Cinema Novo de novo

A Yedra Ardey

Waldisio Araujo
Revista Krinos
12 min readMay 23, 2016

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Divulgação do Filme — Deus e o Diabo na Terra do Sol | Arte de Rogério Duarte

O Cinema Novo pode parecer à primeira vista algo hermético, talvez mesmo “elitista”, e a recente premiação de documentário homônimo de Eryk Rocha em Cannes deve trazer à tona esse e outros temas de discussão.

Mas não parece estranho acusar assim um movimento que se propôs justamente fazer uma arte mais próxima do povo? Como explicar o aparente paradoxo encontrado em um movimento que promete substituir as caríssimas produções e a correção técnica pelo preceito de sair por aí com “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”? Verdade que o cinema que se fazia antes era praticamente inacessível para cineastas sem maiores recursos financeiros e sua técnica só podia ser valorizada por uns poucos privilegiados do público ou da crítica que a entendiam, mas, ao fim e ao cabo, não seria mais que suficiente uma narrativa inteligível?

Para ajudar-nos a pensar sobre isso, utilizaremos o clássico Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Gláuber Rocha. Nossa hipótese é a de que esse baiano de Vitória da Conquista introduz de fato os riscos de uma subjetividade, e com eles os de um hermetismo fechado aos não-iniciados, mas trata-se antes de uma subjetividade coletivamente demarcada, logo regulada, que busca seu universalismo não propriamente na humanização do indivíduo, e sim na especificidade de um grupo específico — com a condição, é claro, de o grande público espectador ser de alguma forma introduzido a este, numa pedagogia preparada e levada a cabo durante o próprio ato de produzir, dirigir ou contemplar cinema.

Antes, porém, de abordarmos o filme, lembremos que o Cinema Novo se propunha evitar que a arte das imagens em movimento se tornasse mera questão de entretenimento, e isso por si só ameaça introduzir nos filmes um forte componente da personalidade do autor na medida mesma em que se excluem maiores concessões às interpretações demasiado fáceis por parte do público ou da crítica. Traduzindo em termos históricos, a tentativa de evitar as dificuldades técnico-financeiras e as implicações ideológicas das empresas Vera Cruz e Atlântida já tinha por si o potencial de afastar o coração do público mediante narrativas muito sutis, de difícil compreensão ou mesmo inacessíveis. Queremos aqui investigar por que isso não foi o problema.

De início podemos dizer que, por definição, o Cinema novo é popular no sentido de libertar a equipe cinematográfica dos estúdios fechados de gravação, das caríssimas e pesadas câmeras sobre trilhos, da iluminação milimetricamente orientada ou das superproduções à Hollywood, e nisso o movimento não pode ser acusado de “elitismo”. E tampouco pode ser acusado de obrigar atores, diretores ou cameramen ao aprendizado demorado e custoso de regras rígidas e canônicas de atuação e filmagem, conhecidas por uns poucos. Em ambos os casos, portanto, não parece ser do lado da concepção que devemos procurar um suspeito caráter “elitista” no Cinema Novo, mas do lado da recepção, ou seja, do público ou da crítica.

De fato, cinema é coisa cara de fazer-se, mas as formas de distribuição costumam, desde muito, fazê-lo chegar ao alcance do povo de forma relativamente barata, quer seja produzido em estúdio com câmeras imensas quer nas ruas e com uma pequena câmera de mão para filmagens de uns poucos milímetros. Por outro lado, o público não precisa entender as regras e experimentos de construção de cenas, tomadas, planos, ângulos, zoons etc., pois ele geralmente não pede mais que um enredo que o mantenha distante da percepção do mundo cotidiano por uma ou duas horas, para o que exige no máximo uma trama razoável e atores que atuem com alguma naturalidade — assim como o público de música costuma contentar-se com melodia e voz antes que com rigoroso estudo harmônico ou engenhosa composição arranjística.

Mas se é indiferente, para o público, a forma como foi feito um filme e quantos milhões ele custou, não seria então supérflua a “revolução” técnico-estética do Cinema Novo? Por que reivindicar para o povo o que já era bem popular, num tempo quase pré-televisivo em que as salas de cinema ainda reinavam soberanas nas capitais e no interior do Brasil? Por que a posteridade insiste em tratar o movimento como algo mais que um simples manifesto efêmero, de que o século XX foi tão frutífero?

É que talvez a intenção e o legado do Cinema Novo tenham sido acima de tudo pedagógico, num tempo em que o país pensava fortemente sobre seu papel no mundo, entre o otimismo dos anos Juscelino Kubitschek e a ditadura militar praticamente em andamento, na transição entre a era do rádio e o triunfo da televisão, num tempo em que se precisava colocar respostas urgentes aos desafios lançados pela história tanto ao povo brasileiro e sua cultura quanto à própria vocação artística e política do cinema como do documentário ou da ficção. E não seriam soluções satisfatórias permanecer este refém das dificuldades financeiras ou ideológicas da Vera Cruz e da Atlântida ou de algum modelo sugerido, como o do Realismo Socialista de cunho stalinista, com sua fusão monstruosa entre burocracia e propaganda.

Diante dos avanços de um modernismo que vinha produzindo uma cultura de massa cada vez mais impositiva — com seu cultivo da obra de arte facilmente digerível e voltada para o puro entretenimento — o Cinema Novo representou uma resistência contra a derrota iminente de uma cultura popular ameaçada não tanto de ser substituída por aquela cultura de massa, mas de ser por ela completamente desfigurada a ponto de assumir a ela como sua identidade própria.

O perigo era (e é) bem real, e no Brasil dos anos 50 ou 60 o popular evoluiu paralelamente ao populismo, enquanto o cultural e o político de ambos fortaleceram-se mutuamente, agonizaram juntos e ainda resistiam solidários frente a um mundo cada vez mais hostil e dominado pelos mass media. Nesse contexto, adivinhava-se que só a educação poderia servir de arma num mundo-cão dominado por duas superpotências atômicas impiedosas, que a todos engolfavam em sua “guerra fria” — termo que indicava a não-necessidade de confronto militar direto entre EUA e URSS, o que significava, na prática, uma pressão política e cultural sobre as regiões periféricas como o Brasil. Com a Bossa Nova e, logo em seguida, com o Cinema Novo, o país mostrava que poderia pensar por si próprio, se o deixassem aprender e amadurecer por conta própria. Mas não deixaram.

Gláuber Rocha tem um jeito de se fazer entender pelo público e que é bem diferente do que se costumou fazer antes e depois dele: não se contenta em permanecer no cumprimento à risca de uma correção técnica (como em O Cangaceiro, de Lima Barreto, 1953) e tampouco em estabelecer-se na mera superfície da narrativa (como em Aviso aos navegantes, de Watson Macedo, 1950) — que eram as duas formas, quase institucionais (a da Vera Cruz e a da Atlântida), que o mercado oferecia de manter-se uma objetividade suficiente para agregar público numeroso às películas nacionais nas salas de cinema do país. Estrategicamente, Gláuber parece perceber a necessidade de enfraquecer o caráter cosmopolita da cultura de massa e com uma certa concessão ao regional, quem sabe mediante a invenção de alguma modalidade de universalismo descolonizado, algo talvez aparentado ao nacionalismo de Villa-Lobos ou ao regionalismo mineiro que o escritor Guimarães Rosa vinha promovendo.

Em Deus e o Diabo na terra do sol narra-se a história de um homem, Manoel, que — após assassinar um injusto coronel que lhe tirara a possibilidade de melhorar de vida pelo usufruto do fruto de seu trabalho — desespera-se da justiça terrena e, desenraizado, parte pelo sertão, acompanhado a contragosto pela esposa Rosa, a seguir um grupo fanático guiado por um beato messiânico (Sebastião) que promete beatificação eterna em troca de uma fé cega, de uma vida ascética e mesmo do sacrifício de sangue inocente. Em seguida, porém, ao assassinato do beato (por Rosa) e de seus seguidores, Manoel passa a integrar o grupo de Corisco, um cangaceiro que lhe convence estar predestinado a fazer justiça na terra com o sangue dos injustos. Corisco, porém, é assassinado pelo pistoleiro Antonio das Mortes — que antes já sido contratado pelos poderes civil e religioso para matar o beato Sebastião. No final, Manoel, agora libertado de ter que seguir a alguém para encontrar a salvação, segue Rosa e ambos, nas cenas finais, correm pelo sertão enquanto este se vai transformando em mar, um mar onde o beato Sebastião profetizara encontrar-se a ilha dos bem-aventurados.

Pôster de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha

Diferentemente de O Cangaceiro, filmado no interior de São Paulo, Deus e o Diabo foi realizado em vários pontos da Bahia, sobretudo na região de Monte Santo, que é a retratada física e culturalmente no filme. Isso, é claro, se explica por uma busca de verossimilhança antes que de fantasia; contudo, apesar do aparente naturalismo, a película de Gláuber não se satisfaz com uma descrição tão pequena do real, mas quer avançar para a compreensão da magia incrustada na visão de mundo de suas personagens. Para usarmos de uma analogia literária com as obras de Eça de Queirós, seu filme está para o romance A relíquia como o de Lima Barreto está para Os Maias: não se trata de um outro faroeste nordestino (um “nordestern”, como apelidado), mas de um romance de formação psicológica que se desdobra como evolução espiritual da personagem no decorrer de uma viagem — gênero que faz imenso sucesso desde o Gilgamesh sumero-babilônico até o goetheano Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, e além. Como tal, trata-se, em suma, de paisagens e situações realíssimas que acontecem num mundo em que se adivinha a todo tempo o maravilhoso, o mágico, o mítico que preparam as mutações do heroi e onde o que menos importa é o enredo.

Quem vive (n)o Nordeste sabe que o messianismo e o cangaço são questão de mito e que põem e repõem toda uma problemática do bem e do mal ou do sagrado e do profano de forma apaixonante e vital — e não é à toa que tais temas têm sido abordados de forma igualmente oscilante: durante décadas beatos e cangaceiros foram considerados hereges ou assassinos, para em outros tempos virarem heróis que buscaram a justiça para o povo. Gláuber Rocha não destrói tais mitos, antes os utiliza para problematizar a visão de mundo nordestina, e foi esta problematização, creio, que deu a seus filmes uma certa impressão de hermetismo, elitismo mesmo, até porque o povo tende a preferir ver as coisas por uma perspectiva mítica e quando desmitifica é para lançar-se, conscientemente ou não, num mito contrário (se é que isso é privilégio somente do povo — a julgar pelo fato de que talvez o próprio conceito “povo” não passe de um outro mito, que teríamos herdado da época de Jean-Jacques Rousseau). Mesmo os homens e mulheres das “elites” nordestinas são fortemente marcados por essa mitificação, que parece fazer parte da atmosfera regional tanto quanto a caatinga, a feira e a resistência, não se divisando sinais de que isso queira (ou deva) extinguir-se.

Tudo se passa, em resumo, como se Gláuber tentasse universalizar o regionalismo como Luiz Gonzaga havia universalizando o gênero musical Baião: ao invés de condenar o universal (esse outro nome da cultura europeia) e combatê-lo com seu pretenso oposto — o individualismo — o cineasta teria optado por enfatizar o específico, o singular coletivo, o grupo bem localizável historicamente, ou seja, no tempo e no espaço. E para que esse coletivo menor pudesse ser compreendido pela universalidade nacional ou humana teriam-se introduzido duas ou três mediações: a do naturalismo, comentada acima, a da própria técnica e estética cinematográficas (que se desenvolvem sem maiores rupturas desde que Meliès começou, entre os séculos XIX e XX, a selecionar, recortar e reorganizar as imagens ao invés de simplesmente filmar) e a do pensamento questionador acerca das dualidades, sobretudo as metafísicas, sobre as quais se construiu e se ergue ainda o mundo moderno — problemática que nos aflige desde os questionamentos de Kant sobre o Iluminismo, passando pela crítica incisiva nietzscheana, mas que ainda nos aflige.

Ora, se as duas primeiras mediações não agridem o caráter inteligível e, portanto, popular do filme, a das dúvidas acerca do pensamento dual poderia decerto ser invocada para legitimar uma visão de mundo “elitista” do Cinema Novo. Afinal, o povo costuma aceitar os jogos de opostos como algo quer sagrado quer natural, de modo que mesmo sob seu nariz a problemática sequer sói ser notada; em tais condições, ser obrigado a pensar que o mundo não é em si constituído de coisas que se separam em pares equivaleria a uma tortura cerebral insuportável, da qual se fugiria de tal modo que o medo de compreender por parte do sujeito assumiria as formas de um caráter pretensamente hermético do objeto…

A atormentada personagem Manoel desencanta-se do mundo por ser vítima de poderes sociais capazes de tornar irrefutável uma razão totalmente falsa: aprende que a lei que serve ao indivíduo poderoso reduz os demais a meros pseudo-indivíduos, doravante nivelados à ideia de uma coletividade informe cuja existência apenas se reconhece miticamente como parte de um mítico contrato social pelo qual aqueles poderosos teriam recebido desde o princípio seu direito aos privilégios. A ira que conduziu Manoel ao seu primeiro assassinato foi mera consequência de sua impotência existencial em responder ao argumento irrespondível do outro: “A lei está comigo”. Isso quer dizer que a lei abole a oposição entre individualidade e coletividade, mas apenas na medida em que submete (pior: identifica) a segunda à primeira, criando no “sujeito” de direito uma contradição insuportável. Criatura dessa justa injustiça legal, Manoel imergirá no abismo de um dualismo irredutível que o levará a oscilar tragicamente entre duas formas de violência que não se resolvem como vida, mas que antes requerem em todo caso a aceitação da morte: de um lado, o pregador messiânico que promete a recompensa do justo após num outro mundo; do outro lado, o cangaceiro justiceiro que exorta à extinção do injusto ainda neste mundo. E mesmo a morte como solução nada tem de simples, pois nas suas duas formas requer-se do indivíduo a aceitação (não suicida, portanto) de um destino pelo qual ele deve engajar todo o seu ser, para sua própria salvação e a dos demais. Nessa guerra impiedosa entre o Bem e o Mal e entre Sebastião e Corisco, Deus e o Diabo incendeiam a terra, cuja inocência os não-engajados negam ao julgá-la castigada por um sol sem piedade.

A solução do beato, como a de todo milenarismo messiânico (por que não acrescentar: de direita ou de esquerda?), não poderia prescindir dessa oposição entre o Bem e o Mal, ainda que expressa em linguagem cósmico-apocalíptica: “O serão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. Ora, se cada um dos opostos vai se transformar no outro, a dualidade não se extinguirá, parecendo-nos lógico que seus dois membros apenas trocarão entre si de lugar. Mas o sofrimento de Manoel atravessa todo o espaço da dualidade, e é essa travessia entre o sertão e o mar que de alguma forma unifica tanto a personagem quanto o próprio filme — que começa com imagens do sertão e termina com imagens de mar e é trespassado pelas tensões jamais resolvidas da personagem, que se vão acumulando como detritos na paisagem que se transforma de terra em mar: é verdade que na primeira metade da película o “herói” segue o beato e na segunda acompanha o cangaceiro, mas tanto se imiscui o lado diabólico na santidade quanto o redentor na perversidade. A lei de Deus e a lei do Diabo parecem dividir a terra, na qual o reino das duas justiças determina que “somente depois de você cometer um crime maior pode ser perdoado pelos crimes que cometeu” antes. Nessa terra tostada pelo sol, terra que, não obstante, “é do homem, não de Deus nem do Diabo”, a humanidade é, no fundo, o único verdadeiro “justiceiro” possível — o que precisa morrer também para que se detenha finalmente a guerra do bem contra o mal que se desdobra na peleja, dentro do próprio homem, entre natureza e cultura.

Sim, parece mesmo difícil de entender o Cinema Novo de Gláuber Rocha, sobretudo para quem não viveu o interior do Nordeste. Trata-se de uma nova estética, como o foi o Movimento Antropofágico ou viria a ser o Tropicalismo, mas não é elitista, é apenas difícil. E é difícil não porque a linguagem e as figuras que usa sejam de interpretação hermética, cercada de significantes cujos significados somente se entregariam a privilegiados na arte — religiosa tanto quanto científica — de fabricar, distinguir e desdobrar pares de opostos. É difícil somente porque estamos talvez diante do reconhecimento inconsciente do único universal realmente possível para nós, aquele que pressentimos ameaçar romper em mil faces nossa artificial e fictícia “individualidade”, onde escondemos, de nós mesmos, há milhares de anos, aquilo que unicamente poderia permitir-nos adivinhar em nós algo realmente individual, mesmo singular: o Abismo insondável do qual provém o borbulhar do onírico que, quando sequer sabemos que dormimos, nos assoma à consciência quer como sonho bom quer como temeroso pesadelo.

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