Moscou

Putin, homofobia, Michel Teló, engarrafamento de motoristas particulares, petróleo e inflação. Luxo e pobreza na capital da guerra

Leandro Demori
O Flamingo
8 min readNov 25, 2014

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Tanque russo T-90

Por Leandro Demori

Lênin é um cadáver insepulto. Seu corpo está guardado em um mausoléu erguido em um dos lados da Praça Vermelha. Se fosse um boneco de cera ninguém notaria. A cabeça — elevada com ajuda de um pequeno travesseiro — dá impressão de que algo despertou o líder da revolução enquanto ele cochilava.

Contei 30 segundos.

Foi o tempo em que pude olhar para ele e notar sua mão direita retesada enquanto eu o acompanhava em uma volta de 180 graus a passos lentos — observado por guardas, sem permissão para fotografar ou parar. Um cortejo fúnebre, repetido todos os dias desde 1924 na pirâmide brutalista construída pouco após sua morte.

Um palácio aparece do outro lado da praça assim que os soldados ordenam a saída da tumba. É o GUM, um dos edifícios mais luxuosos do país. Construído no século XIX sobre toneladas de destroços de edificações remotas, a galeria abrigava uma loja secreta de roupas — frequentada exclusivamente pelo alto escalão do Partido Comunista — antes de se tornar o ponto de ancoragem das mais luxuosas grifes europeias. Todas estão lá, sobretudo italianas e francesas. Eletrônicos, aneis, tapeçaria, móveis, ternos, gravatas, sapatos, comida, bancos.

O paradoxo que separa o mausoléu do líder comunista da galeria de consumo não mais espanta os moscovitas. O que os assombra são os novos tempos de guerra.

Monumento às mulheres que tocaram a indústria enquanto os homens combatiam. Ao fundo, a City, o centro financeiro do país.
Propaganda de rua: consumo e guerra.

Moscou é uma cidade cara, e seu custo de vida vem escalando montanhas desde o início das batalhas provocadas pelos políticos locais. A invasão da Crimea e os conflitos na Ucrânia legaram à Rússia bloqueios econômicos severos — e à capital, uma vertiginosa desvalorização dos salários. O baixo poder de compra se soma à desvalorização do petróleo e à incapacidade russa para produzir comida: a queda de importações da Europa é sentida no supermercado. Os preços são cada vez mais inalcançáveis.

Grande parte dos alimentos consumidos no país vêm de fora. Muitos sumiram das prateleiras, outros chegaram a valores que poucos podem se permitir.

Em uma loja nos arredores do centro, um pacote de 500 gramas de massa (Barilla) custava 200 rublos, algo como 12 reais, em outubro. Uma cerveja não saía por menos de 8 reais. Já custam mais do que isso. Quando estive em Moscou, cada dólar era negociado a 40 rublos. A inflação descontrolada derreteu ainda mais a moeda local: hoje, para comprar um dólar é preciso 46 rublos. Amanhã não se sabe. Nem a sangria em moeda americana que sofre o Banco Central é capaz de conter a hemorragia financeira.

Mas a Moscou impraticável não atormenta a todos.

Uma jovem prostituta senta na mesa do bar do Novotel e não pede nada, apenas cruza as pernas e começa a navegar no Facebook. Demoraria muito tempo até que ela recebesse uma ligação que não duraria 10 segundos. Um homem baixo de não mais de 50 anos apareceu cerca de uma hora depois, quando ela já fazia menção de ir embora. Seu rosto de frustração deu lugar à alegria, que não se desfez nem mesmo quando o homem se levantou e sumiu em direção à saída, trazendo na volta um estrangeiro alto de cabelo militar — que a levaria dali para uma noite de trabalho.

É assim na zona chique da cidade. Prédios com bancos e financeiras atraem dinheiro de muitas partes do mundo, alimentando as contas de uma boa quantidade de pessoas que fazem girar a máquina do luxo na capital russa. Mulheres com roupas exclusivas e joias bem lapidadas; homens em Armani e Ferrari. O exibicionismo é parte da rotina local como em poucas cidades do mundo.

No centro financeiro onde fica o hotel da rede francesa, carros importados das melhores marcas do Ocidente formam um peculiar engarrafamento de motoristas particulares, todos estacionados em fila dupla ao longo de gigantescos quarteirões, esperando que seus chefes saiam dos prédios envidraçados que formam uma paisagem pouco russa aos olhos de um visitante esperançoso em ver o concreto do antigo regime. São a casta — ou o que a imprensa internacional chama de “os amigos de Putin”.

Palácio GUM.

O ex-agente do serviço secreto é a figura perfeita para a Rússia dos dias atuais: ele resgatou os valores guerreiros da pátria e usou a fixação local por batalhas para conquistar apoio popular.

Putin está em canecas, chaveiros, quadros — sua efígie pilotando tanques, montando cavalos ou simplesmente posando de óculos escuros se espalha pelas bancas de rua até a esplendorosa galeria GUM, onde uma loja no terceiro andar vende moletons e capas de celular com o comandante-celebridade. O tom é de provocação. Em uma camiseta, Putin ameaça congelar a Europa ao cortar seu fornecimento de gás no inverno.

Militares são presenças constantes no principal canal de TV, em entrevistas coletivas apinhadas de jornalistas (ou figurantes?). No outro canal, um apresentador ironiza a ingerência dos Estados Unidos sobre o poder militar russo, entrevistando um homem vestido de Darth Vader, ridicularizado.

É possível visitar a catacumba de Lenin por apenas três horas a cada manhã. A fila que se forma do lado de fora da praça serve para detectar armas ou qualquer artefato que possa explodir o local. O mausoléu é um exemplo seguido em toda a cidade. O medo de atentados faz parte do cotidiano moscovita: scanners estão nas portas de hotéis, shoppings e estações de metrô; guardas vigiam todos que entram e saem; muitos fazem perguntas aparentemente sem sentido (“você vai entrar?”) em uma tentativa de intimidar prováveis terroristas. O clima é de permanente desconfiança.

O medo aumenta conforme o exército avança.

É possível ver guardas já na chegada ao país, saindo do aeroporto. Eles estão lá, em barreiras, plantados em meio a centenas de placas de comércios e sinais de pobreza de uma zona parecida com as regiões metropolitanas brasileiras, com seus postos de gasolina, lojas de conveniência e prédios esfarelando. É neles, em condomínios que abrigam milhares de pessoas, que vivem a maior parte dos cidadãos. Blocos tão grandes que se destacam do alto, formando um muro na enorme planície que vem do interior, barrando a entrada de suas árvores, seus bairros com pequenas casas coloridas e suas mansões cinematográficas à beira de um lago.

Propaganda de um gigantesco condomínio, comum na cidade: a 15 minutos do centro, garante o outdoor. Com o trânsito de Moscou, só se for construído no colo do cadáver de Lênin.

A zona periférica abriga toda a mão-de-obra da capital. Russos pobres e orientais vindos da média-ásia (sobretudo cazaques e mongois) que saem para trabalhar pelas manhãs inundando as ruas de carros. Ao olhar pela janela e ver um engarrafamento pior que os de São Paulo me veio em mente uma cena do livro La Tregua — me senti como Primo Levi, perdido na imensidão russa, sendo jogado para todos os cantos da cidade até o dia de minha partida, quando retornaria ao Brasil sem jamais ter descido do taxi.

Margem do rio Volga. CC by Nevermind2

O militarismo ressuscitado não trouxe somente paranoia a pobreza. A guerra arrastou para o parlamento o machismo de Estado. “Se você se declarar gay, vai preso”, garantiu Maria Skatova, uma jornalista ligada a ONG's de direitos das mulheres que encontrei por lá. Ela se refere à lei aprovada no ano passado, que pune homossexuais com cadeia caso incitem ao homossexualismo. Na prática, basta se declarar gay para correr o risco.

A aprovação da lei no Congresso parece fazer parte de uma paisagem onde armas e herois de guerra são os grande festejados da nação, marginalizando os demais. Em cada praça, ponte ou viaduto, brasões de cobre com escudos e espadas se misturam a figuras montadas, sentadas ou em pé, em poses de ataque. São os guerreiros russos de todas as eras. Uma das poucas exceções é a figura de Dostoiévski prostrado em frente à biblioteca que leva seu nome.

Em uma esquina com intenso fluxo de pedestres, um velhote faz discurso patriótico inflamado bem em frente à estátua do marechal Jukov, comandante da União Soviética. Na plateia, um senhor abre uma sacola colorida que parece a de uma loja infantil, revira e tira de la uma garrafinha de vodka. Dá um trago, solta um grito de apoio, fecha a garrafa e desaparece.

Na banca de souvenires, um garoto de cerca de seis anos pede para a mãe uma miniatura de um tanque T90, 100% russo.

Moscou é fascinada por seus bilionários. Senhores em ternos europeus ladeados por mulheres deslumbrantes estão diariamente nos jornais em língua local, e também naqueles editados em inglês. São denominados exatamente assim: bilionários. “O bilionário Usmanov comprou tal coisa.” “O bilionário Mikhelson vai investir em tal setor.”

No capitalismo russo, todos parecem ter o direito ao sonho do primeiro bilhão. Mas os bilionários são uma casta muito bem calculada. E a casta russa é fechada em um clube ao qual a guerra e o aparente enfraquecimento da economia são dádivas políticas. A imagem de que Putin é o maquinista de um trem desgovernado parece fazer menos sentido quando os jornais são arremessados nos quintais das casas. Vladimir e seus amigos viram as costas para o Ocidente com um propósito claro: apertar as mãos da China. As sanções econômicas da União Europeia — que privam a população de artigos básicos — têm explicação no andar de cima, nos prédios envidraçados, no engarrafamento de motoristas que escutam Michel Teló e Gusttavo Lima, sucessos brasileiros nas rádios locais. As explicações para o militarismo russo estão onde ninguém se importa com o preço de um pacote de massa.

Os gigantes parecem se movimentar para levantar uma cortina econômica. A Rússia busca alguma independência de uma Europa que, no fim das contas, sempre quis conquistá-la.

Os riscos para os europeus parecem evidentes.

Com os países ocidentais, se equilibrando no abismo das dívidas pós-2008, poucos poderiam recarregar seus canhões.

Os canhões russos já estão entupidos de pólvora.

Leandro Demori é jornalista e escritor, autor do livro Cosa Nostra no Brasil, a história do mafioso que derrubou um império.

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