Prefeitura e governo estadual seguem caminhos diferentes sobre dependentes químicos

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8 min readSep 6, 2016
Foto: João Luiz/SECOM

Nos arredores da Estação Júlio Prestes, região central da cidade de São Paulo, a guarda civil metropolitana está em todas as esquinas. Além das viaturas, cavaletes e faixas cercam as esquinas entre a Alameda Dino Bueno e a Rua Helvétia, onde se concentram centenas de usuários de crack.

Por Beatriz Ramos
e Filipe Olivieri

Prefeitura e governo do Estado de São Paulo seguem caminhos opostos no tratamento da dependência química na Cracolândia. Enquanto gestão de Fernando Haddad aposta na reinclusão do indivíduo na sociedade, a estratégia estadual força a abstinência através de total isolamento.

Bruno Ramos Gomes,que atua na cracolândia desde 1998 com a ONG É de Lei, diz que o foco na abstinência não atinge todos os usuários. A ONG participou da elaboração do programa da prefeitura, o De Braços Abertos.

“O Braços Abertos não tem uma proposta de impor, mas de compõe [o tratamento] com o usuário”, diz Gomes.

Outro idealizador do programa foi o psiquiatra Dartiu Xavier, especialista em dependência química e fundador do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (PROAD) da Unifesp. “Passávamos o dia na Cracolândia, andando e conversando com as pessoas, pensando em possíveis soluções para o problema”, conta.

O projeto não foi aceito de imediato pela prefeitura, e Xavier destaca a importância da iniciativa da então secretária municipal de Assistência e Desenvolvimento Social Luciana Temer, filha do atual presidente.

“O programa foi implantado de uma forma meio tímida pela Secretaria da Saúde, mas a filha do Temer tomou a dianteira e implantou como era para ter sido inicialmente”, diz Xavier.

Atualmente, o De Braços Abertos acompanha mais de 450 usuários de crack e oferece atendimento médico e odontológico, além de investir em capacitação para o mercado de trabalho e acompanhamento multidisciplinar.

Disputas

“A Cracolândia é uma grande vitrine”, compara Bruno Gomes. “Tem lá pastor querendo levar a pessoa pra internação na clinica dele, tem gente que vai dar comida, um monte de coisa, a polícia, e tem os agentes da prefeitura e do governo do Estado”, explica.

Para o integrante da ONG É de Lei, a atuação simultânea do município e do governo do Estado está relacionada a disputa política. “De um lado está o Recomeço, pregando a abstinência e internações em comunidades terapêuticas. Já os Narcóticos Anônimos, Amor Exigente e o Braços Abertos que trabalham uma perspectiva de redução de danos”.

Em 2012, uma violenta intervenção da Polícia Militar, batizada de Operação Sufoco, reproduziu a política norte-americana na Cracolândia no sentido literal, e os abusos repercutiram no mundo todo.

Desgastado com o episódio, o governo do Estado lança no ano seguinte o programa Recomeço, sua suposta mudança de abordagem do uso e dependência como questão de saúde, na contramão tanto da politica municipal quanto de experiências bem sucedidas pelo mundo todo.

“O tratamento do Recomeço é basicamente que as pessoas se internem nas comunidades terapêuticas”, explica Bruno Gomes.

As comunidades terapêuticas reproduzem o modelo dos antigos manicômios e são notórias violadoras de direitos humanos. Um relatório do Conselho Federal de Psicologia elaborado após fiscalização de 43 comunidades terapêuticas, em 2013, denuncia a ocorrência de trabalhos forçados, tortura, violência, uso excessivo de medicamentos e doutrinação religiosa, além de ausência de atendimento médico e acompanhamento psicológico.

Para suportar essa política higienista, o Estado liberou a internação compulsória, decidida por juízes sem consulta à família e contra a vontade do usuário. “No Recomeço o usuário não responde por si, é um gerente de caso que vai falar o que ele vai ou não fazer”, diz Gomes.

Benedito Mariano, coordenador do De Braços Abertos e Secretário de Segurança Urbana, esclarece que o programa da prefeitura não prioriza o diálogo com comunidades terapêuticas. Segundo ele, “[o número] de pessoas que não voltam para o fluxo é muito pequeno. Mais de três mil pessoas, mas eles voltam, ficam no programa cerca de cinco a dez dias e voltam para o fluxo”.

Bruno Gomes reforça e afirma que o Estado sequer acompanha os usuários após a internação. A reportagem questionou a informação junto à Secretaria do Estado da Saúde e recebeu um relatório com diversas estatísticas, nenhuma delas relacionada à questão.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Abstinência ou Redução de Danos

“Nós trabalhamos com uma meta de 80% de diminuição do consumo, de autonomia dos beneficiários.” explica Benedito Mariano.

A política de redução de danos não adere à prática de abstinência da droga para a entrada do programa e nem como fim deste. Seu objetivo gira em torno da inserção do cidadão na comunidade, da diminuição dos danos sociais e à saúde e de sua independência. Inspirado em programas adotados no Canadá e na Europa, possui três principais pilares: a capacitação, o tratamento e a moradia.

Foi em 2003 que a política de RD (redução de danos) se torna um método condutor da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas e da política de Saúde Mental. Após ser unicamente utilizada nos Programas de DST e AIDS.

No entanto, o processo de aprimoramento e extensão da RD sofre ainda hoje com paradigmas éticos, clínicos e políticos. Tal política pública se choca com a corrente proibicionista, fundada em períodos de ditadura em um cenário de guerra às drogas.

A política proibicionista gera paradigmas de abstinência, fundados em instituições que veem na renuncia ao uso de drogas a única maneira de tratamento viável, sujeitando a área da saúde ao poder psiquiátrico, religioso ou jurídico.

O artigo científico Redução de Danos e Saúde Pública, de Eduardo Henrique Passos e Tadeu Paula Souza, contempla a situação pela interpretação de conjuntura semelhante: “é dentro deste jogo de poder que o usuário de drogas ora se vê perante o poder da criminologia, ora diante do poder da psiquiatria; ora encarcerado na prisão, ora internado no hospício. O saber psiquiátrico, bem como o saber criminológico, definiu uma forma, um enquadre um ‘estrato’ (Deleuze, 1988; Foucault, 1993) para o usuário de drogas”.

A respeito do programa Recomeço que promove internações compulsórias, Benedito Mariano diz que “o problema da internação compulsória é que o dado concreto de resultado de pessoas que não voltam para o fluxo é muito pequeno, eu acho que não passa de 5% e já passaram lá mais de três mil pessoas, mas eles voltam, ficam no programa cerca de cinco a dez dias e voltam para o fluxo”.

O programa Recomeço prega a abstinência através da internação voluntária (quando o usuário decide por si) involuntária (quando a família busca o serviço), ou compulsória, autorizada por um juiz do plantão judiciário do CRATOD, centro de referência de álcool e drogas do governo do Estado.

“Qualquer pessoa pode levar seu familiar, vai passar pela avaliação de um psiquiatra e um juiz que vai dizer se ele vai se internar numa comunidade terapêutica ou se ele vai para o CAPS de referência da região”, diz Bruno Ramos Gomes.

E continua complementando que a diferença fundamental entre o de Braços Abertos e o Recomeço é o controle do próprio usuário sobre o tratamento. “No Recomeço tem os gerentes de caso, o usuário não responde por si, é o gerente que vai falar o que ele vai fazer. Já no de Braços Abertos o tratamento é composto com o usuário. São diferenças bem claras entre uma perspectiva de redução de danos e uma perspectiva centrada na abstinência”.

Segurança

O psiquiatra Dartiu Xavier critica a atuação das forças de segurança na Cracolândia. “É um dos pontos onde critico o De Braços Abertos. Como eu estou lá só como assessor eu me dispus a dar um treinamento para as equipes que vão agir na rua. Fiz esse treinamento e quis incluir muito a GCM e a Polícia nesse treinamento, só que eles não foram”, explica.

Segundo Xavier, como consequência as forças de repressão “faziam um trabalho ‘atravessado’, atravessavam a proposta de redução de danos. Isso porque no mundo inteiro onde houve a aplicação desses projetos houve toda uma colaboração da polícia, da comunidade como um todo”.

Ainda sobre isso o psiquiatra destaca que existe uma relação pervertida entre policia e tráfico. “Então ao mesmo tempo a polícia é o fornecedor e o repressor, é uma coisa muito promíscua né? Mas eu acho que isso não é culpa dos policiais, é culpa da política proibicionista, como era na lei seca americana.”

Números

O acesso aos números do programa Recomeço é difícil e a Secretaria da Saúde não forneceu diversos dados solicitados pela reportagem, como o valor do repasse do governo para comunidades terapêuticas ou o acompanhamento pós-internação.

Ao invés disso, via assessoria de imprensa, o órgão informou que até o momento“o Cratod realizou 30.307 acolhimentos e fez 14.071 encaminhamentos de pacientes para internação, das quais 12.026 (85,5%) ocorreram de forma voluntária, isto é, com o consentimento do dependente. Também foram realizados 70.038 atendimentos telefônicos na unidade”, e que está testando o modelo de moradia assistida para pacientes após a internação.

A transparência é outro ponto gritante de diferença entre os programas estadual e municipal: o De Braços Abertos divulga periodicamente ao público suas estatísticas, e a Secretaria de Segurança Urbana forneceu para a reportagem as informações que seguem, referente ao dia 24 de agosto e são do Cadastro Único, que realiza pesquisas atualizadas diariamente sobre o programa.

Beatriz Ramos é estudante de Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e repórter pela Agência Democratize em São Paulo

Filipe Olivieri é bancário e repórter pela Agência Democratize em São Paulo

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