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9 min readFeb 23, 2015

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Na fazenda Palmeirinha, a trilha inclui a passagem por rios e trechos alagados. Vídeo: Jéssica Kruckenfellner

Quem pensa em trilha como um trajeto insano em alta velocidade vai se surpreender. O objetivo de quem pilota um jipe é testar os limites do carro e logo na primeira subida é preciso perguntar: será que vai dar?

Para misturar-se a um grupo de pessoas com hobbys em comum, preste atenção às particularidades. Jipeiros, por exemplo, são grupos com características muito próprias — como descobri numa aventura pé na lama no fim de janeiro. Primeiro passo: não confunda um jipe com um carro. Isso pode parecer uma observação simplória para quem conhece esse universo, ou uma frivolidade para quem, como eu, acha que se tem quatro rodas e motor, então é um carro.

No meu caso, estou tão familiarizada com um jipe quanto você pode estar com o significado dos termos zequinha e dar um X. Mas nada que uma incursão nas trilhas do Rancho dos Amigos não possa reverter, e foi assim que decidi deixar o conforto da vida cosmopolita em São Paulo para entrar em contato com os excessos de sol, lama, mato e bichos. Muitos bichos.

Clique aqui para visualizar o caminho feito pelo Esquadrão da Lama até a Fazenda Palmeirinha

O local escolhido para adentrar esse universo fica dentro da Fazenda Palmeirinha, na cidade de Amparo, a cerca de 130 quilômetros da capital paulista. O Rancho dos Amigos pertence a uma família que decidiu explorar o terreno acidentado e isolado e montou trilhas para jipe e moto dentro da fazenda. O turismo está entre as fontes de renda do local, que cobra R$ 20 por veículo para incursão nas trilhas e dispõe de um restaurante que serve almoço e bebidas no Rancho. O local é parada obrigatória após o trajeto: após a trilha, os aventureiros retornam ávidos por sombra e boa comida.

Pegando a estrada

De carona com dois amigos, parti para o rancho às 7 horas da manhã no domingo, sentada no banco traseiro de uma Toyota Bandeirante vermelha 91, que deixou de ser fabricada no País em 2001. O Grupo de Jipeiros 3iii nos aguardava em um ponto de encontro no km 129 da Rodovia Adhemar de Barros. Para minha surpresa, não havia apenas jipes no grupo, mas também caminhonetes e veículos híbridos com tração nas quatro rodas.

A repórter, de carona com o jipeiro Fábio Bueno e Rafael Dias, que faz trilhas de moto. Foto: Rafael Dias

O 3iii nasceu em Campinas, interior de São Paulo, derivado de outro grupo de jipeiros da cidade, existe há um ano e meio e mantém a formação original. Com o tempo, agregou novas gerações, mas o nome é uma referência direta à terceira idade dos membros mais antigos. Na trilha da qual participei, o grupo foi guiado por Fábio Bueno, um engenheiro projetista que completou 25 anos recentemente e participa de trilhas com os dois grupos — 3iii e Esquadrão.

A turma mistura não só gerações como também parceiros de trilha. Esposas, filhos e amigos são convocados frequentemente para exercer a função de zequinha — ajudante do jipeiro que trabalha como navegador e auxilia também quando o jipe atola.

O zequinha é responsável por manusear os guinchos e a cinta dos jipes, quando é preciso resgatar outro veículo atolado ou quando o próprio jipe está em situação difícil. Com sorte, o zequinha aproveita o trajeto sem esforço e pode seguir bebendo sua cerveja. Mas sorte mesmo, para os jipeiros, é ver a trilha ficar complicada. Quanto mais os limites do jipe são testados, mais satisfeitos eles parecem ficar.

Ter um jipe, para essa turma, é mais que apenas adquirir um veículo. A escolha do modelo quase sempre envolve uma relação afetiva que o jipeiro estabelece com o veículo. Por não ser um hobby barato, a escolha deve ser a mais acertada possível. “Você compra o jipe no escuro, não dá para saber ao certo o estado do motor, por exemplo”, explica Irivam Pelegrini, presidente do grupo Esquadrão da Lama, do qual o 3iii é derivado.

Hoje, um jipe usado custa entre R$ 20 mil e R$ 40 mil, dependendo do estado de conservação e das melhorias feitas, mas a cotação varia muito. Os gastos com o veículo também devem incluir a customização e manutenção, que não são baratas.

Cada motorista personaliza o jipe de um jeito diferente, o que inclui a criação de modelos híbridos em alguns casos. Foto: Esquadrão da Lama

“A principal parte do hobby é a personalização, a trilha acaba sendo uma consequência”, conta Irivam. Ao comprar um jipe, geralmente usado, o dono deixa o veículo ao menos quatro meses na oficina mecânica, seja para resolver problemas ou para fazer modificações ao gosto do novo proprietário.

Uma das exceções a essa regra foi a compra da Toyota Bandeirante vermelha de Fábio, o guia na trilha que acompanhei. O jipe foi comprado recentemente de Irivam e não precisou de nenhum ajuste. “Eu namorava essa Toyota desde uma trilha que o Irivam fez com ela em Monte Sião”, recorda. Jipeiro há pouco mais de dois anos, foi Fábio que ofereceu a carona que nos permitiu acompanhar todo o trajeto, novo também para o grupo de jipeiros 3iii.

Jipe no qual a repórter pegou carona, ainda limpo antes da trilha— para os padrões dos jipeiros. Foto: Jéssica Kruckenfellner

Combinado o trajeto, partimos em uma fila composta por mais de 10 carros (ou melhor, veículos, como Irivam me alertou mais de uma vez). Carro é carro, diz ele, aquele que você usa para trabalhar, mas jipe é outra coisa.

Após alguns quilômetros pela rodovia duplicada, cortamos parte do caminho passando pela cidade de Jaguariúna. De lá, pegamos uma estrada vicinal de terra que leva ao Rancho dos Amigos.

A parada seguinte, já no restaurante do rancho, foi para separar os grupos que fariam a primeira trilha e acertar detalhes. Como nem todos os veículos são jipes, os motoristas precisam saber se é possível cumprir a trilha sem maiores problemas. Para entender, basta imaginar como retirar do chão uma caminhonete que pesa facilmente mais de duas toneladas para ter uma dimensão das dificuldades que o trajeto pode impor. Para poupar as caminhonetes, alguns motoristas foram de carona.

Parte do trajeto feito pelo grupo 3iii na Fazenda Palmeirinha, em Amparo (SP). Vídeo: Fábio Bueno

Quem pensa em trilha como um trajeto insano em alta velocidade, como eu cheguei a imaginar, surpreende-se ao perceber que os carros estão sempre em primeira, segunda marcha ou reduzida, que fornece mais força para passar pelos obstáculos mais difíceis e subidas íngremes. A trilha não é feita com pressa, para testar os limites do carro. Avaliar a melhor forma de fazer uma manobra ou vencer uma subida são os pontos altos, garantem os jipeiros. Logo na primeira subida, preciso perguntar: será que vai dar? Ao menos o calor estava a nosso favor e cuidou de secar boa parte da trilha, após a chuva do dia anterior.

‘Dá um X'

De um carro para outro (ops, jipe), as dicas e instruções soam nos rádios dos jipeiros na frequência 147–590, do Esquadrão da Lama. De repente, um dos integrantes do grupo pede para dar um X. A expressão significa parada, já que na primeira parte da trilha alguns jipeiros precisaram de ajuda para vencer a subida. A pausa pode ser apenas para esperar que o jipeiro com problemas retome o ritmo ou para que o comboio se desloque para ajudar.

Foi justamente nos trechos íngremes que descobri a emoção da trilha, assistindo a um jipe após o outro vencer as subidas. Você começa ouvindo o ronco do motor e em poucos segundos irrompe um jipe no topo do morro, muitas vezes sem que a parte da frente do veículo toque o chão. Jipeira de primeira viagem, me aproximei demais, comi poeira (literalmente) e fui alertada para manter uma distância segura do ponto em que os jipes subiam. Com as lentes de contato repletas de pó, passei o restante do trajeto lembrando do erro de chegar muito perto da emoção a cada piscada.

Na primeira subida, dois dos participantes do comboio precisaram de ajuda para chegar ao topo, usando uma rota menos íngreme. Vídeo: Jéssica Kruckenfellner

No meio da manhã, com o sol a pino, já havíamos vencido descidas e subidas igualmente íngremes e passado por trechos de mato alto com toda a sorte de insetos. O repelente, pensei, teria sido útil se não estivesse a mais de 100 quilômetros dali, esquecido em algum canto do guarda-roupa. Ao fim de uma hora, eu havia sobrevivido à primeira parte da trilha.

Durante a pausa estratégica dos zequinhas para repor o estoque de cerveja e remanejar os jipes que fariam parte do comboio na segunda fase, fui lembrada que havia mais. Muito mais: “A segunda parte da trilha é pesada, por isso os carros maiores não vão. Você tem certeza que quer continuar?” A pergunta foi feita mais de uma vez.

Naquele ponto eu pensava em duas coisas: a primeira parte não me pareceu aterrorizante ou demasiado perigosa, então achei que não faria feio na continuação. Além disso, se para os jipeiros quanto pior e mais difícil melhor é a experiência, eu não perderia a parte principal.

O alerta no meio da trilha maltrata a língua portuguesa e os jipes que percorrem o trajeto. Foto: Jéssica Kruckenfellner

A parte inicial foi a mesma, mas as semelhanças pararam por aí. Tão logo alcançamos um ponto distante do rancho, o comboio de jipes iniciou a sequência de subidas cada vez mais íngremes. Descer do jipe é uma opção para os zequinhas e caronas quando a manobra é arriscada, mas eu tinha minhas dúvidas se seria mais fácil subir um morro de terra seca, com poeira tão fina que lembrava um talco alaranjado, usando meus próprios pés. O reflexo da estiagem que assola São Paulo também apareceu em outros momentos, quando nos deparamos com carcaças de animais, mortos possivelmente porque não encontraram uma fonte de água.

Novatos

Após a parada estratégica, agreguei um acessório para enfrentar a fase final do trajeto: um boné. Depois de passar as primeiras horas de trilha corajosamente sob o sol forte e sem perceber nenhum problema aparente, um jipeiro gentilmente cedeu seu boné para que eu pudesse proteger a cabeça do sol cada vez mais intenso.

Só bem mais tarde eu descobriria que a pressa ao sair de casa e a inexperiência em aventuras no mato me fez esquecer de passar protetor solar nos braços descobertos. Na semana seguinte, convivi com o resultado: ombros brancos comuns a quem pega sol apenas uma vez por ano e braços bronzeados. Como o banco traseiro do jipe fica disposto na lateral, meu braço direito ficou nitidamente mais queimado que o esquerdo, completando os diferentes tons de pele que ostentei pelos dias que se seguiram à trilha.

Na parte final do trajeto eu já estava mais tranquila, mas fui surpreendida por uma última subida. Com o final da trilha em mata fechada, o comboio saiu próximo ao rancho, onde uma rampa de terra foi projetada como um derradeiro desafio aos jipeiros. Pela forte inclinação, muitos deles não conseguem chegar ao topo na primeira tentativa. Dei sorte: subimos logo na primeira tentativa, concluindo a segunda parte da trilha perto das 13 horas.

Na segunda parte da trilha, o comboio entrou na mata fechada cortando caminho por riachos. Foto: Rafael Dias

Passada essa última etapa, que para mim pareceu mais um batismo, encerrando o processo de iniciação no universo jipeiro, almoçamos no rancho.

Depois de comer poeira e trazer na pele as lembranças da incursão como novata entre os jipeiros, fica a certeza de que quero voltar, com mais protetor solar. Em tempo: roupas brancas não são nada apropriadas. (Algo que a repórter ignorou ao aparecer na manhã da trilha com uma blusa branca recém-adquirida, substituída às pressas por uma camiseta azul marinho.)

Registro de uma das trilhas feitas pelo grupo de jipeiros Esquadrão da Lama, com sede em Campinas (SP). Foto: Esquadrão da Lama

Esta história foi escrita pela jornalista Jéssica Kruckenfellner, com edição de texto de Andréia Lago e Dimalice Nunes, edição de imagens de Cacalos Garrastazu e design gráfico de Juliana Karpinski.

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