O Bom Menino, 1837.

Como ser Educado

Fer Feres
10 min readSep 12, 2014

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A maioria das pessoas não percebe que eu sou educado, o que é justamente a questão. Eu não pareço educado. Sou um homem grande, de aspecto abatido, e preciso de um corte de cabelo. Nenhuma viva alma iria associar a minha pessoa a um sanduíche de agrião. Mesmo assim, todo ano alguém me leva para um lado e diz você é mesmo cortês de um jeito curioso, não é? E isso sempre me emociona. Eles notaram.

Os elogiadores nem sempre formulam o elogio com tanta delicadeza. Por exemplo; há dois anos, no final de um difícil projeto na empresa, enquanto alterava lentamente mil quadradinhos vermelhos para o amarelo em uma planilha, e depois, para o verde, minha colega se virou para mim e disse: “Achei você fosse o maior puxa-saco quando começamos a trabalhar juntos”.

Ela fez uma pausa e franziu a testa. “Mas, no final, isso me ajudou a fazer o trabalho. Foi uma estratégia”. (É assim que uma pessoa rude faz um elogio, o qual eu aceitei de bom grado).

Ela ficou surpresa ao ver o teimoso poder da cortesia ao longo do tempo. Ao longo do tempo. Essa é a questão. Na maioria das vezes falamos muito sobre educação no momento. Por favor, obrigado, pode passar, gostei do seu chapéu, legal o seu sapato, você está bonita hoje, por favor, sente-se aqui, senhor, senhora etc. Tudo muito legal, mas fugaz.

Manuais de Etiqueta

Quando eu estava no colégio, costumava ler manuais de etiqueta. Coisas como Emily Post e afins. Achava os manuais interessantes e muito engraçados. Havia coisas boas sobre como escrever uma mensagem de condolências e coisas ridículas sobre como se comportar em barcos ou na Casa Branca.

Não esperava aplicar minhas descobertas em meu cotidiano de adolescente. Eu era uma figura secundária na escola — não era popular, mas também não pegavam no meu pé. Fui eleito o “mais culto” da minha classe, o que equivale mais ou menos ao título de “menos propenso a fazer sexo”. No colegial ninguém notou minha educação, exceto um garoto. Ele me xingou por causa disso. “Por que você é sempre tão educadinho, cara?”, perguntou. “É estranho.” Encarei isso como um elogio e tomei nota para disfarçar mais, para ser mais desrespeitoso. A educação de verdade, pensei, era invisível. Ela se adapta à situação. Mais tarde, esse mesmo garoto roubou a minha fita cassete do Aqualung.

Mas não importa. O que eu achei mais interessante foi a forma como a prática da etiqueta permite desenhar um círculo de proteção ao seu redor e também ao redor de suas emoções. Ao seguir as prescrições do livro, é possível se arrastar por uma situação terrível e, quando tudo acabar, jogar as luvas brancas no cesto de roupa suja e seguir em frente com a vida. Percebi que o mundo lá fora era grande e que a etiqueta viria a ser importante ao longo do caminho.

No começo isso não aconteceu. Ninguém precisa de cartões de visita na faculdade (embora me surpreenda o fato de que eles não tenham voltado à moda entre os estudantes de teatro). E aos vinte anos, descobri que poderia marcar pontos positivos com meus avôs, visitando-os e falando respeitosamente. Mas então, de uma para a outra – a etiqueta passou a ser importante. A minha capacidade de ir a uma festa e falar com qualquer pessoa sobre qualquer assunto, e de fazer perguntas para incessantemente levar a conversa de volta ao meu interlocutor significava obter uma quantidade enorme de informações sobre outras pessoas.

Eis aqui um truque de uma pessoa educada, que nunca falhou comigo. Irei compartilhá-lo porque gosto de você e o respeito e, para mim, é óbvio que você saberá aplicá-lo com sabedoria: Quando você estiver em uma festa e for empurrado para conversar com alguém, veja quanto tempo você consegue esperar antes de falar sobre o trabalho dessa pessoa. E quando essa calmaria dolorosa chegar, estabeleça o domínio da situação. Aprendi a tirar grande proveito dessa primeira pausa agonizante, porque sei que aí poderei aguentar a conversa por completo. Basta perguntar a outra pessoa qual a profissão dela e, logo depois da resposta, dizer: “Nossa! Parece difícil”.

Porque quase todo mundo acredita que o seu trabalho é difícil. Uma vez fui a uma festa e conheci uma mulher muito bonita, cujo trabalho era ajudar as celebridades a usarem joias da marca Harry Winston. Pude perceber que ela ficou desapontada ao ser apresentada a mim, esse gigante amarrotado com uma camisa de uma marca desconhecida. Mas quando disse a ela que seu trabalho parecia difícil, ela se alegrou e falou sobre safiras e Jessica Simpson durante 30 minutos, sem parar. Ela ficou tocando em mim enquanto falava, o que eu perdoei. Não revelei nenhum detalhe sobre mim, incluindo o meu nome. Finalmente, alguém me levou de volta à festa. A coordenadora de joias das celebridades sorriu, pegou a minha mão e disse: “Gostei de você!” Ela parecia tão aliviada por ter desabafado. Encarei isso como um grande sucesso. Já se passou, talvez, uma centena de vezes desde a primeira ocasião em que eu disse: “Nossa, parece difícil” para um estranho, e sigo obtendo grandes resultados. Eu fico em casa com meus filhos e não tenho mais vida, então aceite este truque para festas como meu presente a você.

Meu amigo e eu bolamos um jogo chamado Anedotistas. Você se junta a outro Anedotista em uma festa e conversa com quantas pessoas puder. Ganha-se pontos ao levar as pessoas a revelarem algo sobre suas vidas. Se você dominar a conversa, perde um ponto. Os dois anedotistas se comunicam por meio de gestos com as mãos e mantém um registro em uma folha de papel, ou em suas mentes. Você pode pensar que as pessoas perceberiam, mas elas estão se divertindo tanto com a atenção que recebem que sequer notam que você está jogando Anedotistas.

Mexer no Cabelo

Uma maneira de ser educado é não tocar nas pessoas, a menos que seja especificamente convidado a fazê-lo. Você ficaria surpreso com quantas vezes as pessoas estragam tudo nesse ponto; basta pesquisar na internet por “mexer no cabelo de uma mulher negra” e maravilhar-se com o número de artigos, posts e guias. Abaixo. uma entrevista da jornalista Jenna Wortham no New York Times, publicada no The Awl sobre mexer no cabelo:

Sei que isso pode soar como exagero para alguns, mas ter alguém encostando em mim sem a minha permissão ferra com o meu dia e com o meu senso de privacidade e espaço pessoal, me levando a uma sensação de confusão mental onde tento descobrir que sinais inconscientes eu teria dado para indicar que não haveria problema fazer isso, embora eu saiba que tais sinais não existam.

Li muitas histórias sobre pessoas brancas tocando no cabelo de pessoas negras e fiquei pasmo. Não é nem por causa do racismo. É simplesmente porque, como uma pessoa educada, a ideia de estender a mão e tocar no cabelo de alguém me dá arrepios. Em qual situação isso seria aceitável? Se houvesse uma aranha grande e venenosa ali. Se eu estivesse fazendo um truque de mágica. Ou depois de seis anos de casamento, ou mais.

Mas há exceções. Eu dou leves tapinhas na cabeça de crianças que conheço há pelo menos seis meses. Se crianças querem sentar no meu colo ou pedem para subir nas minhas costas enquanto eu faço barulhos de cavalo, faço contato visual com seus pais primeiro, para depois brincar com elas. Depois disso, eu poderia fazer carinho nas cabecinhas delas. Não me oponho a ficar despenteando os outros em certas circunstâncias bem definidas e adequadas.

Mas há toda uma série de problemas que passa longe da minha vida no momento em que vejo as pessoas com uma barreira invisível de mais ou menos um metro ao redor. Se eu vejo um fio de cabelo na blusa de alguém, pergunto se posso tirá-lo. Se elas não quiserem, elas mesmas o tiram. Se seu nome agora é Susan, é Susan. Qualquer coisa que acontecer dentro desta barreira diz respeito somente a elas. Não tem nada a ver comigo.

Agora, mesmo que eu seja entendido do assunto e tenha estudado livros de etiqueta, aprendi tudo isso da maneira tradicional, estragando tudo terrivelmente e tendo que enviar e-mails pedindo desculpas no dia seguinte. Os e-mails de desculpas são uma menção particularmente embaraçosa. É uma tortura ter que enviá-los. Fico muito bêbado e discorro rios de vulgaridade. Ou digo algo estúpido. E então, eu acordo e dou um suspiro. “Eu percebi”, escrevo, “que é possível que eu tenha me comportado como uma pessoa absolutamente insuportável na noite passada”. Eu nunca toquei o cabelo de ninguém, não que eu saiba. Mas é claro que eu poderia. Uma coisa sobre ser educado é saber que, dentro de você, se esconde uma pessoa incrivelmente grosseira.

Há mais ou menos 20 anos eu li em um fanzine uma entrevista com uma prostituta, na qual ela apresentava as regras para seus clientes. A maioria das regras são questões de bom senso sobre usar preservativos, não se atrasar e assim por diante, mas a regra que nunca me esqueci foi: “não cagar no meu banheiro!”. Foi em negrito e sublinhado, com pontos de exclamação (era um fanzine, lembre-se).

Sempre que leio sobre profissionais do sexo — o que ocorre frequentemente, já que nossa cultura é obcecada por eles — esta regra surge em minha mente. Nunca tive motivos para testá-la. Mas gosto de pensar que, se alguma vez contratar uma profissional do sexo, saberia como lidar com essa situação. Por exemplo, se fosse necessário, eu faria uma parada rápida no Starbucks antes de ir ao apartamento dela. E já que eu estaria no Starbucks, poderia me oferecer para trazer café. Mandaria um SMS “No Starbucks”. “Quer alguma coisa?”. E a pedido dela, eu compraria um Frapuccino de Caramelo® levemente misturado e, quem sabe, um bagel com queijo cheddar. E sim, eu sei que é imoral para uma mulher em Nova York querer um bagel do Starbucks. Mas quem sou eu para julgar?

E é aí que a fantasia acaba. É apenas uma pequena regra guardada em meu cérebro, na categoria Prostitutas. Há milhares, talvez dezenas de milhares de regras parecidas. E se eu tivesse que conhecer o prefeito amanhã? E se eu tivesse que ir a um restaurante caro? E se eu precisasse entrevistar um sem-teto para uma reportagem? Emily Post não pôde cobrir tudo, então eu tenho que fazer acontecer. Sou uma pessoa declaradamente ansiosa. Mas também educada.

Conclusão

A educação faz você ganhar tempo. Ela deixa portas abertas. Conheci muitas pessoas que, se tivesse confiado nas minhas primeiras impressões, jamais iria querer encontra-las novamente. No entanto, hoje muitas delas são grandes amigas. E eu raramente toco em seus cabelos.

Uma delas é minha esposa. Em nosso primeiro encontro, fomos a um agradável bar com mesas azuis e, no curso normal da conversa, ela me contou demoradamente sobre a retirada de um teratoma dermoide dos seus ovários. É um cisto com dentes (não é uma metáfora). Eu tinha saído com a esperança de flertar, mas ao invés disso, aprendi sobre a remoção cirúrgica de uma massa mutante de cabelos e dentes, do tamanho de um punho, de dentro dos seus órgãos sexuais. Isso acabou com a química. Eu a acompanhei a pé até a casa dela, falei que tinha me divertido e fui para minha casa pesquisar sobre cistos na internet; sempre um bom jeito de terminar a noite. Conversamos um pouco mais depois disso. Eu fui simpático e breve. Um ano depois, eu a encontrei no trem e saímos para beber algo. Muito mais tarde, soube que ela estava passando por um dia muito ruim, em um ano muito ruim.

Às vezes, recebo um telefonema ou e-mail de uma pessoa cujo último contato foi há cinco anos e penso, é mesmo, eu odiava essa pessoa. Mas elas nunca ficaram sabendo, é claro. Vamos ver se eu ainda odeio. Com muita frequência, descubro que não. Ou que eu as odiava por um motivo bobo. Ou que estavam tendo um dia ruim. Ou, o que é muito mais provável, que eu estava tendo um dia ruim.

As pessoas lutam em silêncio contra uma série de aflições terríveis. Sofrem de depressão, ambição, abuso de drogas e arrogância. Sofrem por tragédias familiares, por educação de alto nível e por auto-depreciação. Sofrem de casamentos mal-sucedidos, de dor física e por causa de publicações. O bom da educação é que se pode tratar essas pessoas exatamente do mesmo jeito. E depois, esperar para ver o que acontece. Você não tem que ter uma opinião. Não precisa fazer um julgamento. Sei que não soa como uma libertação, porque vivemos e trabalhamos em uma economia baseada na opinião, mas é. Não ter uma opinião significa não ter obrigações. E não ter obrigações é um dos tesouros mais doces da vida.

Há um outro aspecto da minha educação que estou relutante em mencionar. Mas mencionarei. Eu sou muitas vezes tomado por uma sensação de imenso amor e empatia. Olho para a outra pessoa e fico sobrecarregado de alegria. Mesmo com toda minha ironia, quero realmente saber sobre o processo de pendurar joias de celebridades. Qual a sensação de ter a joia em suas mãos? Qual a sensação de ter celebridades em suas mãos? Qual delas é a mais suave ao toque?

Não vivemos em um mundo onde podemos simplesmente expressar o nosso amor por outras pessoas, onde podemos elogiá-las. Talvez devesse ser assim. Mas não é. Descobri que as pessoas temem entusiasmo e calor humano, e esperam para ouvir o preço. O que é justo. Todos nós já fomos atraídos para o amor de alguém, apenas para descobrir que não podíamos pagar. Um pouco de distanciamento faz com que qualquer um ganhe tempo.

Na semana passada, quando minha esposa tinha voltado do playground, ela me disse que meu filho de dois anos de idade e menos de um metro de altura, Abraham, caminhou até uma mulher de hijab e perguntou: “Qual o seu nome?”. A mulher lhe disse o seu nome. Então ele estendeu sua mãozinha e disse: “Prazer em conhecê-la!”. Todo mundo riu e ele sorriu. Ele compartilhou com ela um firme aperto de mão, como eu o ensinei.

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