De volta para o futuro

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
8 min readJan 27, 2016

Ou ‘como voltamos um dia no calendário para sermos barrados em um país polinésio’

A Samoa e seus corais: vista de dentro do bimotor que viríamos a conhecer tão bem em tão pouco tempo

Lalomano, 25 de janeiro de 2016. Acordamos cedo, fechamos nossas malas, corremos para tirar as últimas fotos de uma pessoa entrevistada para o Gente Extraordinária (aliás, que história, amigos). Conferimos se nada ficou para trás, e levamos toda a bagagem para a recepção. Pagamos a hospedagem com todas as nossas notas de Tala, a moeda local. No bolso restaram apenas os 70 tala que reservamos para pagar o taxi, marcado para as 9h, que nos levaria ao aeroporto. Às 9h02, nada do cara. Ligo para ele, e escuto, em um inglês tosco, um “Estou muito atrasado, não vou conseguir buscar vocês. Me desculpe”. Como assim?? O que aconteceu, eu pergunto, mas ele já desligou. Aviso pra Bruna que temos problemas, e volto a ligar pro Martini (“Igual ao drink”, dizia ele em um inglês bastante razoável quando queria me convencer a entrar em seu taxi cinco dias antes). Pergunto se ele não vai sequer tentar me ajudar a encontrar outro taxi. Lalomano é uma praia conhecida, mas fica a mais de 1 hora do centro e do aeroporto, e não havia sinal de transporte público ou privado por perto. Ele só repete que está atrasado e não vai poder vir. Respondo com um palavrão, ele solta uma gargalhada e desliga de novo.

Fales samoanas: pequenas construções de madeira sem paredes na frente da praia

Com os olhos arregalados e dificuldade para respirar, Bruna concentra a atenção de todo o staff do hotel (na verdade, um aglomerado de “fales”, construção tradicional na Samoa que consiste em um piso de tábua corrida, uma cerca de madeira vazada e um telhado de sapê — sim, sem paredes) para achar uma solução. Surge um taxista, mas ele quer cobrar 120 talas. Nem que topássemos ser extorquidos dessa forma. Minha carteira tinha exatamente uma nota de 50, uma nota de 20, e trinta centavos em moedas. Não sei se por pena do estado de desespero da Bruna, ou se pressionada pelos colegas, uma funcionária topa levar a gente, mas diz que precisa de 20 minutos para se arrumar. “Não se preocupem, vai dar tempo”. Quarenta minutos depois, volta ela com uma caminhonete apinhada de gente e pergunta “Ué, vocês ainda estão aí?”.

O voo era ao meio dia, a companhia aérea informava que o check-in era encerrado uma hora e meia antes da decolagem. Chegamos ao aeroporto às 11h em pânico. Talvez aeroporto seja um nome tecnicamente correto, mas nem de longe passa a ideia do lugar. Parecia mais o ponto final de ônibus intermunicipal no interior de Minas Gerais. Alguns bancos espalhados, chão e paredes de azulejos em uma cor indefinida entre o branco sujo e o cinza manchado, e uma senhora vendendo amendoim e balas. Um samoano obeso — o país tem o maior índice de obesidade do mundo, e a maioria dos nativos pesa mais de 100kgs — no balcão nos informa que vai dar um grito quando abrir o check-in. Fico feliz de lembrar a tempo que tinha um canivete na mala da mão, e corro para botar na bagagem antes de despachar. Não sei onde que eu estava com a cabeça de achar que existia um raio-X por ali. Ao fazer o check-in, nos pedem para subir na balança. Estranhei, mas não pensei no assunto.

Rumo a Samoa Americana — ou quase isso (reparem no ventiladorzinho na cabeça do piloto)

Quando chego na pista de decolagem, sem nenhuma checagem de malas, entendi a pesagem. O bimotor de 19 lugares precisa ser bem balanceado para conseguir se manter no ar. Eu sempre quis voar num avião não pressurizado, mas senti a Bruna travar minha mão. Sentamos em nossos bancos (o encosto acaba na metade das costas) a um braço de distância dos pilotos. Sem me levantar, eu conseguiria desligar o ventiladorzinho que refrescava a cabeça do nosso comandante durante o voo de 35 minutos entre os dois países. Lá de cima, as Samoas são ainda mais bonitas, com uma coroa de corais ao redor das ilhas.

Decolamos na segunda-feira da Samoa, mas aterrissamos na Samoa Americana no domingo. Por questões comerciais — a diferença de fuso horário de mais de 12 horas tornava impossível os negócios com o resto dos Estados Unidos às segundas e sextas — o país/território simplesmente voltou um dia no calendário há alguns anos. Só explico essa aberração temporal porque ela é chave no que aconteceu a seguir. Como de costume, o passaporte italiano da Bruna garantiu a entrada em poucos segundos. O meu, cucaracho, exigia um visto especial, que eu já tinha resolvido semanas antes. Mas o policial da fronteira não encontrou o documento. Dessa vez, nem botou a culpa no Sistema. O negócio lá funciona na base do fax, e não tinha nada com o meu nome na pasta de papelão carcomido com a logo da maionese Hellman’s que ele folheava. Hellman’s. Em português, “Homem do Inferno”. Tentei mostrar os emails que troquei com a responsável (Ministério do Turismo, Departamento de Estado, sei lá quem era), mas só fui encaminhado para uma salinha. Uma vez lá, explicaram sem muita paciência: “Hoje é domingo e estou sozinho aqui. Talvez seu visto esteja no quarto andar (?), mas a sala está trancada. Vamos te botar no avião de retorno para a Samoa, amanhã você volta e tudo se resolve”.

Permissão para entrada no país concedida em 13 de janeiro

Não ficamos calados, é óbvio. Argumentamos de todas as maneiras, chacoalhamos o celular com o emails trocados, subimos o tom de voz. O policial — a imagem estereotipa do samoano: obeso, uma cabeça que mais parece uma abóbora, pele cor de azeitona, camisa florida, bermuda e chinelo — chamou um outro obeso de camisa florida e trocaram algumas palavras em samoano. O segundo homem pegou meu passaporte e sumiu. Queria acreditar que ele resolveria meu problema, mas algo me dizia que eu não conheceria as praias da Samoa Americana naquele domingo. Eu me sentia péssimo. Claro que eu tinha pedido para a fulana um email, uma prova de que tinha o visto. Ela riu: “Não se preocupe, vai dar tudo certo. Você vai adorar a Samoa do Leste”. Sugeri que a Bruna me deixasse lá e fosse para o hotel, mas ela nunca me deixaria sozinho. Minha cabeça girava.

Voltou o sujeito com meu passaporte na mão, e sua cara estampava o fracasso. Palavras em samoano para lá e para cá. “Vamos lá”, disse. Mas para onde? O que vão fazer comigo? Me enrolaram e não responderam. Pedi um documento escrito de que estavam negando minha entrada no país, que estava sendo deportado, sei lá. Já tinha caído no erro de não exigir tudo por escrito antes, não queria repetir a bobagem. “Senhor, você pode ser preso. Siga este homem, é a única coisa que você pode fazer”. Foi só aí que descobrimos que ele trabalhava para a Polynesian Airlines, e sumiu com meu passaporte para arranjar a minha volta. Ainda tentei voltar para a salinha, mas ele entrou em pânico e apelou para a Bruna. “Não deixe seu namorado fazer isso. Se ele sair da minha custódia, vai direto pra cadeia”. Agora eram dois em pânico. Voltei. Me pesaram. Me entregaram papéis de migração para preencher que, num ato de rebeldia inútil, me recusei a responder.

Em Savaii: nos permitimos um belo jantar depois do périplo infernal (mas dividimos um prato, hahaha)

Estamos na Samoa de novo. Viemos para Savaii, a ilha maior e menos povoada daqui, que tínhamos ignorado na semana anterior. Chegar aqui não foi nenhum passeio no parque, achar hospedagem que ofereça internet ainda mais complicado. Verdade seja dita, depois de um dia tão ruim, fomos bem tratados. O taxista que pegamos na saída do ferry literalmente brigou com os colegas para nos trazer por um preço não extorsivo. Papo vai, papo vem, nos levou para conhecer sua esposa e filhos. Prometeu me preparar uma bebida afrodisíaca e, não sei se por causa do parco vocabulário em inglês ou por pura falta de tato, usou palavras grosseiras para dizer que a Bruna iria adorar o resultado. Teve paciência de nos levar a umas 7 ou 8 estalagens diferentes, e ajudou a negociar descontos. Finalmente paramos na Savaii Lagoon, onde a gerente, Tanya, teve a sensibilidade de perceber pelos nossos rostos cansados que tivéramos um péssimo dia, e nos acomodou por um preço bem abaixo da tabela, segurou o restaurante aberto além do horário para tomarmos um banho antes de jantar, e ainda nos apresentou a Grande Chefe do vilarejo para nos prestar uma entrevista para o Gente.

Mas essa é outra história.

PS: A hospedagem da Samoa Americana nos devolveu o dinheiro das diárias já pagas, pré-requisito obrigatório para a concessão do visto, porque “não é a primeira vez que isso acontece, pedimos mil desculpas e esperamos que um dia vocês venham”. A fulana da migração me garantiu que o visto estava lá, que foi o incompetente do policial que fez a cagada, e também pediu desculpas.

PS2: Não tivemos a mesma sorte com as passagens aéreas. Já gastamos mais de 100 tala com internet — uma infinidade de vouchers impressos que garantem uma hora de uso cada, na teoria, mas acabam quando o cronômetro atinge os 30 minutos — para usar o Skype e travar discussões infrutíferas que envolvem reembolso e atribuição de responsabilidade pelo ocorrido.

PS3: Fomos informados que a Polynesian Airlines foi multada em 1.000 dólares americanos por nos deixar embarcar no voo para a Samoa Americana — isso quando o erro foi da própria polícia local.

PS4: Acreditam que não há registro do que aconteceu com a gente no relatório do setor de imigração? E que o papel que garantia a permissão da Bruna também continha o meu nome? Essa, pessoal, é a Samoa Americana.

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