Michael Balderstone no reino das ovelhas negras

Felipe Carneiro
Gente Extraordinária
8 min readMar 28, 2016

Nimbin, Austrália. Março de 2016.

No porão de um edifício do período entreguerras, em que tinta descasca das paredes e ripas de madeira cobrem as janelas, um velho de barba branca, parcos cabelos desgrenhados e óculos dearos arredondados fala com a voz rascada desde a cabeceira de uma grande mesa de centro. Na plateia informal estão meia dúzia de homens e mulheres de meia idade e, sobre o móvel, um sem número de cinzeiros, isqueiros, tesouras, papéis de seda e narguilés. Michael Balderstone despacha todos os dias de seu escritório na Embaixada do Cânhamo, a Hemp Embassy, entre alguns tragos (seus) e muita névoa (de cada um, entre amigos e estranhos que vem de toda a Austrália para vê-lo). Ele é uma eminência canábica que dedica seus esforços a ajudar pacientes com epilepsia e convulsões — crianças principalmente — a ter acesso a cannabis para uso medicinal. Atuando em uma área controversa e mesmo ilegal da medicina, Michael assume o papel de protagonista no ativismo para mudar as leis proibicionistas relacionadas à marijuana há mais de 30 anos. “A maconha te faz sentir bem. É difícil separar o que é espiritual, o que é medicinal, o que é o que”.

Balderstone teve uma infância próspera na fazenda da família em Warrnambool, no extremo sul australiano. As boas lembranças, porém, acabaram cedo. Aos 10 anos ele foi enviado pelos pais para a Scotch College, um colégio de regime interno, e nos sete anos que se seguiram só teve contato familiar nas férias de verão. “Era horrível! Apenas garotos, um rígido internato presbiteriano. Teve um fortíssimo efeito em mim”, relembra, franzindo o cenho. “Minha busca pela felicidade foi freada por aquelas paredes”. Aos 17, perdeu a paciência e abandonou os estudos a um ano de se formar. Trabalhou na roça por um tempo, mas acabou sugado pela bolha no mercado financeiro em torno de empresas de mineração em 1969/1970 — as ações da Poseidon NL, símbolo maior do estouro, inflaram de 80 centavos para 280 dólares em 4 meses — e Michael logo arranjou um emprego como corretor de ações em Melbourne. Se saiu bem, por talento ou carregado pelos ventos especulativos, e foi escolhido para uma temporada de treinamento em Londres. “Foi um período de muita farra e birita, eu passava a maior parte do tempo bêbado”.

Vista hoje, e de longe, a Austrália pode passar uma ideia de primeiro mundo cosmopolita. Em 1970, porém, os australianos não contavam mais que 12 milhões. É a população da cidade de São Paulo espalhada por um território poco menor que o brasileiro, numa época sem internet nem companhias aéreas low-cost. Sair da vigília dos pais e encontrar o auge da Swinging London foi uma libertação, e Michael começou a se perguntar se a vida não lhe reservava mais do que “fazer dinheiro virar mais dinheiro”, em suas palavras, e sumiu do emprego para viajar. Passou longas temporadas na Índia, rodou boa parte da Europa. Aos 24 anos, acampando em um pomar de laranjas, teve seu primeiro contato com drogas. Fumou um baseado de haxixe, e aquilo o marcou para sempre. “As árvores ficaram líquidas, eu podia ver o interior delas, a seiva transportando a energia. Tudo ganhou uma nova dimensão, mudou minha vida”.

Enquanto Michael se jogava no mundo em busca de um propósito, um pequeno vilarejo rodeado de fazendas de gado leiteiro perto da fronteira entre Queensland e New South Wales minguava numa recessão. Praticamente fantasma, a região de Nimbin foi escolhida por um grupo de hippies para sediar o Aquarius Festival. As lojas vazias do centrinho foram compradas a preços simbólicos de 500 ou 1000 dólares australianos, e fazendas inteiras eram alugadas por 2 dólares. Finda a celebração de dez dias, muita gente resolveu não ir mais embora. Tinha tudo a ver com a filosofia hippie, afinal de contas: vastos campos fertilizados para o cultivo, casarões vazios propensos à vida comunitária e cachoeiras. A cada dois ou três anos sem dar notícias, Michael voltava para casa a fim de rever parentes e ganhar um dinheiro (na época, era possível passar mais de um ano na Índia com 2 000 dólares australianos). O convívio com os pais sempre azedava em poucos dias, e Nimbin passou a ser uma das válvulas de escape. “Eu sou uma ovelha negra. Sempre fui, como um forasteiro na minha própria casa. Tudo mudou quando conheci Nimbin. Aqui eu senti que pertencia. Percebi que em todas essas viagens pelo mundo eu estava procurando um lugar onde não me sentisse um esquisitão. E aqui ninguém se sente esquisitão”.

O epíteto que Nimbin ganhou, de a capital da maconha, tem consequências contraditórias. Se por um lado o slogan caricato atrai milhares de turistas — e suas carteiras — todos os anos ao mesmo tempo que mantém afastados os especuladores imobiliários e redes hoteleiras que acabaram com o clima cool da vizinha Byron Bay (uma Copacabana em pequena escala); por outro impõe o peso de seu próprio estereótipo. É raro encontrar pedintes e mendigos mesmo nas metrópoles Sydney e Melbourne, mas eles são figurinha fácil em Nimbin. A venda de maconha é feita sem constrangimentos e os 9 policiais do vilarejo fazem vista grossa, mas a permissividade acabou dando brecha para a entrada de drogas mais pesadas, como metanfetaminas. “Os hippies não vendiam maconha, eles dividiam o ‘mato sagrado’. É que as crianças cresceram pobres, e viram na maconha do jardim um jeito de deixar de ser pobre. Somos uma cidade muito bem educado em termos de drogas, com muita demanda por maconha por parte dos turistas… não vejo mal nisso. O pessoal que vende metanfetamina vem de fora, e esses são os que causam problema, não fazem parte daqui”. Para Michael, a solução dos problemas passa necessariamente pela educação. “É o que eu faço há 30 anos, desde que cheguei aqui. Dissemino informação sobre a planta, seus efeitos, e sobre o fracasso da Guerra contra as Drogas”.

Dos dez aos 31 anos de idade, Michael não lembra de ter chorado uma vez sequer. “Hoje, em retrospecto, vejo que eu congelei. Para conseguir tirar alguma alegria da vida, eu simplesmente fechei a cortina para memórias brutais daquele internato, e a alienação em relação à família me afastou dos meus sentimentos. Minha habilidade de ser feliz também congelou”. Alguns anos depois daquele primeiro trago no haxixe, uma viagem com um cogumelo alucinógeno na Indonésia escancarou mais portas em sua psique. “Eu finalmente entendi o que Jesus quis dizer. Ele falava sobre um estado de espírito! Anos a fio me enfiaram a Bíblia goela abaixo, e eu entendendo tudo errado. A religião concentrou no externo, na igreja, no pão e no vinho, mas na verdade é tudo interno. É um sentimento. Tão simples que qualquer criança pode entender. Não admira que tenham feito as drogas psicotrópicas ilegais, elas acordam o espírito, te fazem ver através de toda a merda”. Para Michael, a droga não é um fim em si mesma; mas o cogumelo mostrou um caminho. “Todo mundo está procurando a felicidade, não está? Paz de espírito. Está tudo relacionado, como em um pacote: paciência, confiança, amor, felicidade, tolerância, aceitação… é um estado de espírito”. E reconectando-se consigo próprio, revisitando aqueles dias no internato em suas memórias, Michael desandou a chorar. “Quando entendi isso tudo, passei dois anos em prantos, sem parar. Descongelei. Uma espécie de cura aconteceu aos poucos, e sou mais feliz desde então”.

Michael acabou indo morar em Nimbin porque lá se sentia acolhido. A ovelha negra achou um rebanho sem ovelhas brancas. Eram ovelhas de todas as cores. Tomou a decisão em 1983, depois de uma temporada fazendo bicos na Grécia. Um festival em comemoração pelos 10 anos do Aquarius tomava forma, e ele tomou o rumo do vilarejo com uma amiga. Ali viraram um casal. Mais que um casal, uma família: ela trazia dois filhos de um relacionamento anterior. Foram pra Melbourne amarrar as pontas soltas, e já começaram 1985 na nova casa, em uma comunidade hippie em Nimbin, carregando no colo a primeira de três filhas biológicas que viriam. Michael abriu um brechó, e vendia principalmente roupas e objetos encontrados no lixo. A loja atraía ao mesmo tempo os locais em busca de um bom papo e os turistas querendo saber mais sobre a vida ali. Ele cansou do improviso daquilo (e de responder todos os dias às mesmas perguntas) e desdobrou o antiquário no Nimbin Museum, na Hemp Embassy e no Hemp Bar — todos dedicados a espalhar informações sobre a cidade e, principalmente, sobre a maconha e os malefícios da proibição. “Organizamos passeatas, escrevemos para os políticos, criamos folhetos, colocamos histórias nos jornais. Era um trabalho duro, que me deixava com muita raiva às vezes, mas que ao final do dia me dava o sentimento de propósito que eu tanto busquei”.

Impossível saber qual o tamanho de seu papel na história, mas em fevereiro de 2016 o parlamento australiano retirou da lei de narcóticos a proibição para plantar maconha com fins medicinais. Foi mais um passo de Michael em sua reconciliação com sua infância, uma vez que ele queria ser médico antes de chutar os estudos para o alto. “Estamos aqui ajudando as pessoas a se livrarem da dor, se sentirem bem, se sentirem melhor. Isso é bom, cara. É impossível ajudar muito as pessoas, não é? Mas parece que a cannabis pode fazer mágica… gente com uma vida de epilepsia, convulsões, e de repente elas ficam boas! Muda a vida do sujeito. É ótimo fazer parte disso”. O trabalho começou com a primeira passeata, 24 anos atrás. Ela se tornou anual, e ganhou o nome de Mardi Grass, um jogo de palavras com o Mardi Gras, o carnaval francês (grass, grama em inglês, é uma gíria para maconha). O evento ainda preserva seu cunho político, com palestras e palavras de ordem, mas Michael prefere enxergá-lo como uma festa onde qualquer um pode se sentir acolhido, como ele foi há 30 anos. “Acho que o aspecto mais forte do Mardi Grass é a junção de um monte de gente, que carrega o peso de ser criminoso porque gosta de cannabis, mas não precisa pensar nisso durante o fim de semana em Nimbin. É poderoso! Eu amo isso, é cru, é real. Nimbin é isso, é acolhimento sem julgamentos. É amor”.

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