5 Dicas para você criar seu próprio sistema de RPG (parte 1/5)

Ygor H. Speranza
8 min readOct 1, 2022

--

Criar seu próprio sistema de RPG de mesa é ao mesmo tempo um excelente desafio criativo e uma ótima maneira de produzir experiências mais pessoais. Embora na superfície não pareça mais que colocar algumas palavras, números e tabelas em meras folhas de papel, a criação de um sistema de RPG pode ser maliciosamente difícil. Se já tentou e desistiu no meio do caminho ou perseverou somente para terminar desapontado com o resultado, você sabe do que eu estou falando.

O processo, contudo, não é mágico ou depende de inspiração divina, e existem formas de deixá-lo mais fácil. No intuito de ajudá-lo nessa empreitada, escrevo essa série com 5 dicas para a criação de seu próprio sistema de RPG.

“Mundos Pequenos IV”, de Kandinsky

Cada uma dessas dicas é apenas isso: uma dica. Um “ponto de partida”, uma técnica possível e uma perspectiva diferente de um mesmo processo: o processo criativo. Os métodos não são excludentes e, sem exceção, podem e devem ser usados em conjunto. No design, e não especificamente no game design mas no design em geral, frequentemente, para que entendamos o que estamos querendo criar, precisamos de muitos começos e recomeços. E nosso resultado final será um amálgama dos diferentes destinos para onde esses lugares nos levaram.

Vale pontuar também que nenhuma das dicas que serão oferecidas é unanimemente perfeita, especialmente considerando as tendências e características pessoais de cada um. Se elas não fizerem sentido para você e para o seu processo, ignore-as. Caso, porém, esteja com dificuldades e acredite que caminhos diferentes possam te ajudar, mesmo que eles não façam muito sentido para você e contrariem seu modo de pensar, tente-os.

As dicas são:

  • Dica 1: Comece de um sistema já existente e remova/altere suas partes;
  • Dica 2: Comece do zero e adicione partes conforme o necessário;
  • Dica 3: Analise e codifique o universo o qual você deseja simular;
  • Dica 4: Escreva uma sessão do seu jogo como se ele já existisse;
  • Dica 5: Teste e modifique seu jogo com base no resultado.

Nesse texto, falaremos da primeira dica, e textos subsequente cobrirão as outras quatro.

Dica 1: Comece de um sistema já existente e remova/altere suas partes

Quando estamos criando algo novo, frequentemente o fazemos motivados pelo desejo de fazer algo completamente diferente do que já conhecemos. Afinal, se for para “copiar” algo, porque não simplesmente usar o que já está pronto? Qual a graça nisso?

Essa perspectiva faz algum sentido, porém esconde uma realidade: quando criamos qualquer coisa, raramente o fazemos de um espaço completamente inexplorado. Seja no universo ficcional que escolhemos como ambientação, seja nas mecânicas que decidimos ou não utilizar, nos componentes físicos que escolhemos ou não incorporar, todos esses elementos não existem em um vácuo e se inter-relacionam.

Na hora de criar um sistema novo, não precisamos reinventar a roda em absolutamente todas as decisões que tomamos. Designs já existentes, no fim das contas, carregam com eles anos de conhecimento internalizado, decisões em cima de decisões cuidadosamente tomadas e refinadas por muitas pessoas inteligentes e capazes, obcecadas, assim como eu e você, por provocar a melhor experiência possível para seus jogadores.

Partindo desse princípio, uma excelente maneira de criar seu próprio sistema, que certamente foi bastante utilizada ao longo da história dos RPGs de mesa, conscientemente e subconscientemente, é a seguinte: parta de um sistema existente e modifique-o até atingir os objetivos que você deseja.

Comece procurando o sistema mais próximo daquilo que você quer fazer. Existem muitos, mas muitos mesmo, sistemas de RPG já criados por aí. Quando estamos começando no mundo dos RPGs, não temos uma noção muito clara, pois frequentemente somos expostos apenas aos exemplos mais populares, mas existem sistemas para coisas surpreendentemente variadas. Procure! Quando utilizamos esse método, inclusive, não é incomum que encontremos um sistema que já é exatamente o sistema que gostaríamos de fazer. Nesse caso, nem precisamos fazê-lo! É só jogar!

Na maioria das vezes, entretanto, nenhum sistema será exatamente o que estamos procurando. Sendo esse o caso, após encontrarmos o sistema mais próximo do que queremos fazer, partimos dele.

De início, resista e não faça nenhuma adição ou alteração. Tente chegar à experiência a que você deseja sem modificar nada, somente restringindo ou limitando as opções e regras que o sistema já oferece.

Por exemplo: suponha que você deseja fazer um jogo sobre uma academia de magos e feiticeiros e acredita que a 5a edição do D&D proporcionará uma experiência relativamente próxima da que você imagina ser a ideal. Como a sua ideia é que os personagens dos jogadores sejam professores de uma academia de magos, você restringe as classes que podem ser escolhidas de acordo: seus jogadores só poderão criar usuários de magia arcana. E como os magos que os jogadores irão controlar são poderosos, você determina que eles começarão de um nível elevado, já com equipamentos e artefatos apropriados ao seu nível de poder.

Isso foi suficiente? Se sim, ótimo! Talvez você não precise de um sistema totalmente novo para a experiência a qual você deseja oferecer, e o jogo que você quer jogar pode ser jogado como um subsistema de outro sistema. Talvez você, em realidade, esteja criando apenas uma aventura, módulo ou cenário para esse sistema. Tudo bem se for o caso!

Dito isso, sistemas, por definição, possuem diversas interconexões entre suas partes. Quando removemos ou suprimimos algumas delas, é esperado que eles “parem de funcionar” ou que, ao menos, funcionem de uma maneira inferior a como funcionavam antes. No exemplo acima é possível que só com algumas poucas de suas classes a disposição, os personagens da 5a. edição do D&D possam ficar muito parecidos entre si, e grupos grandes não tenham a diferenciação necessária que um sistema construído em cima do conceito de niche protection (como é o caso do D&D) precisa.

Esse estado de disfunção, porém, será exatamente de onde vamos querer partir.

Com a nossa “versão reduzida” ou restrita do sistema, teremos um (ou mais) problemas para resolver. Olhando para os “buracos” deixados pelo que removemos iremos fazer nossas alterações e adições.

Vamos voltar ao exemplo da academia de magos. O que podemos fazer para resolver o problema “os personagens são similares demais”?

  • Talvez queiramos adicionar mais classes de usuários de magia? Talvez elevar as subclasses existentes dessas classe em classes individuais?
  • Numa linha diferente, talvez não adicionaremos novas classes, por achar que as classes existentes já cobrem os conceitos de magos suficientemente bem. Talvez proporcionaremos uma maior diferenciação dentro das classes que já existem? De forma que um grupo composto apenas por Feiticeiros e Magos possa ter 10, 12 personagens diferentes que ainda assim não pareçam iguais uns aos outros?

Como mencionei antes, muito provavelmente você não terá um único problema. Talvez o D&D, com seu foco em exploração e combate, não possua alguns dos aspectos importantes para a temática de academia de magia que você tinha em mente para seu sistema. Por exemplo: quais regras regem o quão bem ou mal os personagens dos jogadores ensinam seus ansiosos alunos? Que dados rolar quando estiverem desenvolvendo suas próprias linhas de pesquisa?

Antes de começar a resolver um dos problemas, por mais tentador que seja, liste todos os problemas que você identifica na versão restrita do seu sistema base.

O motivo pelo qual fazemos isso é simples: quando entrarmos na próxima fase, em que iremos, finalmente, adicionar ou alterar regras e definições novas, se tivermos uma visão suficientemente completa de todos os “vãos” entre a experiência que temos e a experiência que queremos criar, teremos uma maior garantia de, ao adicionarmos partes ao sistema que estamos fazendo, não iremos “solucionar um problema agravando outro.”

De volta ao exemplo da universidade de magia:

Suponha que você, para dar maior diferenciação entre as classes arcanas, tenha decidido criar mais escolhas para elas (afinal, essas escolhas a mais vão permitir que vários Magos e Feiticeiros sejam mais distintos entre si). Ao fazer isso, se você não conhecer de antemão os outros problemas, você perde uma oportunidade de “matar dois coelhos com uma cajadada só”.

Imagine que, por exemplo, para diferenciar os Magos você ofereça uma escolha de “Estilo de Professor” do personagem. Um mesmo Mago ou Feiticeiro pode ser o “Professor Doidão”, o “Professor Difícil”, o “Professor Ausente” da academia, e por aí vai.

Com uma adição de apenas um elemento, repare como você consegue duas coisas de uma vez. Você consegue:

  • Aumentar a diferenciação entre classes até agora similares; e
  • Dependendo do design desses estilos e das regras relacionadas a eles, adicionar aspectos desejados da “vida de universidade” ao seu sistema, que era um dos lugares onde você queria chegar.

Seria possível resolver esse problema com dois conjuntos de regras diferentes? Provavelmente sim. No entanto, através desse “reaproveitamento”, estamos adicionando sempre o mínimo necessário na hora de criar um sistema. Isso garante duas coisas diferentes:

  • Evita que o nosso sistema sofra com “inchaço de escopo” e, com ele, que seja mais complicado do que precisa ser; e
  • Garante que nosso sistema será o mais elegante possível.

A elegância de um sistema, no fim das contas, é isso: quanto menos um sistema precisa para ainda assim fazer tudo que queríamos que ele fizesse, mais elegante ele é.

Mesmo buscando essa elegância máxima, é possível que você detecte que suas adições e alterações não foram suficientes para resolver todos os problemas mapeados por você. Ou talvez tenha, de fato, resolvido todos os 7 problemas conhecidos, mas criou mais 3. Faz parte! O design é um processo iterativo. Volte para os sete problemas iniciais e tente outra abordagem, ou continue dos três problemas atuais e comece uma nova rodada de design.

Colocando como uma lista de passos, o método descrito pela Dica #1 pode ser apresentado da seguinte maneira:

  1. Pegue um sistema de RPG mais próximo do sistema que você deseja criar;
  2. Remova dele as partes que você não precisa;
  3. Detecte e liste os problemas que surgem (as coisas que estão faltando para o seu jogo ser o que você quer que ele seja);
  4. Altere ou adicione partes que tentem resolver esses problemas;
  5. Experimente com o jogo que você tem. Volte para o 3 com base no seu experimento.

Ao final desse processo, você terá um jogo novo, e terá criado o seu sistema. Parabéns!

Se você precisou de apenas algumas modificações e o jogo ainda é em sua maior parte parecido com o sistema original, você provavelmente tem um hack nas mãos, como costumou-se chamar. Se, por outro lado, você modificou pesadamente o sistema base, ao ponto de sua origem ser irreconhecível (ou quase), talvez você tenha um sistema novo. Hora de pensar em um nome para ele!

Tendo dito isso, vale retomar o ponto que levantei no início: quando criamos algo, não devemos ter, por objetivo isolado, que essa coisa seja “diferente de tudo que existe”. Obviamente a originalidade deve ser almejada. Porém, a originalidade só vale se o resultado é bom. Se criamos uma experiência completamente nova mas ela é uma experiência ruim, ou, se, para criarmos uma experiência completamente nova tentamos algo diferente só por ser diferente, independente do resultado, ignorando ideias e soluções já existentes, estamos sendo “diferentes só por ser diferentes”. Esse tipo de diferenciação forçada pode até chamar a atenção, mas é uma atenção passageira, que não se sustenta no tempo, e, pior, pode exigir um aprendizado e uma adaptação para a qual seus jogadores não tem nem o tempo nem a energia.

--

--