Cores e valores

A importância simbólica das cores de um clube

Revista Fora da Área
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6 min readMay 12, 2015

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Por Yuri Eiras

Na correria das manhãs de cidade grande, atravessei a rua sem olhar os veículos passando. Entrar na agência bancária cor-de-laranja, depois tomar um táxi amarelo-gema correndo contra o tempo — nublado por sinal, em tons de cinza-chumbo. Tarefas cotidianas que, por vezes, nos impedem de enxergar o colorido das coisas mais simples da vida.

Não queria mesmo perder tempo, mas perdi. No outro lado da calçada caminhava um senhor a passos tímidos e tortos, ao lado de uma moça que, a princípio, pareceu-me ser sua filha. O velho mulato vestia, com orgulho e saudade estampados no rosto, uma camisa do inabalável Bonsucesso Futebol Clube, equipe tradicional do subúrbio do Rio de Janeiro. O manto não era do tipo retrô nem do tipo outdoor; era antigo, apenas. Um azul brilhante, mas sem incomodar os olhos, se misturava em faixas verticais com um vermelho-sangue, que também nunca tinha visto igual. Sem patrocínio, sem frescura, sem frescor ou absorção de suor. A camisa tinha um escudo imenso bordado no peito. De tão grande, o brasão cobria quase por completo a região do coração. O tecido, já carcomido, apresentava linhas pouco organizadas, deixando buraquinhos em alguns lugares. Pensei no tamanho simbólico da camisa e do clube para o velho. De qualquer forma, a paixão pelo Bonsuça estava ali, em viva lembrança, em cores vibrantes. Nunca mais o vi.

Quase não atentei, mas eu também estava vestindo a camisa do meu clube e nem lembrava disso. Dizeres, formas e cores diferentes compunham o meu uniforme. Quase não achei o escudo. Parecia se esconder, entre uma logo enorme da Batavo e uma sigla em laranja que dizia BMG.

Pensei em quanto vale o assassinato dos símbolos básicos de um time de futebol.

O Bahia, em seu uniforme tricolor, veste as cores mais usadas nas fitas do Nosso Senhor do Bonfim. O azul, o vermelho e o branco estão em pulsos, prédios, altares para Ogum, Xangô e Oxalá; a Portuguesa de Desportos carrega a história da colônia lusitana em seu verde e vermelho da camisa; o Fluminense nos ensinou que a paz é branca, a esperança é verde e o vigor não é vermelho, é grená; o Santos escolheu ser todo branco só porque Pelé foi todo negro.

Cada clube tem seu hino, sua bandeira e seu brasão. O que mais identifica e aproxima os times dos torcedores, entretanto, são as cores. Quantas foram as vezes que você ouviu que um torcedor se apaixonou, quando criança, pelas cores de determinado clube?

Está na camisa presenteada pelo pai quando criança, no álbum de figurinhas, no time de jogo de botão; está nas primeiras lembranças de uma infância cercada pela bola.

O que fazem hoje com as cores dos clubes é um estupro à história. Patrocínios emporcalham verdadeiros mantos sagrados e fornecedoras de material esportivo preferem o lucro à tradição. Constroem argumentos longos e associações furadas para legitimar o absurdo. Camisa roxa, marrom, magenta, pink. Até camisa punk já teve, como essa do Brasiliense em homenagem ao Rock.

O Palmeiras marca-texto, o Corinthians roxo, o São Paulo todo vermelho (até no escudo), o Flamengo Tabajara Futebol Clube: é extensa a lista dos clubes que ousaram no terceiro uniforme. Todos eles viraram chacota entre torcedores rivais e desagradaram seus próprios fãs.

Foram poucos os acertos das fornecedoras, até aqui, quanto à aceitação dos torcedores para o terceiro uniforme do clube. De forma geral, ou viram motivo de piada ou não passam de mais uma tentativa de vender material sem se preocupar com o brasão no lado esquerdo do peito.

Não à toa que as linhas retrô têm crescido no número de vendas. A tentativa — seja do clube ou de empresas especializadas — de resgatar, em cores, as glórias passadas dos clubes é um sucesso entre os amantes do futebol.

Anos 1990: o início do fim?

Quem teve seu primeiro contato com o futebol nos anos 1990 reconhece que as primeiras lembranças do esporte surgem junto com uniformes, digamos, exóticos. O final dos anos 1980 até o início da outra década marcou no assunto pela substituição de materiais: entrou o tecido sintético, que prometia não ensopar o jogador em campo e manter sua temperatura. As fornecedoras de materiais esportivos se tornaram fundamentais na economia de um clube, pelas vendas de camisa e pela exposição de suas marcas. Diferentes formas geométricas invadiram as camisas e transformaram as singelas listras e faixas por aí em algo muito maior.

A página Uniforme dos anos 90 faz sucesso no Facebook relembrando algumas camisas históricas da época. Para Fábio Felice e Mateus Ribeiro, amantes e entendedores do assunto, aquela não foi a ‘década perdida’ dos mantos de futebol. “Nos anos 90 os times raramente lançavam terceiros uniformes espalhafatosos. Essa tendência começou mais dos anos 2000 pra frente. No final dos anos 90 algumas camisas eram mais coloridas, mais alternativas, e justamente aí que estava o charme; era um diferencial”, explica os administadores da fanpage.

Verdões, listrados ou de bolinha. A lista feita pelos administradores da página com os uniformes mais folclóricos dos anos 90 apresentou um Brasil multicor. Um para cada região do país.

No Nordeste, temos esta clássica camisa do Sampaio Corrêa. Com ela, a equipe maranhense foi campeã brasileira da Série C de 1997. Dá-lhe, Bolívia Querida!

Do Norte vem esta bela combinação de azul e branco da camisa do Paysandu. Produzida pela Finta, em 1993, ela ainda conta com a marca da Coca-Cola estampada, tradição do final dos anos 1980 e início dos 1990.

Se Túlio Maravilha fez ou não mil gols, o fato é que os primeiros 187 (na conta do próprio) foram feitos com esta camisa do Goiás, também produzida pela Finta. O Centro-Oeste é representado pelo esmeraldino, que foi campeão goiano e vice-campeão da Copa do Brasil naquele ano.

A dupla Paulo Rink e Oséas fez estragos pelo Paraná afora ostentando esta bela camisa do Atlético Paranaense de 1997, produzida pela Rhumell.

O crème de la crème vem do interior de São Paulo. Com essa histórica, multigeométrica e epiléptica camisa, o Bragantino foi campeão paulista de 1990, na final caipira contra o Novorizontino.

É possível ousar sem macular os uniformes?

Seguiremos todos, independente disto, envergando nossos mantos nas esquinas das cidades, como o velho mulato, certos de que nunca, nunca mesmo, uma marca de empresa representará mais do que as cores do nosso clube.

‘Cores e Valores’ é o título do mais recente álbum do grupo Racionais MC’s.

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