Quem melhor do que eu para fazer isso? Eu sou uma mulher!

eDemocratize
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7 min readNov 2, 2015
Foto: Gabriel Soares/Democratize

Por Thaís Ribeiro

Eu tinha 19 anos. Estava saindo da faculdade por volta de 21 horas. Descia uma das avenidas mais movimentadas da região centro sul de Belo Horizonte, próxima à várias faculdades.

Estava sozinha e por azar, naquele momento, não tinha tanta gente assim na rua. Um táxi foi andando devagar e parou do meu lado. O motorista abre a porta do passageiro da frente e diz: “moça, você está sendo seguida. Olhe pra trás”. Eu olhei e vi que havia um grupo de pessoas que me acompanhava há alguns minutos, então me apavorei. Ele disse pra eu entrar no táxi, que assim poderia me ajudar. No desespero, nem pensei. Lá estava eu, no banco da frente sentada ao lado dele.

Conversamos sobre coisas da vida, ele me fez várias perguntas, sem que eu percebesse que havia uma intenção. Ele era um homem moreno, que aparentava ter entre 30 e 40 anos.

Depois de alguns quilômetros, ele disse que precisava colocar gasolina no táxi e a partir daí começou a agir diferente. Fazia perguntas mais íntimas e quando percebi, ele estava com a mão direita nas minhas pernas.
Tinha algo muito errado e dentro de mim começou a nascer um medo do qual eu nunca havia sentido antes. As perguntas foram piorando, ele dizia que eu era linda, perguntava se eu namorava, quantos anos eu tinha e subia um pouco mais a mão, aquilo me deixou totalmente apavorada e eu não podia demonstrar. Neste percurso, em vários momentos pensei em abrir a porta e pular do carro, mas sempre que tentava soltar meu cinto, via que ele estava preso de alguma forma que eu não entendia.
Disse que não queria prosseguir viagem, que ele poderia me deixar ali mesmo, que era aniversário da minha irmã e todos me esperavam, mas ele não deixou. Continuava dizendo que precisava abastecer o táxi. Entramos na avenida Antônio Carlos e ele rapidamente tratou de procurar um lugar mais ermo, o medo tomou conta.

Ele parou o táxi em uma ruazinha escura, eu não via ninguém. Desceu do carro e foi até um poste que estava próximo à minha janela. Abriu a calça e começou a urinar, na intenção de me intimidar. Quando percebi o que ele estava fazendo, virei o rosto. Senti nojo e muito medo, só queria sair dali. Peguei o celular e comecei a fingir que falava com a minha mãe. Dizia que estava no táxi e que logo chegaria em casa, inventava coisas que dessem ideia do que estava acontecendo. Eu não estava falando com ela, não tinha créditos no dia, mas foi a única coisa que consegui pensar.

Depois de alguns minutos, ele voltou para dentro do carro e continuou com as mãos nas minhas pernas, falava algumas coisas nojentas, enquanto dava voltas com o carro. Eu não conseguia pensar em mais nada, achava que já não tinha mais jeito de escapar dali. Nunca havia “chegado ao finalmente” com alguém e preferia morrer só de pensar em ter minha primeira relação sexual de uma forma tão obscura e forçada. Deu vontade de chorar, mas eu não queria que ele percebesse que eu estava fragilizada. Eu comecei a pedir à Deus dentro da minha cabeça que me tirasse dali, que me ajudasse a escapar.

Depois de algumas voltas, ao passar por uma rua, uma moça parece não ter percebido que ele estava com uma “passageira” e deu sinal para o táxi. Ele parou e eu vi que essa era minha última chance, puxei com tudo o cinto e consegui me soltar, abri a porta do táxi e sai correndo e chorando para a avenida, pedindo para as pessoas me ajudarem. A única coisa que consegui fazer por ela, foi acenar a cabeça em um não, para que ela não entrasse, mas corri tanto que nem pensei em olhar pra trás para saber se funcionou. Assim que cheguei no ponto de ônibus algumas pessoas me ajudaram, me acalmei um pouco e liguei para o rapaz que eu ficava na época. Contei tudo, e ele com um ar de incrédulo me disse: “vá para casa”. Depois disso nunca mais nos vimos, talvez ele não tenha acreditado que eu consegui escapar do abuso, era só nisso que eu conseguia pensar.

3 anos depois, estava na casa dos meus pais fazendo uma visita e minha mãe me entrega um jornal. Ele havia sido preso, acusado de abusar sexualmente de mais de 18 mulheres com idade entre 15 e 25 anos. A descrição era a mesma e uma característica bastante peculiar me confirmou, o fato dele urinar na frente das vítimas. Apenas 18 mulheres fortes denunciaram, eu não estava entre elas, por vários motivos. Esse não foi meu primeiro assédio, mas foi o que mais me marcou.

Foto: Gabriel Soares/Democratize

31 de Outubro de 2015 em São Paulo. Escuto “eu não mereço ser estuprada” de um grupo de mulheres que se reunia no vão livre do Masp, talvez muitas delas tenham passado por situações semelhantes à minha ou até piores.

O objetivo era compor um manifesto contra o projeto de lei 5069/13 do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB). Cerca de 3 mil pessoas, mulheres majoritariamente participavam do ato. A pauta era bem diversificada, mas todas chegavam ao mesmo ponto: a nossa liberdade. A luta é contra o machismo, contra a criminalização do aborto, contra o pensamento dominante que sempre culpa a mulher, contra o desrespeito, contra o egoísmo, contra o silêncio ao qual fomos condicionadas desde que nascemos. Grande parte das mulheres eram jovens e ainda assim pareciam ter dentro de si o anseio de gritar como se já tivessem vivido muito, como se já tivessem sofrido demais. As pessoas ao redor olhavam quase sempre desconfiadas, muitas não tinham conhecimento do que se passava ali e quando perguntávamos o que elas achavam que estava acontecendo, elas perguntavam ou pensavam que era a marcha das vadias.

Porém, muitas dessas pessoas também desconhecem do que se trata de fato o PL 5069/13. O projeto de lei, de autoria de Cunha — e que conta com apoio de todas as frentes conservadoras do Congresso, como a Bancada Evangélica e a Bancada da Bala — visa alterar a lei referente à violência sexual, modificando até o conceito deste termo, que deixa de ser qualquer atividade sexual não consentida e passa a ser apenas atos que deixem marcas físicas e psicológicas. No cenário atual, a mulher que sofre um abuso pode imediatamente recorrer ao SUS para ser amparada e atendida, mas caso este projeto de lei seja aprovado, a vítima terá que fazer um boletim de ocorrência primeiramente e passar por um exame de corpo de delito que comprove a violência sexual, para que só assim ela possa procurar o SUS e ser atendida. O projeto de lei, caso aprovado, fará com que a rede pública de saúde deixe de fornecer a pílula do dia seguinte e vedará qualquer tipo de informação que remeta à procedimentos abortivos. A pena para o profissional que fizer qualquer orientação à vitima induzindo ao aborto, pode ir de 1 a 3 anos.

Foto: Gabriel Soares/Democratize

O direito conquistado pelas mulheres em 1940 está sendo tirado de nós, o que antes era garantido por lei está ameaçado e nosso poder de escolha está sendo levado, por pessoas que sequer imaginam o que é ser mulher. Além de passar pela terrível situação de ser abusada, a vítima ainda precisa comprovar o que aconteceu, sua palavra não vale mais nada. Precisa procurar delegacias com profissionais que não estão preparados para esta situação e passar por todo o constrangimento de relembrar e contar tudo o que aconteceu, sabendo que não receberá efetivamente todo o auxílio que merece. A lei hoje garante que toda vítima de abuso sexual procure qualquer hospital do SUS e receba atendimento, que inclui a profilaxia da gravidez e o conhecimento de todos os seus direitos, bem como a pílula do dia seguinte e as devidas orientações caso ela escolha realizar o aborto, ou até mesmo ter a criança e posteriormente permitir a adoção da mesma. A aprovação do PL 5069 retira esse direito, é uma forma violenta de expor as mulheres à gravidez indesejada e até a procedimentos abortivos de alto risco, feitos de forma clandestina.

Precisamos falar mais sobre isso, precisamos nos incluir neste grupo de mulheres as quais são abandonadas constantemente pelos seus parceiros, família e agora possivelmente também pelo governo. Essa luta é de todas nós, pois todas sofremos violência diariamente. Violência nos táxis, nas escolas, no transporte público, no trabalho, nos hospitais, em casa, em todos os lugares.

No começo senti medo de escrever esse texto, tive medo de não saber me expressar, de não saber representá-las, mas depois pensei: quem melhor do que eu para fazer isso? Eu sou uma mulher!

Foto: Gabriel Soares/Democratize

Veja o vídeo produzido pela equipe do Democratize sobre o ato do último sábado, dia 31, em São Paulo. É a Primavera das Mulheres contra Eduardo Cunha, por Thaís Ribeiro e Rafaela Carvalho:

Thais Ribeiro é formada em Publicidade e Propaganda pela UNA; colaboradora da Agência Democratize

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