Para além do hackeamento da Democracia

A questão é de hardware: estrutura lógica e material

Gilberto Miranda Junior
Revista Krinos
13 min readMay 9, 2016

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Manifestação a favor da democracia

Acabei de ler o ótimo texto de André Silva na Revista TrendR, chamado Democracia de Código Aberto. Seu apelo é que deveríamos abrir novamente o Código da Democracia, pois hoje seu código encontra-se fechado e blindado pelas instituições, “de modo que nós, pessoas comuns, dificilmente conseguimos consultar, modificar, reutilizar, replicar sua solução”.

Embora comungue e celebre com muitos outros essa ideia que vem sendo difundida, é preciso tecer algumas considerações que julgo de suma importância. Em geral, toda crítica à democracia assenta-se em sua apropriação indevida pelas instituições do Estado. É um discurso interessante, mas que encerra somente meia-verdade sobre essa questão. É um discurso que se fixa na institucionalização para explicar a atual falta de representatividade vivida pela maioria das pessoas. Porém, se pararmos aí, corremos o risco de cair em um discurso moralista que vê o Estado intrinsecamente mau, sendo gerido e afetando a vida de todos para o benefício de uma casta executiva que aparelha legislativo e judiciário para seu enriquecimento ilícito e manutenção do poder. Em uma crítica um pouco mais profunda, podemos perceber que não é bem assim. Essa crítica não está, como podemos suspeitar, no berço da democracia na Grécia Antiga. Para que ela nos sirva para entendermos melhor como a Democracia se deixou ‘oficializar’ como um bem do Estado e não das pessoas precisamos analisar o que se tornou a democracia na formação dos Estados Nacionais, onde há uma nova configuração de hardware pela qual a Democracia voltou a ‘rodar’ desde seu nascimento. Ou seja, como ficou claro, a meu ver, é muito mais uma questão de hardware do que de software.

É muito sedutor pensar que, independente do hardware, podemos tornar o sistema operacional um código aberto e promover um ambiente colaborativo e participativo para modificações, apropriações e ajustes tais que atendam às necessidades específicas de cada usuário ou grupo de usuários. Poucos pensam, porém, acerca da estrutura pela qual esses sistemas rodam, o quanto ela limita sua aplicação, desenvolvimento, modificação e, principalmente, sua ampliação para além do que a estrutura permite.

Pensar a democracia como um sistema Open Source, ‘hackeá-la’ como propõe a cultura hacker e o movimento do Software Livre pode ser um início, um começo. Assim que começarmos operá-la se tornará evidente que o problema não está exatamente na possibilidade de torna-la mais colaborativa e participativa, mas na própria estrutura, ou seja, no hardware em que ela pode, no momento, rodar. Ficará evidente que para que essa colaboração, bem como possíveis ajustes, aplicação e desenvolvimento dinâmico da democracia sejam possíveis, será preciso o exercício de um conceito abstrato muito nosso conhecido, mas que, apesar de ser vendido como existente, tem o flagrante inconveniente de danificar e dar ‘bug’ no sistema operacional e no hardware em que roda. Em geral, embora seja algo em que se fala constantemente, toda tentativa de aplicação desse conceito acaba sendo considerado um problema. A solução para esse problema sempre foi a blindagem do hardware através de softwares que permitissem (e solicitassem compulsoriamente) ao usuário o menor esforço possível. Quanto menos o usuário domina, conhece e pode interferir nas configurações que asseguram a lógica que comanda o mecanismo que integra hardware e software, mais o sistema como um todo nos faz parecer eficiente. Sua contra-medida e possibilidade de ‘hackeamento’ só são possíveis a partir de uma vivência efetiva da cidadania.

É preciso, portanto, compreender a partir do plano da cidadania e da liberdade como o ‘hackeamento’ da democracia poderá se desenvolver plenamente exigindo um upgrade no hardware que a suporte em suas novas possibilidades. É preciso entender que tipo de upgrade é necessário, ou mesmo se não será necessário o desenvolvimento de um novo hardware, sob outros paradigmas, para que aquilo que emergir do ‘hackeamento’ e suas possibilidades possam se dar plenamente. O usuário precisa, em primeiro lugar, deixar de ser considerado um vírus e, ao invés de sofrer todo tipo de blindagem e repressão para sua ação, ser parte fundamental da sub-rotina pela qual todo o sistema se sustenta para rodar o melhor possível, sendo o responsável direto pelas demandas de upgrade do hardware.

Questão de Hardware x Sistema Operacional

O hardware é a estrutura material que possui lógica e mecanismos próprios para que o sistema operacional e os softwares rodem sem bugs e obtenham o máximo de eficiência naquilo a que se propõem. Um dos grandes problemas no desenvolvimento de softwares é aquilo que ele exige do hardware para que sua potencialidade seja atingida ao máximo. Em última instância é a partir do hardware a condição de possibilidade efetiva para que um software possa rodar e cumprir funcionalmente aquilo a que se propõe. Isso equivale a dizer que é o hardware que determina até onde o software pode ir. Mas não é tão simples assim. Há, nesse jogo, uma dialética própria. Conforme os softwares demandam mais funções, em geral, esbarram nas limitações do sistema operacional que, por sua vez, é limitado pelo hardware, o que cria a necessidade de upgrades, melhores conexões e capacidade de processamento, mais potência de memória para armazenagem de informações (ROM) e/ou para fazer diversas tarefas ao mesmo tempo (RAM). Ou seja, há uma relação dialética entre sistema e meios materiais, numa espécie de causalidade circular complexa e em geral ditadas por interesses específicos e novos que vão surgindo de acordo com o aumento de complexidade dessa relação. Há de se notar também que para a esmagadora maioria dos usuários, as determinações do hardware em relação ao Sistema Operacional e aos softwares que rodam nele não faz a menor diferença. Para a maioria essa relação determinística e circular de auto-referência e de reforço redundante cria uma metafísica pela qual toda a realidade vivida se encerra nela. Para a maioria, o Windows só vai deixar de prestar se deixar de ser Windows, pois sua consciência está formada a partir do que ele disponibiliza, enquanto Desktop, de ícones pelos quais a realidade é percebida.

É impossível deixar de trazer essa metáfora para uma análise social sem considerar nosso hardware correlato aos meios pelos quais a nossa sociabilidade é determinada e tem, em nosso Sistema Operacional (política institucional e Estado), sua manutenção e preservação. Assim como não há como deixar de considerar que a democracia plena, enquanto uma interface dentro do sistema operacional pelo qual rodariam diversos programas funcionais que atendam as necessidades dos usuários, em última instância, dependa dos meios pelos quais construímos nossa subsistência (meios de produção, circulação e condições de consumo). Esses meios encerram-se em nosso modo de produção, nossa economia. Eles são a condição de possibilidade para o desenvolvimento de sistemas que, em um primeiro momento, limitam-se a essa estrutura.

Quando mudamos do DOS para o Windows, muitos softwares foram atualizados para a nova plataforma. Assim como quando saímos do feudalismo e entramos no capitalismo, alguns subsistemas vieram dar sustentação a novos sistemas para o desenvolvimento da nova sociabilidade que se inaugurava. A estrutura familiar, a estrutura religiosa, a divisão de classe, de gêneros e racial foram subsistemas que o novo sistema operacional incorporou como base para muitos dos novos softwares a serem desenvolvidos. No entanto, inescapavelmente, comparar o Windows com o DOS não faz o menor sentido. Houve uma revolução que só pôde se efetivar com novas placas, circuitos, processadores, memórias e drives acrescidos à arquitetura da estrutura onde os sistemas operacionais pudessem rodar desde sua origem para garantir o pleno funcionamento de sua estrutura base. Ou seja, não tem volta, apesar de emuladores do DOS permanecerem na nova plataforma.

O hardware de nosso sistema operacional atual (a Democracia Liberal baseada no Estado Nacional e suas instituições) é o Capitalismo. A democracia é uma das interfaces históricas criadas ou reeditadas que nos foram disponibilizadas para operarmos esse sistema operacional em sua máxima eficiência dentro dessa estrutura lógica interagente e interdependente de estrutura material. No entanto, o código dessa interface é mantido restrito a operadores dentro da estrutura. É uma rotina que requer apenas inputs periódicos do usuário para rodá-la, como no sufrágio. Todo o restante não só independe do usuário como, em geral, não lhe retorna o que ele espera ao ter dado o input pedido.

Textos como o do André, assim como o da maioria que leio sobre essa metáfora poderosa, focam-se na abertura do código para melhorá-lo, mas não esbarram na necessidade de mudança da estrutura projetada para um sistema operacional que funciona em função dela e não do usuário. Hoje, nossa democracia está ‘bugada’, com mensagens de erros em constante conflito com o sistema operacional em que roda. A crítica ao sistema operacional não atinge a restrição que o hardware lhe impõe. Muitos pensam em mudar para o Macintosh porque trava menos e tem um hardware mais robusto. Mas além de poucos terem acesso, ele apenas faz melhor o que o próprio Windows faz, mas não faz a mais e nem diferente. É uma ilusão de estabilidade que não muda substancialmente as relações sociais mais fundamentais.

O Linux é um exemplo à parte. Ele realmente quebrou um paradigma e se coloca como um sistema operacional alternativo e criado por meio de participações e código aberto. Há, em seu interior, participação democrática bem ao estilo “de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades — Karl Marx”. Ainda assim, não há nada no sistema que não seja dentro do hardware já dado e padrão como todos os outros. Há um voluntarismo que se pressupõe livre de coerção, mas que se submete ontologicamente a uma estrutura dada que não é questionada. É uma experiência realizadora, mas limitada e sem nenhum horizonte que ultrapasse o que já está dado historicamente por aqueles que ainda agem coercitivamente submetendo todos a um paradigma estrutural que condiciona a socialização de todos, apesar de singularidades conseguidas.

A estrutura e a lógica do hardware que nos permite instalar, subverter, ‘hackear’ e modificar os sistemas operacionais ainda define quem, como, quando, quanto e porquê fazer as coisas que afetam nossas vidas como um todo. Ainda determinam a totalidade pela qual podemos exercer liberdade sobre nossas ações. Para a grande maioria dos usuários, cuja consciência foi formada a partir de uma plataforma material que exige um sistema operacional restrito a rotinas previstas para a manutenção de sua lógica, a democracia representativa não deve ser questionada, pois o que vale é ter acesso à máquina como dado que compõe o próprio tecido da realidade. Eles não enxergam para além dos ícones em seus desktops.

Para nós, outros, que pensamos a democracia bem mais ampla do que a operacionalização dos ícones que nosso Desktop oferece, precisamos entender que as mudanças vão além de simplesmente transformar o sistema operacional em cooperativo e dinâmico, mas atingem a própria estrutura de meios pelos quais esse sistema pode operar. Essa estrutura atual que reduz a livre inciativa como ícone, esconde por trás o fato de que só é livre quem tem os meios para colocar seus interesses privados em primeiro plano se utilizando de parte da sociedade que não tem os mesmos meios para produzir riqueza pessoal. O fato de parte dessa riqueza gerada ser gasta no caminho de sua geração é vista como distribuição, não como um custo colateral para concentrações de renda desumanas que gera miséria e exclusão crescentes. Em um sistema cuja eficiência (ou seja, cujo cumprimento daquilo a que ele se destina: o enriquecimento e o acúmulo de capital privado) requer a eliminação sistemática de trabalho vivo e a precarização constante do trabalho que não conseguiu eliminar, alimenta uma contradição que se traduz em crises cíclicas cada vez maiores, adiadas pela atuação de um Estado que garante, via crédito, antecipação de consumo até o próximo estouro. Nosso hardware consiste em uma lógica estrutural que, periodicamente, dá pane e trava todo o sistema.

Windows, Linux e Apple

Mais questões sobre Sistema Operacional

Entender a relação dinâmica e dialética entre Hardware e Sistema Operacional é de suma importância quando falamos sobre o ‘hackeamento’ da democracia para que ela se torne plena e opere dentro de seu conceito de poder pelo e para o povo. O sistema democrático representativo emerge dentro das possibilidades abertas pela revolução burguesa que culmina no aparelhamento dos Estados Nacionais para sua manutenção e garantia. O Estado dentro da consolidação do sistema capitalista é e sempre foi o aparato jurídico e institucional de garantia do sistema. Por isso falar em política é falar de economia e vice-versa: Economia Política. São indissociáveis, mas não recíprocos. Por mais que a forma política possa oferecer ajustes ao sistema econômico, é o sistema econômico que determina o sistema político. Portanto, ‘hackear’ o sistema político sem nos apropriarmos das decisões sobre o que, quem, como, quando, quanto e porquê produzir é permitir uma democracia aleijada. Apropriarmo-nos dessas decisões de maneira democrática ampla é estabelecer um novo paradigma em Economia Política. Simples assim.

Desde a formação dos Estados Nacionais, consolidados no sec. XX pós Grande Crash da década de 30 e entre os períodos das duas grandes guerras mundiais, o mundo se viu dividido em duas visões de mundo que viam o papel do Estado de modos distintos. Era apenas aparente a distinção de estrutura. Enquanto o Ocidente se recrudescia no Capitalismo de Mercado, o bloco dito Socialista se consolidava em um Capitalismo de Estado. A extinção do grande bloco de Capitalismo de Estado que representou a tentativa de um Socialismo no espectro político localizado à esquerda, proporcionou a convergência para um maior poder dos Estados na consolidação da democracia de modelo liberal-democrática. O binarismo, a partir daí, se deu entre o Neoliberalismo (medidas propostas na década de 70 a partir do que ficou conhecido como Consenso de Washington) e o Estado de Bem Estar Social difundido na Europa. Esse binarismo marcou a hegemonia do capitalismo como sistema Econômico-Político mundial. Ou seja, sob um mesmo hardware que gera pane a si mesmo, Sistemas Operacionais distintos estabeleciam relações sociais sob um mesmo paradigma de socialização: um privilegiando o sistema, outro tentando minimizar as desigualdades que o sistema gera.

Curiosamente tanto esquerda quanto uma nova direita lançaram-se ao ataque do modelo liberal-democrático que conquistou sua prevalência a partir da hegemonia de um único hardware: o capitalismo. É preciso salientar que o Neoliberalismo trata-se apenas de medidas austeras nos países em desenvolvimento (mais especificamente na América Latina), mas que garantem o Liberalismo Global dos países proponentes. Nos países que coercitivamente, através dos Bancos de Financiamento, empurram o neoliberalismo aos países emergentes, os Estados continuam fortes para garantir toda a base estrutural físico-jurídica e institucional para o pleno exercício do sistema de produção.

A esquerda, que historicamente sempre quis refazer o hardware, reduziu sua crítica ao Sistema Operacional Liberal-Democrático, querendo aumentar a congruência entre os cidadãos ordinários e o Estado ao propor a extensão dos mecanismos de responsabilidade através da autoridade independente e poder imparcial do Estado enquanto responsável pela cidadania. Ou seja, se ao cidadão comum a vida submergida no sistema lhe tira a cidadania, pois distingue sob o manto voluntarista aquele que tem meios dos que não tem, caberia ao Estado Nacional preservá-la como fiel da balança, representando-os de forma a minimizar essa distinção. Essa ideia pressupõe que, sem um poder mediador, o que chamam de “livre iniciativa privada” apenas recrudesce a exclusão e a desigualdade, sequestrando a cidadania da maioria da população que não detém meios de ter iniciativa livre, ou seja, capital. Na nova direita, por sua vez, a crítica centra-se no crescimento assustador das novas burocracias públicas que limitam a chamada “livre iniciativa privada” e a responsabilidade individual. Paradoxalmente, a crítica da nova direita revela que entre os representados e o Estado que os representam há forças poderosas que reduzem essa congruência e a distorce por conta dos lobbies e grupos de pressão que financiam o Estado a partir de seus interesses, os quais passam longe dos interesses de uma iniciativa privada livre e em igualdade de condições. Por isso essa nova direita baseada em Hayek e Mises quer, a todo custo, um estado mínimo e a democracia a cargo da lógica de concorrência perfeita de um mercado com o mínimo de regulamentação possível. Para essa nova direita a liberdade dos agentes sociais é, sem o Estado, uma igualdade garantida pelas trocas voluntárias que uma sociedade livre proporcionaria. Dois sistemas operacionais em conflito e em disputa dentro de uma mesma matriz estrutural material que parou de ser questionada.

A discussão sobre qual sistema é melhor passa pela radicalização da democracia e pela ideia de abrir seu código tirando-a do Estado e das instituições e colocando-a nas mãos do usuário. A atual crise de representatividade em que vivemos mostra essa necessidade, sem dúvidas. Mas também mostra, sem sombra de dúvidas, que está na abertura e ‘hackeamento’ do hardware a verdadeira radicalização da democracia se, de fato, quisermos exercer uma cidadania plena.

É muito bem vinda a ideia de abrirmos o código fonte da Democracia. Mas precisaremos ver até onde o hardware em que ela roda enquanto interface de nosso sistema operacional irá suportar essa abertura. Em algum momento será preciso (e espero que seja antes de ser tarde demais) pensarmos sobre a estrutura material que possibilitaria rodar todos os sistemas: memória, acesso a rede, periféricos, etc…

Gilberto Miranda Junior é licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano, estudou Ciências Econômicas na Universidade Guarulhos (UnG) e é membro pesquisador do Centro de Estudos em Filosofia (CEFIL), registrado no CNPQ e ligado à Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).

Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.

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Gilberto Miranda Junior
Revista Krinos

Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas e participa como pesquisador do CEFIL (Centro de Estudos em Filosofia), registrado no CNPQ e ligado à UFVJM