Mixtapes e memória

Marcos Junior
4 min readJan 27, 2022

Para as gerações mais recentes é um tanto difícil entender que antes do streaming existiu uma época em que o acesso à música não era tão fácil como hoje. Não existia internet e num mercado fechado como o Brasil, os importados não eram acessíveis à esmagadora maioria das pessoas. Eu só fui ter um importado na era dos cds e mesmo assim quando já era capaz de me sustentar. Só haviam dois meios de ter acesso a músicas: os discos de vinyl e as rádios. O assunto destas linhas não é propriamente os discos, mas um quase complemento deles, a fita K7. Mais precisamente, as fitas coletâneas ou “mixtapes”.

Não dava para ficar carregando os discos de vinyl por aí e todo mundo que gostava de música tinha suas fitas k7 com suas músicas e discos preferidos gravados. Mesmo antes de se popularizarem os diskman, o normal era alguém ter um aparelho de som tipo “toca fitas” para escutar músicas fora de casa. O acesso aos discos também era mais difícil e quando um amigo tinha um disco mais raro, geralmente importado, o normal era levar uma fita para casa dele e gravar o disco. Haviam até lojas especializadas que gravavam fitas a partir de enormes coleções de LP que possuíam. Lembro da alegria que a partir de um anúncio de jornal, em 1989, descobri uma loja destas em Copacabana. Fiquei maravilhado com o catálogo de discos que eu poderia encomendar em uma fita gravada. Lembro que saí de lá com uma fita de bootlegs (na época nem usávamos este termo, que só descobri anos depois) do Iron Maiden e uma fita VHS com o Live After Death e o Turbo Live, do Judas Priest __ então minhas duas bandas favoritas.

Uma das modalidades interessantes de fita K7 eram as coletâneas. Nesta, você não gravava um LP inteiro, mas escolhia música a música o que iria gravar na fita. O resultado era uma certa expressão pessoal, quase um manifesto de gosto ou estado de espírito. Um exemplo era gravar uma mixtape para a namorada ou uma para uma determinada viagem em especial. Viravam uma espécie de trilha sonora para nossas vidas.

Sempre me interessei pela conexão da música com a memória. Se em determinado momento de nossas vidas escutarmos muito tempo uma determinada música ou uma música tocar em um momento muito especial, quase com certeza a canção e o momento se conectarão e será muito difícil desfazer esta ligação. Por isso muitas pessoas criam aversão ou amor por uma determinada música. Lembro uma vez, que estava apaixonado por uma menina, e numa festa a vi beijando outro menino. A música que estava tocando naquele momento ficou gravada em minha mente e sempre que a escutava não só aquele momento, mas as sensações daquele instante, voltavam. I Want It All, to Queen, ficou muito associado para mim com um momento de volta por cima, de confiança absurda, em uma determinada férias em Cabo Frio.

O filme Mixtape no Netflix (esqueci o título em português) me fez lembrar deste tempo com uma certa nostalgia. No simpático filme, uma menina pré-adolescente encontra uma mixtape gravada em conjunto pelos pais, que morreram em um acidente quando ela tinha 2 anos. A fita tinha quebrado, mas a relação de músicas estava lá e é uma forma dela tentar entender como eles eram, já que a avó evitava sempre falar deles.

Eu fiz muitas mixtapes na minha adolescência, especialmente nos meus tempos de academia militar. Eu tinha um toca fitas antigo, que meus pais tinham comprado nos Estados Unidos uns dez anos antes, que fazia um baita sucesso entre os colegas. Nas horas de folga juntávamos no alojamento para escutar nossas fitas.

Com os Cds, e principalmente os cds graváveis, a fita k7 foi aposentada. Os novos dispositivos, a partir do mp3, permitiam gravar muito mais músicas de modo que a seleção cuidadosa do que gravar se tornou dispensável. Com o streaming então, você faz playlits gigantes, quando não recorre à inteligência do próprio streaming para montar as listas para você. O toque pessoal se perdeu. O que se faz fácil não gera muita ligação emocional.

Na cultura pop temos algumas mixtapes famosas, cito duas. A mixtape do Barney no seriado How I Meet you Mother e a mixtape do Star Lord em Guardiões da Galaxia. Esta última tinha função semelhante ao do filme da netflix, conectar o personagem com o mãe, que faleceu quando era inda muito jovem. O diretor Cameron Crowe uma vez mostrou seus diários musicais: uma série de mixtapes organizadas por datas que funcionavam como um registro da trilha sonora da sua vida ao longo dos tempos. Se quisesse voltar ao ano de 1971, era só puxar a fita do ano e deixar a mágica acontecer. Comecei a fazer isso a partir do momento que assisti este filme, em 2001. Agora tenho que fazer um esforço de pegar os cds gravados (já não eram fitas) e montar as playlists no spotify.

E você? Lembra de alguma mixtape especial?

https://open.spotify.com/playlist/4MkWXfD6YH0e4Loy2W1d1p?si=62bfa5b4da734ea5

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Marcos Junior

Tentando viver a vida um pouco acima da linha da mediocridade, procurando descobrir a verdade sobre o mundo e confiando que ela nos liberta da ignorância.