A mulher, a mulher de Temer e a Milena Santos

Renata Vasconcelos
Revista Krinos
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4 min readMay 1, 2016

Em um marcante episódio passado, vimos manifestações públicas de condenação à utilização no ENEM de uma frase de Simone Beauvoir sobre a construção cultural dos papéis de gênero. O “Não se nasce mulher, torna-se mulher” em uma questão do exame destinado a avaliar o ensino médio em todo território nacional, causou nas redes e fomentou intensos debates. Mais recentemente assistimos aos juízos morais acerca da mulher de Temer, o possível futuro presidente da república, e da mulher do recém-nomeado ministro do turismo. Ambas estiveram em alta nas redes sociais: a primeira em função do que foi dito sobre ela por uma revista de grande circulação e a segunda por ter, ela mesma, compartilhado fotos em seu perfil de rede social retratando um momento que considerou marcante em sua vida. De cara e sem pestanejar, já é possível considerar que Marcela, a mulher de Temer, está, de certa forma, isenta de qualquer responsabilidade pelos julgamentos vindos dos internautas e quem sabe também pela forma como foi apresentada pela matéria na revista. Ela não protagoniza sua história. Não foi algo que ela tivesse feito ou dito que levou aos tantos julgamentos que lemos nas redes. Foi algo que, segundo a revista, ela aparenta ser ou deveria ser. É viável especular que ela seja uma pessoa discreta, ou mesmo recatada como definiu a revista, pois não se viu nenhuma declaração dela própria a respeito da repercussão da matéria que versava sobre sua personalidade adequada ao posto que o marido poderá vir a desempenhar. Já Milena Santos, recebe críticas por ter tido a ousadia de fotografar-se junto com seu marido, em poses que expressam o que ela é, com autenticidade, no gabinete em que ele irá atuar politicamente. Rapidamente os canais de mídia mais diversos investigaram e descobriram que ela tem uma história própria e desvinculada da do ministro: Foi miss bumbum, foi suplente na câmara de vereadores de Salvador e protagoniza sua trajetória. A legenda das fotos publicadas por Milena evidenciou seu orgulho por aquilo que entendeu ser uma conquista na carreira política do marido; e ela fez questão de se posicionar ao lado dele e de expressar publicamente o que sentia: “juntos somos fortes” era parte do texto que acompanhava as tais fotos.

Voltando ao que disse Simone há mais de meio século, e adiantando que concordo visceralmente com ela, vejo que o fato de nos tornarmos mulheres pelos moldes culturais que nos impõem um papel previamente determinado não basta. É preciso também que nos tornemos a mulher de um homem. A mulher à sombra: que não age e que apenas aparenta ser. A mulher sem passado antes do enlace com o homem que a escolheu para ser sua e que, a partir daí, pertencerá à história dele, pertencerá a ele. A ousadia de Milena Santos não foi o decote generoso, o beijo publicado, a pose interpretada por muitos como “sensual demais” para ser exposta. De acordo com os que desejam conservar o status social como o conhecemos, essa mulher transgrediu muito mais por ter a coragem de expor a autoridade política do homem, vibrando por estar a seu lado em um momento de conquista. Para os que a condenam, ela deveria apenas ser recatadamente a mulher do ministro. Quando tornou pública as tais fotos e comemorou por seu marido, Milena mostrou ter identidade e autonomia para expressá-las e, em uma sociedade conservadora, isso é inaceitável: não é o que se espera das mulheres dos homens. A mulher de Temer não toma a atitude, ela não comemorar por ele, seu dever se resume em parecer aquilo que não afete a imagem dele.

Se a frase de Beauvoir fosse usada para definir a construção do papel do homem em nossa sociedade seria “ninguém nasce homem, torna-se homem” e evidenciaria que nenhum homem nasce sabendo da sua obrigação de camuflar características humanas comuns como a sensibilidade, a delicadeza, a emotividade e a euforia — entendida por muitos como falta de recato ou até descontrole emocional — porque estas são manifestações da feminilidade e a mulher por sua vez deve utilizar o termômetro da sociedade machista para expressá-las caso queira evitar as penalizações que advém de sua ousadia.

Homem e mulher são construções para justificar todo um sistema de opressão que se sustenta subjugando a ambos desde sempre. Enquanto ela é submetida à vontade do machismo enraizado por gerações, ele está condenado a reproduzi-lo e embora suas vontades prevaleçam sobre as da mulher e sejam a medida da conduta que se exige dela, o homem não é livre para ser qualquer coisa que o distancie da obrigação de ser macho, inteligente, viril e bem sucedido; se ele não se enquadra nesses aspectos e deixa transparecer de alguma forma, é um fracassado. Lamentavelmente, neste ponto quase alcançamos a igualdade.

Renata Vasconcelos é licenciada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, participa do grupo de pesquisa História e Documento, vinculado ao Centro de Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro e atuou como Coordenadora de Projetos Especiais da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Atualmente é professora da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro, onde atua no Ensino Fundamental.

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Renata Vasconcelos
Revista Krinos

Professora. Uma busca incessante pela humanidade que em nós se perdeu ou que nunca se concretizou.