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9 min readMar 10, 2015

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No carnaval carioca, nem todo o luxo vira lixo: muita coisa volta a desfilar no ano seguinte. Foto: Cacalos Garrastazu.

A máxima "o lixo de uns é o luxo de outros" parece ter sido criada para o carnaval. Materiais usados em desfiles luxuosos fazem a folia de agremiações mais pobres um ano depois. E tem escola campeã no quesito reciclagem que faz bonito também para os exigentes jurados.

Pode acreditar: o trabalho dos envolvidos nos desfiles de carnaval na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, está longe de acabar depois que a escola de samba cruza o último portão da avenida. Fim de desfile é tempo d​e​ desmontar alegorias e fantasias para ver o que poderá ser re​aproveitado ​no carnaval do ano seguinte. E é depois da quarta-feira de Cinzas que começa o período mais intensivo de reciclagem e descarte nos barracões da Cidade do Samba, onde estão instaladas as escolas do Grupo Especial do carnaval carioca.

Chassis e motores são reutilizados, já que têm vida longa. Já os imponentes carros alegóricos que cruzam o Sambódromo nos dias de folia voltam às origens, resumidos a carcaças de ferro sobre rodas. Ferragens e madeiras usadas como base dos carros alegóricos podem ser tanto ​recortadas e transformadas em novas alegorias quanto doadas para escolas do Grupo de Acesso. Plumas, penas e pedrarias​ ​​mais cara​s também entram na lista​ de recicláveis. Mesmo assim, cerca de 70% do material usado para construir um enredo é descartado de um ano para outro. Somente 30% são reaproveitados, reutilizados, transformados, vendidos ou doados.

Engrenagens, torres e queijos são reaproveitados pela própria escola no carnaval do ano seguinte. Foto: Cacalos Garrastazu.
O estoque de materiais reciclados de outros carnavais, como plumas, penas, pedrarias e alguns tecidos, fica vazio quando não há patrocínio para o desfile . Foto: Cacalos Garrastazu.

O trabalho de desmonte das alegorias começa cerca de duas semanas após o Desfile das Campeãs. É o momento de separar e guardar tudo o que poderá ser ​reaproveitado​​ pela própria escola. Entre as maiores agremiações do Grupo Especial, não é praxe reutilizar adereços de carros alegóricos ou desmanchar fantasias devolvidas pelos foliões que desfilaram, para reaproveitamento. A exceção está nas matérias primas de maior valor, como plumas e penas, encaixotadas no depósito dos barracões.

O passo seguinte é abrir o barracão para que outras escolas, geralmente de ​grupos inferiores ou outras cidades, ​comprem os materiais descartados para construírem um​ ​novo ​carnaval. Os preços são simbólicos, afinal o material já foi usado. É aí que o lixo vira luxo e pode ter o direito de desfilar outra vez. ​ ​O que sobra costuma ser doado para ​escolas​-irmãs​ e blocos carnavalescos com poucos recursos. Até a escola mirim da própria agremiação reaproveita o que foi usado pela velha guarda do samba.

Carnaval de luxo e riqueza

Salgueiro, vice-campeã do grupo especial do carnaval carioca deste ano, tradicionalmente investe em alegorias grandes e luxuosas, mas admite que pouco retorna à avenida no ano seguinte. Um exemplo são as estruturas metálicas maiores, como torres e "queijos" onde ficam os destaques, são cortadas para serem usadas novamente nos anos seguintes. “Como o carnaval é feito de novidade e cada enredo tem de ser inédito, economizamos pouco, cerca de 10% de tudo que investimos. Os carnavalescos Renato e Márcia Lage desenham o enredo e nós vemos o que temos guardado e podemos reaproveitar”, diz o diretor de Carnaval do Salgueiro, Dudu Azevedo.

Há muitos anos a escola vende parte do material usado no desfile. Neste ano, uma escola demonstrou interesse em comprar todo o Carro do Diamante, parte do enredo sobre a culinária mineira de 2015. No entanto, desde 2009 o Salgueiro doa saias de carros, adereços, fantasias e esculturas para até oito escolas, algumas da capital e outras de Cabo Frio e Nova Friburgo, algumas de outros estados. “Doamos os materiais que ficam no carro depois dos desfiles porque são escolas que não têm os recursos que nós temos para financiar o carnaval. E isso também nos ajuda porque não teríamos o que fazer com tudo que sobra, ocuparia espaço no barracão”, afirma Azevedo.

Carnaval de grana curta

A realidade de uma escola do Grupo de Acesso do Rio é tão diferente das grandes agremiações que basta vencer um carnaval e subir ao Grupo Especial para obrigar a escola a aumentar o descarte e reduzir a reciclagem. Campeã de 2015 na Série A do carnaval carioca com um enredo sobre os 450 anos da cidade, a Estácio de Sá começou o mês de março deixando pra trás a maior parte do que colocou na avenida neste ano. Reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como a primeira escola de samba do Brasil, a agremiação, que leva o nome do fundador da cidade, estava longe da elite do samba há nove anos.

"É uma mudança de patamar, não dá para desfilar no Grupo Especial com o que usamos para um enredo campeão na Série A. É outro nível", explica o diretor de Carnaval e Barracão do Estácio, Roni Jorge da Costa. O que permite esse salto, diz ele, é a disponibilidade de recursos para fazer um carnaval entre as maiores agremiações do Rio. Instalado num modesto galpão na Gamboa, ele comemora: "Vamos mudar para um barracão na Cidade do Samba, e o dinheiro lá é maior."

De volta ao Grupo Especial, o diretor de Carnaval da Estácio de Sá, Roni Jorge da Costa, diz que a escola aumentou o descarte e reduziu a reciclagem. Foto: Cacalos Garrastazu.

Mas estar entre os bambas do samba não quer dizer dinheiro fácil para levar um enredo à Marquês de Sapucaí. A história da Acadêmicos do Grande Rio na preparação para o carnaval de 2015 mostra que até as grandes escolas às vezes precisam substituir financiamento por criatividade. Sem patrocínio para contar seu enredo sobre jogos de cartas e com poucos recursos, foi preciso intensificar o reaproveitamento de materiais e usar quase tudo que havia no almoxarifado.

Deu certo: a Grande Rio conquistou o terceiro lugar do Grupo Especial. “Este ano foi um marco para a escola, pois tivemos um olhar mais apurado para a questão do desperdício por causa da falta de dinheiro", avalia Camila Soares, consultora de projetos especiais e presidente da escola-mirim Pimpolhos da Grande Rio, que sempre levantou a bandeira da reciclagem. "Escolas que têm mais verbas ficam mais à vontade para começar do zero. Mas acho que com a crise mundial e a dificuldade de conseguirmos patrocínios, reaproveitar os materiais me parece cada vez mais necessário para a sobrevivência do carnaval”, defende.

Com enredo sobre jogos de cartas, a Grande Rio não conseguiu patrocínio e precisou reciclar o carro abre-alas do desfile anterior. Foto: Cacalos Garrastazu.

Quarta-feira de Cinzas sem rasgar a fantasia

Vendo a dificuldade pela qual a Grande Rio passava, o carnavalesco Fábio Ricardo foi um dos primeiros a aderir ao carnaval econômico e construiu o enredo inédito de olho nos materiais que a escola já possuía em estoque. Para montar fantasias, alegorias e adereços, Ricardo buscou materiais mais baratos, como acetato, que dá cor e brilho às indumentárias. A escola não comprou penas e plumas e usou somente as que já tinha estocadas de anos anteriores. O carro abre-alas e o carro da cigana foram reaproveitados do Carnaval de 2014, quando a escola apresentou o enredo Verdes olhos de Maysa sobre o mar, no caminho: Maricá. Sem dinheiro em caixa, a escola substituiu materiais mais caros por tapetes para fazer o revestimento da "tenda" da cigana.

A construção econômica do enredo não impediu os jurados de gostarem do que viram. De um total de 30 pontos, deram 29,8 na categoria Fantasia e 29,7 no quesito Alegorias e Adereços. “Foi um carnaval focado na economia. Os jurados deram crédito para a criatividade do Fábio Ricardo e não necessariamente para o luxo do carnaval”, diz Camila.

Na Grande Rio, o carro da cigana foi revestido com tapetes, substituindo matérias primas mais caras. Foto: Cacalos Garrastazu.

Sobre a negociação com outras escolas, a consultora da Grande Rio conta que algumas esculturas, tripés e até mesmo carros são vendidos inteiros. Foi o caso de um carro usado em 2013, quando a escola desfilou um enredo sobre petróleo. Uma escola de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, comprou a alegoria e apresentou o mesmo tema no carnaval local no ano seguinte. “O dinheiro ganho com essas vendas é pouco para reinvestir no carnaval, mas ajuda na manutenção dos barracões, no pagamento de funcionários e das contas”, diz.

Na Pimpolhos da Grande Rio, que Camila preside, a reciclagem é um enredo permanente. A escola-mirim recebe muitas doações da Grande Rio, evita desperdícios e reaproveita desde estruturas de arames até roupas e fantasias para fazer novos materiais para as crianças. “Desmontamos fantasias, reutilizamos tecidos, refazemos carros com pedaços de adereços. É um trabalho de garimpo, de olhar o que foi produzido e doado para fazermos o nosso enredo”, afirma.

Após nove anos no Grupo de Acesso, o Leão da Estácio de Sá volta a elite do samba carioca. Foto: Cacalos Garrastazu.

De volta à elite do samba

Na Estácio de Sá, há quase uma década longe da elite do carnaval, as doações de outras agremiações ajudaram a driblar a falta de recursos. Nesse período, a escola do bairro considerado o berço do samba carioca reaproveitou materiais como madeira e ferragens de agremiações maiores, além das sobras dos anos anteriores. Ainda assim, não deixou de ajudar as escolas das séries B, C, D e do Grupo 2, que desfilam na Avenida Intendente Magalhães, no subúrbio do Rio com doações de fantasias, ferragens, arames e outras peças retiradas das alegorias.

“Recebemos muita ajuda no período em que estivemos longe do Grupo Especial. Reutilizamos e modificamos esculturas que compramos e recebemos de doações. Sabemos que qualquer tipo de ajuda para as escolas dos grupos mais baixos é bem-vinda”, afirma o carnavalesco Amauri Santos, quase um especialista em fazer carnaval com poucos recursos. Mesmo assim, ele e o carnavalesco Tarcísio Zanon conquistaram 299,7 pontos dos jurados no desfile de 2015 e uma vaga no Grupo Especial.

Com poucos recursos e muita criatividade, Amauri Santos e Tarcísio Zanon levaram a Estácio de Sá de volta à elite do carnaval carioca. Fotos: Cacalos Garrastazu

Santos começou a assinar desfiles de escolas de samba na União do Parque Curicica, que este ano ficou em 12º lugar na Série A. Entre 2009 e 2011, conquistou dois vice-campeonatos e no outro ano ficou na terceira colocação. “A criatividade do carnavalesco tem que ser maior nas escolas dos grupos mais baixos porque não há recursos para fazer um carnaval tão luxuoso. Então usamos materiais baratos ou reciclados e transformamos em alegorias e fantasias”, diz.

Desde o início de março, a Estácio de Sá desmonta seus carros e já pensa no carnaval 2016, já no Grupo Especial. Fotos: Cacalos Garrastazu.

Muitas vezes, explica, as agremiações das séries inferiores desenvolvem um enredo similar àquele da escola da qual recebeu doação para ter maior índice de reaproveitamento. Ele relembra que quando esteve à frente da Curicica chamou a atenção do público com um carro feito de papelão e latinhas de cerveja pintadas que, no final, viraram uma favela.

“O público gosta de ver um bom carnaval. A Estácio de Sá mostrou que é possível fazer um carnaval barato e glamouroso, mesmo com poucos recursos e muita reciclagem", resume o carnavalesco.

Apenas 30% do material usado nos desfiles é reaproveitado pelas escolas de samba. Foto: Cacalos Garrastazu.

Esta história foi escrita pela jornalista Thaise Constancio, com edição de texto das jornalistas Andréia Lago e Dimalice Nunes, fotografias e edição de imagens de Cacalos Garrastazu e design gráfico de Juliana Karpinski.

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