O problema foi a conciliação de classes?

Moysés Pinto Neto
9 min readMay 18, 2016

--

Não há crise que não produza algum efeito positivo. Mesmo uma doença grave às vezes faz com que seu hospedeiro passe a dar mais valor a pequenas coisas, a perceber aspectos da vida que tinham passado despercebidos diante do turbilhão de exigências que caracteriza o dia-a-dia moderno. Certamente essa crise deve ter levado boa parcela da esquerda a repensar muitos pontos (e outra, mais fanática e paranoica, certamente não). Discute-se, hoje, se vale a pena pensá-los para já ou se é tempo de unir todas as frentes para derrubar o governo ilegítimo de Michel Temer, colocado no poder por meio de uma manobra parlamentar em desacordo com a Constituição que colocou em xeque a estabilidade das instituições vigentes no país. Penso que uma coisa não exclui a outra e, ainda que me pareça meio estranho focar todas as energias em mostrar as óbvias continuidades entre Dilma II e Temer, ou até entre todos os governos do PT e Temer, essa reflexão não deixa de ser importante para definir o foco que irá configurar as lutas nas ruas.

Gostaria, a partir disso, de discutir um dos diagnósticos típicos da esquerda sobre o que levou o projeto petista ao fracasso. Segundo ele, o PT teria desde o começo promovido uma "conciliação de classes" — até acusando a personalidade de Lula por isso — causando sua ruína ao final.

Assim como qualquer grupo mais ou menos fechado, como qualquer identidade, a esquerda tem seus chavões, códigos e xingamentos próprios. Um deles, típico do pensamento marxista e seus derivados, é o de "conciliador". Como a chave para a dialética da história é a luta de classes e a ideologia é, por excelência, a negação dessa luta, o conciliador seria a figura mais repulsiva, o típico pequeno-burguês que ocuparia o espaço da transformação atendendo ao interesse dos mais poderosos. Logo, quando se afirma que o PT promoveu "conciliação de classes" temos que entender isso como uma crítica ácida, um xingamento praticamente. O PT seria o "partido pelego", isto é, aquele que entrega aos donos do capital acordos que manteriam as coisas como estão, deixando de promover as transformações necessárias no enfrentamento entre as classes.

Esse tipo de crítica se liga a uma rede conceitual que abrange ideias como a ideologia e a alienação — a falsa consciência e a inversa "consciência de classe" — , o projeto revolucionário, a ditadura do proletariado ou a "hegemonia", o socialismo e assim por diante. Mesmo entre ideólogos do petismo como André Singer aparece algo como o excessivo conservadorismo do "pacto conciliador" do lulismo — no tom de lamentação sincronizada com a tese do intrínseco conservadorismo do povo brasileiro — dando lugar, em nível especulativo no fim do livro, não exatamente à luta revolucionária, mas a uma aliança entre a "burguesia industrial" e o antigo e novo "proletariado" contra os rentistas, construindo um arranjo nacionalista que impulsionaria o projeto de desenvolvimento brasileiro (isto é, uma torção cepalina do marxismo). Singer escolhe como seu interlocutor Francisco de Oliveira, cuja obra, entre outras coisas e se entendi direito, sustenta que em geral as conciliações promovedoras de reformas são piores, não melhores, para os trabalhadores à medida que reforçam as formas capitalistas. Trata-se, portanto, de um debate no interior de uma certa forma esquerdista de perceber o mundo na qual "conciliação" é uma ideia pejorativa.

Depois de 14 anos de governos de esquerda e todos os embates que isso causou, talvez seja o momento de debater dogmas e perceber que falar para dentro apenas não é suficiente. Os "revolucionários" que acompanho na Web, sempre discutindo teses mais e mais radicais sobre os erros dos reformistas, não conseguem dialogar com mais de dez pessoas. Deve haver alguma coisa errada quando alguém que pretende convocar para a luta a maioria oprimida não consegue se comunicar com mais que um petit comitê de esclarecidos. Começamos a perder a guerra retórica para a nova direita — e de fato estamos perdendo especialmente na classe dos batalhadores (fico na dívida de um post sobre a nova direita) — quando pegamos asco pelo debate, quando nossos conceitos e dogmas passaram a ser Lei de tal maneira que a convivência em grupo, que o diálogo e a conversa passaram a ser repulsivos. A síndrome de superioridade da esquerda nada mais é que uma faceta do narcisismo dos esclarecidos. O que, por sua vez, nos conduz à síndrome da "paixão pelas próprias ideias" que Zizek descreve, mostrando com muita perspicácia que nossa retórica radicalizada não é ação política. Enquanto os jovens de esquerda maoístas estão debatendo a revolução e queimando todos os aliados como "pelegos", cresce a estratégia mimético-viral das igrejas neopentecostais interessadas em ocupar o poder.

Não se trata, antecipo, de uma defesa do anti-intelectualismo (aliás, o dogmatismo esquerdista é só outro obscurantismo, a começar pela sua alergia ao falibilismo), nem de um pragmatismo na Realpolitik que ignora totalmente princípios e programa, e nem de uma adesão a um liberalismo social-democrata que se contentaria em promover acordos dentro da institucionalidade. Preocupa-me o baixo nível da reflexão e crítica entre a esquerda, para quem muitas vezes basta levantar chavões para se estar correto, invocando argumentos de autoridade (o "professor de História") e fazendo proliferar na web jornalismo de péssima qualidade, que na verdade nem jornalismo é, apenas com o fito de sustentar que a posição da esquerda é a correta. A um programa desidratado de ideias e incapaz de responder aos desafios atuais corresponde uma atitude cada vez mais agressiva e moralista, maniqueísta, linchadora e dogmática— avessa, em suma, ao questionamento crítico dos seus conceitos básicos. A dificuldade de conversar com pessoas que não estão na grade conceitual não por acaso conduz ao autoritarismo.

No entanto, não custa pensar que um cachorro não é um cavalo e portanto o PT não poderia ser o agente revolucionário que essa esquerda imaginaria possível. 2002, com a "Carta ao Povo Brasileiro", já sinalizava que o PT queria se "normalizar" no cenário político, incorporando-se ao establishment como uma alternativa reformista. Talvez o PSOL possa ser hoje a alternativa mais viável eleitoralmente de um projeto de radicalização da "luta de classes", mas exatamente por isso o PSOL não se elegerá, no horizonte visível, para o cargo majoritário da Presidência da República. Ou seja, ou o PT assumia uma faceta reformista, ou não se elegeria e muito menos governaria. Não se pode cobrar do partido que seja o que não se propôs a ser. E, aliás, não se poderia cobrar o PT que fosse aquilo para o qual não foi eleito para ser. Aquilo que o povo não desejava que fosse. A massa amorfa que vota no candidato majoritário não equivale a um povo com identidade de esquerda, nutrido pelos símbolos vermelhos e com convicções aristocráticas em relação ao senso comum. Quando Lula foi eleito, portanto, a expectativa não era de uma virada revolucionária, mas de um governo reformista que promovesse diminuição da pobreza e inclusão social, que tornasse o Brasil um país mais decente em relação ao arranjo que 500 anos de colonização, escravidão e violência promoveram. Não se pede a um cachorro que mie ou a um gato que lata. Pedir ao PT que fosse o agente da "luta de classes" e promovesse uma revolução brasileira é errar o alvo. A consequência é a moralização da política, com a utilização abundante de conceitos como traição e corrupção.

Sustento aqui, ao contrário, uma certa autonomia da política. E uma autonomia em camadas que negociam entre si. A negação da política foi o que afundou o projeto desenvolvimentista até o seu ocaso. Instaurou-se um pacto sem "combinar com os russos", para usar a expressão da moda, e no final se pagou a conta por uma "estratégia zumbi" que fortaleceu os adversários e enfraqueceu aliados, alimentando a retórica da esquerda no
"nós contra eles" enquanto, nas práticas reais, cada vez mais se governava pela direita. Me permitam citar o texto em que descrevi esse processo em agosto de 2015:

Dilma continua erraticamente usando exatamente a mesma estratégia que usou nos últimos anos, com destaque para as últimas eleições: pratica um jogo ambivalente em que toma medidas que agradam os setores mais poderosos da sociedade, buscando uma trégua, enquanto deixa seus pittbulls da mídia governista comandarem a militância usando a retórica do “nós” contra “eles”. Essa estratégia ficou clara quando vazou o memorando no qual os “blogs progressistas” são considerados carros-chefe da comunicação do Planalto. Evidentemente, está completamente equivocada, pois o lado beneficiado não se reconhece como tal na medida em que é atacado discursivamente como “o inimigo” e ao mesmo tempo tampouco tem qualquer simpatia pelo governo. Do outro lado, aqueles que o sustentam discursivamente se veem o tempo todo desmentidos pelos fatos, sem poder alegar a favor do seu discurso nada a não ser uma noção substancialista de identidade de esquerda que residiria na estrela petista. Quanto mais aumentam as concessões, mais forte fica o outro lado, que por sua vez sempre acha pouco o concedido e passa a atacar — agora, com a queda de popularidade — a fim de se colocar na cabeça do programa. Do outro lado, minguam as justificativas dos apoiadores, constantemente vendo-se constrangidos com escolhas como Kátia Abreu e Eliseu Padilha, e quanto mais defendem mais podem ter certeza de que o governo fará menos para ajudá-los a demonstrar seus argumentos. É incrível como algo que vem dando errado há tanto tempo — desde 2013, pelo menos — continua sendo repetido ad nauseam, sem que haja qualquer sinal de mudança de rumo. Não adianta dez milhões de pessoas dizerem que a estratégia está toda errada, ela vai se repetir até o fim. Passo a chamar, a partir de agora, de estratégia zumbi.

O que estou sustentando, portanto, é que o erro do PT não foi a "conciliação de classes", expressão que por si só já é um xingamento à esquerda. A questão foi uma contínua sucessão de equívocos de estratégia no jogo da política. Não se trata de censurar a decisão de negociar do PT em nome da pureza de princípios, mas de perceber que houve, durante o governo, numerosas situações em que poderia ter enfraquecido seus adversários e promovido transformações mais radicais. O foco do projeto no "desenvolvimentismo", baseado em um economicismo tosco, gerou uma sucessão de decisões políticas erradas que não podem ser simplesmente enfurnadas no rótulo "conciliação de classes", mas entendidas como uma experimentação equivocada que, pelo contínuo reproduzir de tomadas de posições erradas, acabou minando o experimento como um todo. A decisão pela "luta de classes" desejada pela esquerda revolucionária não ultrapassa o segmento de uma pequena fatia da classe média escolarizada, geralmente universitária, e outros pequenos segmentos da sociedade brasileira do ponto de vista quantitativo. Em outros termos, o erro não foi negociar, mas negociar mal o tempo todo.

Tenho sustentado aqui uma concepção sem fronteiras dessa ideia de negociação e estratégia na política. A meu ver, é um progressivo afastamento entre moral e política que permite superar o fundamentalismo de esquerda no debate político, isto é, a ideia de que toda ação de esquerda é fundada (no sentido filosófico de um "fundamento forte") e que portanto todo gesto na esfera pública deve ser lido na chave moral da pureza em relação a esse conjunto sólido e fundado de convicções. Em detrimento disso, trabalho com uma concepção mais falibilista que argumenta, por exemplo, ainda não termos uma solução clara para as grandes questões e que só a experimentação nos dirá qual o melhor caminho — e isso só virá quando deixarmos questionar os dogmas vermelhos. Essa convicção sustenta ainda que mesmo o mais horrendo — como a verdade que o estado de exceção é a regra — nos impõe uma contínua negociação com a exceção. Isso não quer dizer, já aviso, que aceito o estado de exceção, mas apenas que, ele existindo, só será destruído com a força da estratégia, e não com princípios jurídico-morais e suas narrativas idealistas, nem com um projeto revolucionário que não encontre infiltração popular, sendo apenas privilégio de alguns esclarecidos em seu pequeno comitê.

Certamente minha concepção de política pode ser considerada bastante cínica. Mas não vejo isso como uma decisão pessoal. Trata-se de adaptar as circunstâncias e ver o que funciona, de permitir que a ação política extrapole a retórica e possa mudar nossas formas de vida. De perceber quais são os movimentos que não são apenas para falar internamente, mas que têm efetiva chance de naquele momento enfraquecer o adversário. Nesse sentido, essa estratégia negocial é puramente contingente, ou seja, está vinculada ao estado das coisas que vivemos. Em uma visão utópica (que considero aquilo a que serve a negociação, mas estaria em outra camada da política) não existiria esse afastamento entre ética e política. Ao contrário, elas coincidiriam. A construção da nossa moral, o significado presente da moral, é que exige uma política cínica, negociadora. A utopia é reconstruir o vínculo perdido entre a política e a ética, fazendo proliferar formas de vida livres da coerção, autônomas, coletivas e ecologicamente viáveis. A separação entre camadas que exigem negociação não é apenas uma decisão voluntarista, mas a estratégia posta para — como Cavalo de Troia — destruir a separação entre as camadas, liberando a política da sua forma representativa e oligárquica.

A luta política, portanto, se dá em múltiplas camadas. Cabe a nós, estrategicamente, negociar para que as camadas utópicas possam penetrar, de baixo para cima, nas mais burocratizadas.

--

--

Moysés Pinto Neto

Blogueiro, escreve normalmente sobre política, música, futebol, filosofia e outros temas próximos. Migramos do blog 'O ingovernável' para essas bandas.