O glamour dos desfiles caninos da elite de Nova Iorque

A fotógrafa Sophie Gamand investigou o que é ser um cachorro — seja sob os holofotes da Grande Maçã, seja em uma praia de Porto Rico

João Brizzi
Revista Poleiro

--

Por Brendan Seibel
Tradução por João Brizzi

Após longas horas de ensaio, finalmente chega a noite. Flashes, assobios, corações acelerados e muita pompa rodeiam a cerimônia enquanto algum schnauzer mostra a mais nova carta na manga de seu estilista.

O mundo dos cães tem fascinado Sophie Gamand desde que ela decidiu se tornar uma fotógrafa. Suas incursões sobre como os cachorros se encaixam em nossas vidas revelaram um cenário esquizofrênico onde diferentes pessoas sustentam visões absolutamente distintas sobre o animal: enquanto bichinhos de estimação se apresentam em palcos de Nova Iorque e, quando doentes, são aninhados por braços carinhosos dentro de clínicas veterinárias, vira-latas passam fome nas praias de Porto Rico e são enfileirados em jaulas de canil rumo ao sacrifício.

“A questão central da minha fotografia é explorar o vínculo e os relacionamentos que criamos [com os cães] e como eles dizem tanto sobre nós”, diz Gamand. “A forma como tratamos os cachorros significa muito.”

No topo da pirâmide social canina estão os farejadores e suas donas, um grupo predominantemente composto por madames novaiorquinas que a fotógrafa conheceu quando procurava retratar pessoas e seus animais de estimação. O grupo aluga salões e periodicamente organiza concursos onde seus cachorros disputam competições de moda e shows de talentos.

Quando Gamand foi fotografar um destes eventos pela primeira vez, achou que tudo aquilo era pura maluquice. No entanto, os quatro anos que se passaram desde que ela começou a frequentar as cerimônias mudaram sua perspectiva: os cachorros são a razão de viver de suas donas, as crianças que elas nunca tiveram ou os parceiros que nunca encontraram. A situação a fez lembrar do sentimento de isolamento em meio ao caos da cidade grande que a mudança para Nova Iorque gerou. Para as presentes destes concursos, seus animais são as estrelas do show, então Gamand tentou enfatizar como essas pessoas viam seus cachorros e, por extensão, elas mesmas.

Focar o brilho e o glamour dos desfiles requer tato. Fora de quadro, há cocô pelo chão, camas para cachorros pelos cantos e restos de ração por todos os lados. A rivalidade entre os donos cresce ao som de latidos e rosnados. Embora os cães sejam treinados desde seu nascimento a vestir fantasias e seguir ordens, eles claramente aparentam estar tristes. Ainda assim, chegam até a usar tiaras para agradar a seus donos e, no final, são recompensados com armários cheios de roupas novas, mimos e amor.

“Os cachorros são tudo para eles”, diz Gamand. “Para alguém que tenta entender as pessoas por sua relação com seus cães, esse mundo é fascinante. Eu aprendi muito sobre a cidade e sobre quem vive aqui observando essas mulheres e como elas são com seus cachorros.”

Os concursos caninos também arrecadam dinheiro para instituições de caridade voltadas aos animais. Gamand contribui como pode: ela dedica seu tempo e sua habilidade com a câmera para fotografar voluntariamente filhotes abandonados para a adoção.

Ela descobriu que uma raça em particular, o pitbull, tem um péssimo problema com sua imagem. Frente à estatística de que um milhão deles são abandonados anualmente, a fotógrafa respondeu criando o ensaio Flower Power, Pit Bulls of the Revolution. Para as fotos, ela adornou seus modelos com coroas de flores, criando um calendário de retratos com o intuito de angariar fundos para os abrigos onde ela fotografou.

“Estou cogitando a ideia de viajar pelos Estados Unidos fotografando pitbulls em diferentes abrigos para chamar a atenção do público”, diz Gamand. “O preconceito das pessoas é insano. É surreal pensar que sacrificamos quase um milhão de pitbulls todos os anos. Um milhão. Eu não sei de onde esses cachorros vêm, mas precisamos encaminhar essa situação e resolver a crise. Eu acredito que esse projeto seja importante. Eu não sou exatamente uma defensora dos pitbulls, nunca fui uma amante deles, mas reconheço que há uma crise e que ela precisa ser solucionada. Nós não podemos simplesmente varrer esses animais para baixo do tapete e sacrificá-los como se eles não existissem.”

Há quatro anos, Gamand deixou a Europa para tentar uma nova vida nas terras norte-americanas. Ela já tinha vivido uma inteira. Nascida em Lyon, na França, a fotógrafa é formada em direito com ênfase em obras de arte roubadas durante períodos de conflito. Ela também passou algum tempo na Suíça, trabalhou em uma organização filiada à ONU e chegou a ter o sonho de se tornar uma cantora de ópera.

Gamand até mesmo fundou uma revista de fotografia inspirada pelo Flickr e por todo o talento por lá ignorado que ela queria evidenciar. Depois de publicar 17 edições, ela já havia ficado exausta.

Por isso, quando veio para os Estados Unidos, decidiu retomar seu hobby de infância e se matriculou em um curso de fotografia documental. Sua zona de conforto foi imediatamente abalada quando descobriu que uma de suas primeiras tarefas seria a de contar a história de alguém em cinco imagens.

“Puta que pariu, eu não vou conseguir fazer isso de jeito nenhum”, disse Gamand. “Meu inglês era bom, mas não tão bom, e eu não conhecia ninguém. Eu não conhecia nem mesmo o meu bairro. Eu tinha me mudado há uma ou duas semanas e não tinha nem sequer decorado o nome da minha rua. Foi muito assustador. Eu saí andando pela minha vizinhança com a câmera nas minhas mãos — que estavam suando, era horrível — e acabei dando de cara com uma clínica veterinária. Eu abri a porta e perguntei se poderia conversar com o gerente. Eu pensei que talvez pudesse contar a história de um veterinário, não sei por quê. No fim das contas, tinha um cachorro na sala de espera e eu tirei uma foto dele.”

Esta foto começou uma nova jornada. Ela documentou a clínica e fez amizade com a equipe, conseguindo mais acesso e encontrando mais bichinhos. Ela também conheceu Chrissy Beckles, fundadora do Sato Project, que resgata cachorros de rua em Porto Rico. Um convite para viajar para o Caribe foi oferecido e aceito.

Sair das salas esterelizadas de uma clínica veterinária para o ritmo frenético de uma operação de resgate foi um choque. Pouco depois de pousarem no país, Gammand e Beckles encontraram um cão subnutrido bem perto de sua morte. Era a primeira vez que ela via cachorros negligenciados e sem amor.

“Eu não tinha experiência e muito menos ideia de como usar a luz”, diz ela. “Eu andava com um flash porque a luz do sol de Porto Rico é muito forte, então eu queria usar um filtro polarizador e um flash. Então lá estava eu, na tentativa de tirar minha foto, soltando um flash na cara daquele cachorro tão pequeno e magrinho e me sentindo horrível. Foi muito estranho.”

O vira-lata não pôde ser salvo, mas o trauma de assisti-lo morrer nos braços de Beckles se mostrou crucial tanto para a guinada de Gamand como uma fotógrafa de verdade como para sua obsessão pelas relações entre cachorros e pessoas. Ela passou a se dedicar ao trabalho no Sato Project.

A tarefa logo se tornou exaustiva, consumindo tempo, energia e foco artístico. Por um ano e meio, ela viajou para Porto Rico para fotografar operações de resgate, ajudou a organizar voluntariados e cuidou do site do projeto. No ano passado, ela percebeu que estava insistindo em um caminho duvidoso para sua vida.

“Resgatar cachorros é muito recompensador, difícil, emocionante e corta seu coração — você sente tudo isso”, diz Gamand. “É uma aventura fantástica, mas não é o que quero pra minha vida. Por isso, parei de viajar para lá e abandonei o voluntariado. Era como um emprego de tempo integral àquela altura e já exigia tudo de mim. Então, em setembro, tomei a difícil decisão de dizer: ‘Preciso de uma pausa nisso pra pensar o que quero fazer com a minha fotografia e para onde quero levá-la’.”

E lá foi ela para um salão de beleza, onde ao longo de apenas um dia fotografou seu aclamado ensaio Wet Dog. De repente, Gamand estava dando entrevistas e atendendo ligações de pessoas ligadas à indústria da arte. Ela agora é representada por uma galeria parisiense, terá seu primeiro livro publicado no ano que vem e tem sido sondada por produtores interessados em um reality show para a televisão. Toda a atenção recebida tem se tornado um estressante e excitante furacão que ela tenta conter sem perder o controle sobre os rumos que toma.

Antes de seus retratos dos vira-latas sofridos ganharem fama, Gamand teve problemas para convencer os abrigos a deixarem que ela fosse voluntária. Agora, ela fotografa por toda a cidade, tendo inclusive um recorde pessoal de 50 cachorros fotografados em menos de quatro horas. Se tiver a oportunidade, seja via patrocínio ou via crowdfunding, ela gostaria de viajar por todo o país expandindo o Flower Power. Ou ir até mais longe.

“Um dos meus sonhos é viajar e documentar populações de cachorros abandonados em diferentes partes do mundo”, ela diz. “Me interesso muito por saber se existem similaridades físicas ou como os residentes locais interagem com esses cachorros. Será que existem relacionamentos parecidos? Eu aprendi muito sobre os cães de rua e sobre toda a dinâmica em Porto Rico. O país é um exemplo de lugar onde há animais de estimação, animais resgatados, animais de rua e cães ferozes — alguns deles são completamente selvagens em Porto Rico — , então você tem todos esses grupos e eu acho muito atraente a ideia de um cachorro poder ser tanta coisa.”

Uma coisa que um cachorro nunca será é o animal de estimação da fotógrafa. O apartamento que ela divide com seu marido não permite que eles tenham bichos, e depois de crescer correndo com eles livres pelo jardim, ela não acha justo manter um preso o dia todo. A distância também permite que ela continue olhando com frescor para seus assuntos quando pega as câmeras novamente.

“Eu não me sinto como um servo que limpa o cocô de seu cachorro todo dia”, diz Gamand. “Se eu quisesse fazê-lo, provavelmente teria uma criança.”

Fotografias por Sophie Gamand

Outros Voos é a seção de traduções da Poleiro. Selecionamos o melhor do conteúdo internacional e traduzimos para você. A história de hoje veio da Vantage.

Leia também:

Gostou? Faça login no Medium e recomende o texto!
Curta a Poleiro no
Facebook // Nos siga no Twitter

--

--

João Brizzi
Revista Poleiro

Designer e jornalista no The Intercept Brasil. Antes, trabalhei na revista piauí e fundei a Revista Poleiro.