Em defesa da expressão artística

Contra a mídia e a vitimização da classe política

Aline Brasil
Revista Krinos
7 min readMay 9, 2016

--

Cena do trabalho do grupo Desvio Coletivo em ato no vão do MASP na Paulista

A vida toda não falei. Sempre escutei calada a qualquer fala. Concordando ou discordando eu escutava. Posicionar-me? Nunca soube direito o que é isso. Mas sempre houve tentativas nesta direção. Meu corpo diz muito por si só. E por isso, talvez só por isso, é que eu danço. Talvez, só por isso calhei de ser artista entre tantas outras profissões mais aceitáveis neste mundo. O artista fala de uma forma diferente. Enquanto o mundo nos ensina, em diversas instâncias, a falarmos em torno de verdades tidas como absolutas e inquestionáveis o artista constrói uma fala questionadora sobre tudo o que é estabelecido como verdade, constrói uma fala que escancara tudo aquilo que evitamos ver em nossa realidade. O artista é facilmente desdenhado neste mundo que estabelece normas tão rígidas sobre nosso corpo, nossas ações, nosso pensamento, nossa fala, dentro de um pensamento que moraliza tudo entre “certo” e “errado”, a partir de visões mesquinhas. Quando quebra as regras é odiado e talvez somente a posteridade venha a reconhece-lo. Quando reforça e reproduz os padrões majoritários de uma minoria dominante é exaltado e consumido como celebridade instantânea.

Minha fala, por mais tímida que seja, dentro de um histórico opressivo do que seja ser mulher e artista neste mundo machista e grosseiramente emburrecido, é cada vez mais uma fala de resistência, de esclarecimento, de questionamento e de superação. Eu não tenho medo de ver os reais “monstros” que existem neste mundo. Eu não preciso inventar “espantalhos” para tirar o foco da sujeira histórica que todos nós, brasileiros, somos cotidianamente obrigados a engolir. É fato e não podemos mais fugir disso: engolimos merda todos os dias anos a fio! A cada “Sim!” pronunciado em nome da “tradicional família brasileira” e de “Deus”, engolimos e aceitamos a perpetuação do “Não!” à nossa diversidade, à tudo aquilo que somos e ao que, de fato, nos representa. A cada “Sim!” neste sentido engolimos merda! Pois é, justamente, a crença infundada em um ideal de família e em um ideal de verdade, em um ideal de ser e de existir no mundo, que perpetua toda intolerância à diferença que somos, todo preconceito ao outro que não se encaixa nessas normas, toda violência aos negros, aos pobres, às mulheres, às crianças, aos homossexuais, aos transexuais, às lésbicas, aos travestis, aos artistas, enfim, aos seres humanos. Está mais do que na hora de jogar toda essa merda no ventilador, mesmo que literalmente. Mas sabemos que apesar da hora chegada o reacionarismo não deixará barato, com a pena de vitimar aqueles responsáveis por todo o atraso em que ainda estamos sujeitos em nosso rumo à liberdade e à construção de novas formas de relação.

Mesa da presidência da Câmara dos Deputados no dia da votação do Impeachment

Recentemente, assisti chocada aos bombardeios de ódio e de ameaças de violência lançados sobre uma artista que, em coletivo, realizou uma ação na Avenida Paulista em São Paulo. A ação consistia em uma intervenção artística no espaço público. Sobre fotos impressas do rosto de alguns atuais políticos (sejam eles corruptos, que apresentam ficha suja, ou que votaram “em nome da família e de Deus” contra a corrupção e a favor do impeachment da atual presidenta), os artistas cuspiam e vomitavam. Uma das artistas, também, urinou e defecou sobre a foto de Jair Messias Bolsonaro que, em sua fala, exaltou um torturador da Ditadura Militar em canal aberto a todo Brasil. Esse político, como bem sabido, tem se destacado por seu posicionamento reacionário e conservador que ataca, sem o menor constrangimento, os direitos humanos, os direitos das mulheres, da comunidade LGBT, prega o extermínio de criminosos e é favorável à tortura.

As reações a esta ação artística, dentro de todo um contexto político, histórico e social que a fundamenta, me causam perplexidade e nojo. Reativamente as pessoas colocam para fora os “monstros” que carregam dentro de si. “Monstros” com nomes precisos: preconceito, moralização, burrice (incapacidade de uma leitura de contexto mais ampla), ódio ao diferente e machismo, pra não falar mais. A mídia, apropriadamente, realiza vários recortes em torno da ação artística realizada, tirando-a do contexto político atual na qual ela está a se fundamentar e colocando todo o foco na ação de apenas uma das artistas, simplesmente porque ela defecou. A mídia reduz toda a ação e seu complexo significado e sentido à “defecação de uma mulher na rua”. Esconde toda a simbologia, a representação e a fala contida neste ato específico de defecar e divulga esta ação como um ato obsceno. Esconde a artista que dizia algo com seu corpo, dentro de uma proposta criada e pensada coletivamente, e a rotula como “uma mulher que caga na rua”. As pessoas reagem a essas informações reducionistas e deturpadas com ódio e sem nenhuma reflexão do quanto compram e reproduzem um discurso dado que não passa de uma verdadeira falácia do espantalho (distorção proposital sobre os reais fundamentos de uma ação que, neste caso, normalmente, não é feita em público, mas abarca todo um sentido para tal). Como se não bastasse rotular uma artista como “a mulher que caga na rua”, as pessoas, também, veem na figura do Bolsonaro uma vítima desta “mulher extremamente agressiva e obscena”.

Quais as contradições dentro deste fato atual que me causam indignação? Coronel Ustra, exaltado por Bolsonaro em transmissão ao vivo para todo o Brasil, foi um dos maiores torturadores na Ditadura Militar. Dentre uma das ações deste sujeito, que consta em relatos históricos e de vítimas, está a ação de colocar ratos dentro da vagina de mulheres. Apologia à tortura é um crime que se junta a diversas falas machistas, homofóbicas, misóginas e violentas que Bolsonaro coleciona em toda mídia. No entanto nada é feito a respeito disso e as devidas punições não são aplicadas a este parlamentar que representa a si mesmo e a um grupo de pessoas que cultivam o ódio. Agora, uma ação simbólica e artística, que questiona justamente tudo isso, é vista de forma caricata e demonizada. Por que uma ação que questiona a toda essa podridão, criativamente e genialmente, devolvendo fezes, urina, cuspe e vômito a quem “caga” diariamente sobre nossas próprias cabeças, de forma imune e autorizada, é vista de uma maneira tão reducionista? Por que, afinal, causa tanto escândalo e ódio uma artista mulher que, no exercício de seu ofício e na expressão livre de seu corpo enquanto ser humano no mundo, realiza o ato de defecar no rosto impresso de um homem que simboliza o que é de mais atrasado, violento, vil e preconceituoso, mas, por outro lado, não causa escândalo o ato não-artístico e não-simbólico, real e concreto, desumano e extremamente violento, de colocar ratos dentro da vagina de mulheres? Há alguma coerência nisto? Ou vivemos uma burrice latente, na qual as pessoas são incapazes de enxergar um palmo a frente de seu nariz e acabam dando tiro em seus próprios pés, ou, então, os fascistas são muito mais do que imaginamos podendo ser o amigo do nosso lado. Essas duas coisas podem, também, se somar.

Como artista preciso tentar esclarecer algumas coisas a respeito da arte. A arte nos permite ampliar, questionar e superar a realidade vigente, seus valores, princípios e regras. Uma das funções da arte é esta: incomodar ao escancarar situações podres e nojentas do mundo em que vivemos e de nossas próprias moralizações. A arte, por este motivo, vai além daquilo que é estabelecido como “certo” ou “errado”, pois é capaz de questionar justamente essas delimitações impostas de fora pra dentro sobre nós, em um mundo sempre liderado por uma classe minoritária que estabelece padrões majoritários de pensamento. O artista pode e deve se expressar não apenas nos teatros e locais fechados destinados à arte. Deve também, ocupar e atuar nos espaços públicos, expressando a sua visão de mundo, os seus questionamentos e as suas falas através de seu corpo, simplesmente porque ele é um ser humano neste mundo antes de mais nada.

As pessoas precisam aprender a ouvir o que estes corpos têm a dizer em ato artístico. As pessoas precisam aprender a ultrapassar suas moralizações mesquinhas e a fazer uma leitura mais ampla quando um corpo está a fazer arte. Porque o corpo que faz arte simboliza algo da realidade e o que ele faz está embebido de sentidos outros que vão além do significado restrito e literal da ação. Uma pessoa defecando na rua é completamente diferente de uma artista que, dentro de uma ação artística junto com outros artistas, defeca na foto de um político cuja existência e fala simbolizam a defecação diária de regras arcaicas e violentas em nossas cabeças cidadãs. Há questões muito sérias e graves por trás do ato de defecar e que são desconsideradas simplesmente porque “cagar” é algo feio e proibido em nossa sociedade moralista. Não é possível que Bolsonaro seja a vítima nesta história quando vítimas somos nós, anos a fio, aceitando que políticos como ele “caguem” (no pior sentido do termo) sobre nós. A cagação é simbólica e não é possível que não enxerguemos isso em torno da ação feita pela artista.
Quando assisti ao Bolsonaro exaltando um torturador e sendo aplaudido em plenária transmitida ao vivo, a minha primeira vontade foi vomitar. Esse ato artístico representa bem o que esse tipo de situação, que assistimos calados por anos e anos, merece como resposta.

Ontem mesmo, andando pela rua passei por dois homens que conversavam entre si na calçada. Com a mesma naturalidade da conversa um deles tirou o “pau” pra fora e mijou diante de mim e de outras pessoas que estavam andando na mesma calçada. Ninguém fez nada! Agora, uma mulher artista que urina e defeca em uma ação artística como resposta à um contexto político extremamente plausível para tal, merece ser atacada, ameaçada e perseguida. Faz sentido? Quem ataca esta artista de maneira tão rasa, a meu ver, é, simplesmente, machista, fascista e burro.

Aline Brasil é artista mulher inquieta.

--

--

Aline Brasil
Revista Krinos

Sou mulher e cresci aprendendo a falar pouco. Feminista e Anti-fascista. Não me encaixo em gêneros. Artista em crise e filósofa em formação.