Encontrando Miles

Como eu aprendi sobre arte, estética e improvisação com a lenda do jazz

Fer Feres
10 min readSep 29, 2014

Você aparece na hora marcada, munido com páginas de perguntas, na esperança de aprender algumas coisas que você não sabe sobre uma figura que é absurdamente conhecida e infinitamente examinada.

Você está pronto para entrar no ar rarefeito, o mais preparado que uma pessoa consegue estar para conhecer um ícone. Você acha que sabe como será a conversa. Os termos foram estabelecidos com antecedência — inclusive o número de minutos que a pessoa estará disponível, quais os temas “proibidos” e todo o resto.

E, então, as coisas desmoronam. A celebridade sobrecarregada de trabalho está atrasada. Ou rabugenta. Ou desconfiada. Ou a estrela, de repente, tem outro compromisso. Isto foi o que aconteceu em um dia escaldante no verão de 1986. Eu cheguei no apartamento de Miles Davis, com vista para o Central Park, com uma expectativa razoável de conversarmos sobre música e, ao invés disso, passei a tarde analisando a prodigiosa percepção sobre arte visual pela lenda do jazz e falando sobre estética. Na época, eu encarei isso como a prova de fogo de uma jovem jornalista em ir com o fluxo — assim como o lema dos Escoteiros: esteja preparado! Agora, eu vejo como uma rara oportunidade de ter vislumbrado o pensamento de um artista duplamente talentoso, um inconformista que se destaca como uma das forças criativas mais inquietas do século 20.

Eu deveria saber que algo estava errado quando eu conheci a assessora de Davis, uma veterana da Columbia Records chamada Sandra Trim da Costa, na recepção de seu prédio. Era início de tarde; ela disse que este seria o seu primeiro compromisso do dia e explicou que isso era bom, porque ele tinha pouca paciência para a mídia. Então, enquanto entrávamos no elevador antigo que só cabia duas pessoas, ela falou bem informalmente que, além de fazer com que a nossa entrevista durasse os 30 minutos reservados, sua outra tarefa era conseguir com que Davis selecionasse uma de suas pinturas para doar a um leilão beneficente associado aos Jogos Olímpicos de Los Angeles.

Davis ouviu a porta do elevador se abrir e gritou para que nós entrássemos. Entramos em uma grande sala sem móveis; apenas um piano elétrico no último volume, emitindo um som potente de 60hz. Sua trombeta estava perto, no chão. As paredes estavam cobertas com o que parecia ser um carpete cinza, mesmo em uma sala de jantar tradicional. Davis nos encontrou lá, em um terno branco feito sob medida e fez um gesto para irmos ao terraço, onde um grande telescópio foi posicionado em direção ao céu. “Dia quente”, ele resmungou.

Sem querer desperdiçar tempo, peguei meu bloco de anotações e meu gravador, enquanto Davis e sua assessora falavam sobre os detalhes da sessão de fotos do dia seguinte. Ela mencionou o leilão. Seu rosto se iluminou e ele foi buscar sua arte em outra sala — Davis era uma dessas pessoas encantadoras de outra época, um homem que não media esforços para ajudar no que fosse preciso uma mulher, fosse ela uma amiga, uma amante ou uma sócia. Quando ele voltou, carregando um monte de pinturas em papel e sobre tela, ficou claro que a entrevista teria que aguardar ou nem aconteceria. Meu coração se afundou. Eu era uma jovem crítica de música que trabalhava para um jornal fora da cidade (The Miami Herald) e eu não estava em posição de falar e/ou atrapalhar qualquer plano de sua assessora. Eu esperava ser dispensada.

Sinceramente, neste momento, eu queria desesperadamente ser dispensada — Davis era uma presença famosa intimidante, conhecido por causar arrepios profundos em cada lugar que entrasse. A intimidação foi embora com o tempo; ele a desenvolveu como parte de sua persona, ao longo de décadas de interações com artistas impiedosos, empresários sem escrúpulos e jornalistas que não compreendiam plenamente o seu papel na evolução da música improvisada. Seus olhos irradiavam uma calma zen e, ao mesmo tempo, ele conseguia olhar através das pessoas, como se a presença de outra pessoa fosse um incômodo superado facilmente. A perspectiva de falar com ele sobre arte me deixou inquieta.

Para mim, a situação parecia invencível. Pensa: o que um desconhecido poderia dizer a Miles Davis — um ícone cujos companheiros de banda incluem lendas como Charlie Parker e John Coltrane — sobre sua saída recente, sua carreira alternativa de artista visual pouco conhecida? “Boa escolha de cores!”. “Ótima simetria!”. Eu estava consciente de estar extremamente fora do meu habitat e de ser exposta como uma fraude! Uma observação errada e eu colocaria em risco a minha missão de ter uma conversa sobre música. Davis, evidentemente, não se importava. Ele reservou meu lugar à mesa ao lado de Sandra e colocou a pilha de arte na nossa frente para tirar proveito da luz natural do ambiente. Ele ficou um pouco atrás de nós, inclinando-se para ajustar a pilha de arte e olhar uma por uma.

“O que você acha desta, Sandra?”

Foi extremamente estranho ouvir a voz rouca e animada que eu tanto conhecia de músicas clássicas — “Escuta isso, Teo” (“Circle” do álbum Miles Smiles) — sobre o meu ombro esquerdo, pedindo conselhos sobre sua arte. Sandra apenas balançou a cabeça, dizendo gentilmente que a escolha era dele. Enquanto Davis avançava para as próximas telas, ficou claro que ele não estava apenas sendo gentil, ele realmente queria uma opinião e, possivelmente, ajuda para escolher. Ele estava acostumado a ter uma audiência. Ela começou a apontar as coisas que ela achava mais interessantes. Davis tinha uma abordagem peculiar sobre as linhas e formas e um amor óbvio pela figura feminina em todas as nuances, nos estados de reflexão e determinação ardentes. As pinturas pareciam vibrar, intensas com uma vivacidade flutuante que, às vezes, se assemelhavam a esboços de Picasso. (Desde a sua morte, elas foram publicadas em vários livros, sendo este o mais recente). Ficou claro que a lenda do trompete levava a sério pintar e também era claro que, assim como ele tinha feito inúmeras vezes com sua música, ele tinha desenvolvido uma “linguagem” própria; um conjunto de interpretações e artifícios que eram tão únicos quanto a sua impressão digital. Ele não era um amador, não era daqueles que, depois de algumas aulas, tornava-se adepto à copia. Ele tinha o seu próprio estilo.

Isso fez com que discutir sobre suas obras se tornasse ainda mais desafiador. Depois de ter visto cerca de seis ou sete delas, sem dizer nada, Davis pediu a minha opinião. Eu congelei. Primeiro por causa da minha inexperiência, e segundo, porque eu sabia que isto era um tipo de teste: Davis analisaria as minhas respostas. A qualidade da nossa entrevista, se é que ela aconteceria, dependeria, em parte, do que eu viesse a dizer. Você entra naquela parte da entrevista em que espera ser “avaliado” — é uma maneira de estabelecer a confiança, criando condições para dar e receber. Mas, normalmente, você espera que isso aconteça sobre os trabalhos que você já conhece do artista, não em um reino completamente diferente. Não sobre uma forma de expressão que, assim como a música, pode ser abstrata e que desafia a análise. E eu não tinha base, formação ou experiência nessa área. Se, naquela manhã, eu tivesse previsto uma espécie de discussão estética, agora eu estava embarcando em uma totalmente diferente.

Manter o silêncio não era uma opção. Blefar também não era possível — afinal, este era Miles Davis, conhecido, sobretudo, por não tolerar ignorantes. Eu lembrei do meu professor da terceira série, cujo mantra diário era: “Não tenha medo de fazer perguntas sempre que houver algo que você não entenda”. Então, eu tentei entender o que Davis estava fazendo e perguntando como ele fazia. Comecei pela sua rotina de pintura: será que ele vai ao parque como tantos nova-iorquinos? (Não.) Será que ele trabalha com isso todos os dias, que nem ele fazia com seu trompete quando era jovem? (Pelo que me lembre, ele disse que é como qualquer outra coisa que você faça; quanto mais o fizer, mais natural aquilo se torna.).

Será que ele vai até a tela com uma imagem específica em mente ou espera por inspiração? Esta pergunta o intrigou e ele respondeu em um riff sobre como as pessoas sempre esperam que alguma “musa” apareça, em vez de irem atrás do que pode estar bem diante delas. Eu perguntei se ele achava que havia alguma espécie de semelhança entre os seus desenhos e sua música; ele soltou algo como “ambos vem de mim”. Mais tarde, bem mais tarde, isto foi anotado de forma enganosamente profunda. Afinal, pessoas que possuem talento em uma área, às vezes, tentam se sobressair em outras — com resultados ruins. Davis tinha uma coisa, uma identidade essencial que prevalecia os diferentes meios e modos de expressão. Em ambas as atividades, seus trabalhos poderiam ser selvagens e frágeis e vulneráveis, definidos pela coragem de compartilhar algo aquém do perfeito. Essa disposição em ser ‘humano’ — em deixar a nota desafinar ou a linha do pincel devanear rumo ao nada — agindo sob a forma de uma força magnetizante, substituindo as considerações mesquinhas da “técnica” para ir direto ao nível da alma. Ele não tocou em seu trompete; ele fez ecoar o som de pura convicção pela trompa.

O brilho traduz: Sua arte não é a própria pincelada, é o que a pincelada pode nos dizer sobre a intenção, o desejo, a busca por iluminação.

O que separa Davis dos demais não é simplesmente as revoluções musicais radicais que ele iniciou ou a “ousadia” que as caracteriza, e sim, a ferocidade que ele trazia consigo; que diz tudo sobre o que ele fazia. Era uma convicção de que não são somente os detalhes que importam; ânimo importa também. É acreditar num simples gesto, num pensamento vago, numa única nota. É a disposição em buscar o que era possível e não o que era deslumbrante. Enquanto olhávamos suas artes, senti nelas uma qualidade que eu senti em sua música desde a primeira vez que a ouvi: essa pessoa sabe exatamente o que quer transmitir. Mesmo que ele não saiba, em técnicas passo-a-passo, exatamente como ele vai fazê-lo.

Eu me perguntava como ele sabia quando uma pintura estava concluída. Isto gerou uma longa discussão sobre o quão difícil é deixar algo de lado — especialmente quando a página não está bem “cheia” de informações. Ele falou sobre seguir a intuição e em como, nas pinturas orientais, o objetivo é somente uma pincelada ininterrupta, nada mais é relevante. Ficou claro esse apelo ao seu sentido de minimalismo. Uma vez que se conhece a sensação de tocar uma única nota perfeita, assim como Davis fez melhor do que qualquer um, o impulso para “preencher a tela” com a informação desaparece.

A essa altura, eu sentia que o gelo tinha sido quebrado de alguma forma; Davis pareceu moderadamente confortável em compartilhar pensamentos sobre produzir arte, coisa que ele vinha fazendo ao longo de sua vida, mas que só se tornou obcecado com isto em sua última década de vida. Ele ressaltou algumas coisas e suas palavras e gestos lentos, combinados, ofereciam um vislumbre de como ele encarava e apreciava arte. Comecei a perceber que, de alguma forma, eu tinha chegado ao Nível 1 deste Jogo Adversário em Entrevistar Miles. Eu queria o gravador ou o caderno, mas eles estavam do outro lado da sala e Davis, claramente, preferia que isto não estivesse sendo gravado. Agora eu penso que foi uma pena, porque ele compartilhou algumas ideias maravilhosas, se aventurou em áreas que ele não havia visitado durante as entrevistas convencionais.

Ele descartou algumas pinturas imediatamente, rejeitando-as como “precoce” ou erradas de alguma outra forma. Em um dado momento, Sandra disse: “Espere! Volte para aquele!”. Ele o fez e, quando olhou para o trabalho, lembrou que era uma pintura relativamente recente, uma de uma série de outras pinturas que ele fez depois de voltar de uma turnê. Ele explicou que estava exausto e um pouco cansado de tocar música quando chegou em casa; que havia passado sua primeira semana em casa falando muito pouco e pintando constantemente. Eu perguntei o que ele se lembrava sobre a turnê, o que a tornou tão cansativa. Ele não respondeu; em vez disso, saiu do quarto. Ele voltou com uma fita, uma fita de um dos dias da turnê, dizendo que ainda não havia escutado e que vários integrantes de sua banda consideraram aquela como uma noite particularmente boa. Ele colocou a fita, criando uma experiência Miles Davis multimídia incomum em sua sala de jantar: nos debruçamos sobre as imagens vívidas de sua arte, acompanhadas do som suave igualmente vívido de sua banda tocando Cyndi Lauper “Time After Time”.

Eventualmente, ele e Sandra concordaram em uma pintura — na verdade, qualquer uma delas teria funcionado. Ela sugeriu que nós começássemos a entrevista, o que era estranho, pois eu estava fazendo perguntas havia, pelo menos, uma hora. Davis se aproximou e parou a fita e eu ainda me lembro do olhar em seu rosto quando ele se virou. Acabou a hora da diversão para ele. Agora era hora de trabalhar.

“Agora, disse ele, deliberadamente,
naquela voz grave, “o que você gostaria de me perguntar?”

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Ilustrações reproduzidas de Miles Davis: The Collected Artwork, por Scott Gutterman, publicado pela Insight Editions. Copyright © 2013 Miles Davis Propriedades LLC.

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