Alguma coisa aconteceu

Thiago Capanema
thiago capanema
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5 min readAug 27, 2014

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Não aconteceu nada

Eis uma constante histórica e sociológica: há canalhas e idiotas em todas as épocas e lugares. Engrosso a lista com os pederastas e miseráveis. A fome e a idiotice parecem ser anteriores ao homem. Mas deixemos a compreensão de tal enigma de lado por ora para que possamos nos ocupar de uma variante muito mais enigmática: o gênio.

Onde nasce, o que estuda e do que se alimenta o gênio? Seria o gênio fruto do acaso, talhado pelo esforço; ou resultado do feliz casamento de ambos? Ah, enquanto faço-me estas perguntas logo caio em desânimo. Mudemos o objeto para algo menos raro. Esqueçamos o gênio. Quero falar do grande homem. Então, que seja feita a distinção: Beethoven foi um gênio, Silvio Santos, um grande homem. (Não quero me alongar muito).

Para afunilar mais o nosso objeto, afunilemos, também, nosso espaço geográfico: que o resto mundo se exploda, para que nos detenhamos no Brasil. Da extensão completa do globo para a nossa pátria, ainda retemos duzentos milhões de habitantes e 8.515.767 km². Entre tanto espaço e centenas de milhares habitantes se escondem os nossos grandes homens. Mas ainda nos falta o último dado da equação: o tempo. Limitemo-nos aos últimos trinta anos de nossa história — e não se fala mais nisso. (Falo no plural majestático porque estou convidando o leitor a uma jornada).

Não sei se aflige a muitos esta constatação: não restará ao Brasil mais ninguém a ser enterrado depois de mortos Roberto Carlos (72), Silvio Santos (83) e Pelé (73). E o que resta a um país órfão de um grande enterro, senão o enterro dele próprio? — Mas não desanimemos tão cedo. Noto que nossos grandes homens efervescem em todas as áreas: entre Roberto, Silvio e Pelé abarcamos a música, o empreendedorismo e o esporte, respectivamente. Mas, para os fins de nosso estudo, gostaria de focar na área cultural — uma área em que já não temos a quem enterrar (2014 nos levou João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna).

Eis a pergunta que aflige: — Onde está nosso grande romancista? Nosso grande poeta? Nosso grande teatrólogo?

Todos estão mortos

Se saltarmos cinquenta anos em direção ao passado obteremos uma boa lista dos que estavam vivos e atuantes em nossa cultura: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, José Geraldo Vieira, José J. Veiga, José Lins do Rego, Marques Rebelo, Graciliano Ramos, Herberto Sales, Josué Montello, Antonio Olinto, João Guimarães Rosa, Jorge Andrade, Nelson Rodrigues, Gustavo Corção, Vicente Ferreira da Silva, Mario Ferreira dos Santos, Miguel Reale, José Honório Rodrigues, Gilberto Freyre, José Guilherme Merquior.

Morreram todos. Nasceram muitos e ninguém lhes ocupou o lugar. Ou ainda: os que ocuparam os espaços já não são mais romancistas, poetas, cientistas sociais ou filósofos, mas simulacros, imitações, sombras disformes que nada têm a ver com o valor e estatura dos falecidos.

Mas percebo que carrego no tom da tragédia e corrijo-me. Nascido em 1986, nada sinto neste vácuo, tão acostumado estou à baixaria. Gostaria de consagrar-me à vida intelectual, mas me debato entre a Arte, a Verdade e a putaria mais grosseira. Não sei se leio Shakespeare ou se tomo uma cerveja (o bardo sempre perde), não sei se escrevo um grande romance ou se faço uma montagem muito louca para publicar no Facebook, não sei se decoro um soneto de Bocage ou se, “fiado no fervor da mocidade, / que me acena com tesões chibantes, / consumo da vida os meus instantes / fodendo como um bode”.

Um dia — não sei se já lhes contei esta história —, tinha eu vinte e cinco anos, e senti-me como que arrebatado para o dever da vida intelectual. Depois de dez anos de vadiagem, senti-me preparado a receber, aceitar e talhar o dom que me fora dado por Deus. Queria ser um estudioso, um escritor, e a primeira coisa que eu fiz para concretizar o chamado divino foi comprar um cachimbo (em que pese o atenuante da ingenuidade, não me ocorreu nem por um segundo que eu deveria, por exemplo, ler alguns livros…). O cachimbo pareceu-me perfeito e, durante muito tempo, fui escritor e intelectual sem escrever nada, sem ler nada, apenas pitando e baforando, com o olhar perdido a mirar o horizonte.

Mas voltemos aos mortos. Dizia eu que todos morreram e que, por não ter convivido com eles, mal sentia sua ausência — por convívio quero também dizer que não os li suficientemente para que sua presença se impregnasse em mim. Em guerra contra a cerveja, o Facebook e a bronha, tento esforçar-me para conviver e participar da vida do espírito.

Empreendo este esforço para tentar entender para onde foram nossos grandes homens, ou melhor — por que eles nunca vieram? Não somos exigentes. Ninguém está pedindo um Dostoiévski (um Dostoiévski é fruto de uma sucessão de desgraças e nenhum brasileiro estaria disposto a enfrentar uma Sibéria para se tornar um grande romancista), mas um novo Nelsinho Rodrigues, não vem? Uma meia dúzia que soubesse usar uma figura de linguagem, uma metáfora, que dominasse a gramática? E eis que nos deparamos com uma triste constatação: não temos nem a metáfora, somos um país solitário de metáforas.

Tudo isto faz com que eu continue me perguntando sobre o que aconteceu e, cada vez mais, a voz da pergunta dá lugar a uma voz que repete-me, insistentemente: — não aconteceu nada, não aconteceu absolutamente nada.

Clamo, portanto, a análise de um grande homem, de uma grande solidão que estudou e ainda estuda, incansavelmente, durante quarenta anos. Um homem nascido nesta pátria. Na primeira aula de seu curso “Princípios e Métodos da Auto-Educação”, Olavo de Carvalho disse:

“Quantos homens de talento são necessários para escrever um bom romance? — Um. Portanto, nenhum fenômeno coletivo pode explicar a falta desse indivíduo. A única explicação possível é: ninguém fez porque ninguém quis, e ninguém quis porque ninguém teve a idéia de fazer. Isto é uma constante histórica: não há causas para o que não aconteceu. O que não aconteceu, não aconteceu porque ninguém fez acontecer. Não há explicação para isto. Houve uma omissão, uma desistência e uma demissão generalizada. É possível descrever fatores externos que desestimularam as pessoas, mas desestimular é uma coisa e impedir é outra completamente diferente.”

Um homem que se pergunta o que aconteceu com o seu país é um homem que se pergunta “o que aconteceu e o que está acontecendo comigo?”. No caso brasileiro, posso me considerar um espelho da pátria: minha vida e obra é um compêndio de trinta anos em que nada aconteceu, porque eu não fiz nada acontecer. Mas noto que, injustamente, exijo que algo de bom aconteça: que a força do espírito seja soberana numa paisagem onde impera a inércia. A minha história, como a de tantos, é a de um filho que fugiu à luta, para que permanecesse deitado eternamente em berço esplêndido.

Texto publicado originalmente em 2 de janeiro de 2014.

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