum.

Com a descoberta da documentação, a CEV-Rio reafirmou, por um lado, aquilo que todos já sabemos: a ditadura monitorou cada passo de todos os grupos que ela enxergava como potencialmente perigosos e subversivos — incluídas, então, as torcidas de futebol. Mas, por outro lado, foi além: ao jogar luz sobre a existência dessa torcida, a Comissão recuperou a memória de mulheres e homens que, por meio do futebol, buscaram combater o regime de exceção, utilizando o esporte como uma ferramenta de transformação da realidade.

Entretanto, mais que somente usar o futebol para transformar a sociedade, a proposta de uma torcida organizada que se constrói a partir da luta pela anistia política coloca uma disputa em torno do próprio significado do futebol. O que ele deve ser? A única alegria possível após uma sessão de tortura ou a imagem de Médici com os vitoriosos de 1970? Ele pode ser o operário negro nos subúrbios ou o almofadinha na Zona Sul. Pode ser a geral ou o camarote; a várzea ou o elefante branco. Pode ser a Democracia Corintiana, João sem Medo, Afonsinho e Doutor Sócrates. Mas também pode ser Havelange, Teixeira, Blatter e Valcke. Pode ser Futebol ou football. Pode ser, enfim, Flanistia ou Marín.

(LUCAS PEDRETTI é vascaíno e aspirante a historiador.)

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