Em “T2 Trainspotting”, não há droga mais viciante que o passado

O êxtase da nostalgia como princípio estético.

Matheus Borges
8 min readApr 2, 2017
Spud (Ewen Bremmer) vasculha suas memórias em “T2”.

Alerta: O texto a seguir discute elementos fundamentais da trama de “T2".

Numa das melhores cenas de “T2 Trainspotting”, Renton e Sick Boy colocam em prática um golpe num pub unionista, onde está reunida uma pequena multidão de galeses bêbados. Em coro, eles entoam canções que glorificam a Batalha do Boyne. Em meio ao caos, a dupla vasculha casacos e bolsas, rouba cartões de crédito e se dirige à saída. Após um breve momento de tensão, onde o segurança do estabelecimento interpela a fuga e convida os recém-chegados a entoarem eles próprios uma canção unionista, Sick Boy assume o piano e Renton toma o microfone. Nenhum dos dois entende nada de música, mas Sick Boy conhece dois acordes que tocava na infância. O esqueleto sonoro que passa bem longe de uma melodia serve como base para que Renton improvise uma série de rimas ridículas. Apesar da estrutura frouxa, a letra de Renton dá conta de reproduzir os temas favoritos dos protestantes unionistas. Renton canta o triunfo do rei Guilherme sobre as forças jacobitas, a morte dos católicos, o poder da Grã-Bretanha contra o usurpador. A dupla é ovacionada. Saem do pub e utilizam os cartões de crédito para sacar uma bolada em terminais de caixas eletrônicos. Não precisam quebrar a cabeça para descobrir a senha das contas. 1690. O mesmo ano em que ocorreu a Batalha do Boyne.

Essa cena poderia ilustrar o contexto da aparição de “T2 Trainspotting” nas salas de cinema em 2017. O espectador saudosista se sente satisfeito com os elementos do filme original que ressurgem na tela. Da mesma maneira que os galeses unionistas colocaram o ano de 1690 como senhas de suas contas, é fácil de imaginar que o ano de 1996 é a senha para se conquistar o entusiasmo desse público. Danny Boyle, no entanto, faz mais do que apenas nos entreter enquanto leva nosso dinheiro. Aqui, vinte anos depois dos eventos de “Trainspotting”, o grupo de protagonistas também está preso ao passado. O filme parte de uma premissa simples e batida, porém eficiente. Duas décadas depois de ter roubado Sick Boy e Begbie, Renton retorna a Edimburgo para corrigir esse erro. Chegando à cidade, descobre que o local das aventuras de sua juventude está completamente mudado. É essa obsessão agridoce pelas experiências de outrora que dita o tom de “T2”. Assim como os personagens tentam reviver momentos, bons ou ruins, da adolescência caótica, o filme de 2017 traz essa nostalgia em sua forma. “T2” é um filme com memória de si mesmo e de suas imagens. Danny Boyle repete enquadramentos do filme original, mas confia na memória do espectador ao colocá-los em novos contextos.

Renton (Ewan McGregor) em fuga. 1996.
Renton em fuga. 2017.

Boa parte da trama consiste em tentativas de desenvolver novas experiências tendo como base o passado. Reviver o antigo pub como uma sauna/bordel é a meta de Sick Boy. Esse plano veste uma máscara politicamente correta, apelando à memória emocional coletiva de Edimburgo como um pólo econômico nos tempos áureos pós-revolução industrial. Begbie foge da prisão e retorna ao lar como se nada tivesse acontecido. A intimidade com a esposa é frustrada pela descoberta da disfunção erétil. Mais tarde, descobre que Renton está na cidade e decide buscar vingança. Ao acertar uma facada no braço do outro, tem uma ereção inesperada. Enquanto isso, Spud tenta se livrar da heroína, ao mesmo tempo em que dá início a uma vida literária que traz a droga como tema central de sua ficção. Renton, meio à deriva, entrega-se um pouco a cada uma dessas aventuras, como se buscasse na memória dos outros três algum caminho para seu futuro. Envolve-se com Veronika, namorada de Sick Boy, uma imigrante búlgara que funciona mais como elemento narrativo do que como uma personagem por si só.

Para um filme que traz essas questões como tema, “T2” é ao mesmo tempo um êxito e um fracasso. É um êxito disfarçado de fracasso e vice versa. É um êxito por conseguir expressar sentimentos tão complexos de maneira instintiva, em cenas curtas orquestradas com maestria técnica. E é um fracasso se o observarmos como um todo, porque percebemos que boa parte das tramas do filme não dá em coisa alguma. Ao mesmo tempo, esse aparente fracasso está associado às ideias que conduzem o filme. “T2” assume o risco de ser um filme frustrante e a impossibilidade de superar o original, pois é essa condição que valida sua tese.

Renton com o pai (James Cosmo) e a mãe (Eileen Nicholas). 1996.
Renton com o pai. 2017.

Outro elemento de “Trainspotting” que dá as caras em “T2” é a boa curadoria de música pop. Em especial, duas músicas do primeiro filme são colocadas em contexto diferente. Primeiro Renton nos oferece uma execução abortada de “Lust for Life” em seu antigo toca-discos. Isso dura menos de um segundo, mas o suficiente para identificarmos o inconfundível beat de abertura da faixa de Iggy Pop. Mais tarde, “Born Slippy” serve de tema para mais de uma cena. Se em 1996 a pedrada do Underworld embalou a transcendência da falsa liberdade experimentada por Renton no epílogo de “Trainspotting”, em 2017 serve como elegia para essa mesma ilusão. Ainda que onipresente, “Born Slippy” nunca ultrapassa seus primeiros acordes, nunca tem a chance de se desenvolver musicalmente e alcançar o crescendo que transforma a ambient music em techno.

Mesmo que permaneça em cena, são apenas esses acordes introdutórios que ouvimos. Os mesmos acordes que nossos ouvidos entendem como a promessa de uma ascensão gloriosa à música agitada e aos vocais frenéticos de Karl Hyde. Nesse sentido, Danny Boyle faz de “Born Slippy” um elemento fundamental da narração de “T2”, de modo mais inteligente do que a composição originalmente fora utilizada em “Trainspotting”. Em todos os cantos há a promessa, mas nunca a concretização. Há sempre o desejo, mas nunca a catarse. O fantasma do passado é como três acordes em repetição que nunca progridem ou alcançam um tema. Entretanto, a repetição desses acordes é um tema em si, como se a impossibilidade de progredir fosse o leitmotiv da vida.

Tommy (Kevin McKidd) tenta convencer os amigos a dar um passeio no campo. 1996.
Spud, Renton e Sick Boy (Jonny Lee Miller) decidem dar um passeio no campo. 2017.

Quando Renton tenta ajudar Spud a largar de vez a heroína, leva o amigo para uma intensa sessão de corrida no topo de um morro. Spud se sente mal, mas Renton diz que um viciado não consegue mudar. O vício não habita o corpo, mas a mente. Para largar um vício, é necessário adquirir outro. No caso de Renton, a droga substituta é a endorfina que libera ao correr. O filme e seu realizador assumem desde o princípio que vivemos uma cultura viciada nas próprias memórias, obcecada pelo passado, presa em ciclos constantes de retorno a cada vinte anos. Para isso, a câmera de Danny Boyle demonstra interesse incomum nos pontos em que o agora e o outrora convivem na paisagem urbana. Ferros-velhos e montes de entulho que se aglomeram ao redor de grandes edifícios e vizinhanças gentrificadas. A existência de uma coisa não anula a outra, pois ainda que o atual domine o mundo físico, fragmentos do passado continuam a existir em todos os cantos. Veronika alerta Renton e Sick Boy de que não é saudável continuar vivendo no passado. Os dois amigos reconhecem o perigo de romantizar o outrora ao lembrarem de que Tommy, amigo de Renton, e Dawn, filha de Sick Boy, morreram vinte anos atrás. Por culpa deles, nos mesmos eventos daquele filme de 1996 que termina em uma nota de esperança.

Mesmo assim, quando “T2” termina, entram os créditos finais sobrepostos a imagens de prédios implodidos, filmes antigos tocados de trás para frente, prédios sendo reconstruídos em pleno ar. Os entulhos são novamente edificações. Não os entulhos, apenas suas imagens. Não reconstruídos de fato, mas através de um efeito óptico.

O que precede essa sequência é o epílogo em que Renton entra em seu quarto e toma coragem para ligar o toca-discos. “Lust for Life” é bombardeada em toda sua glória através das caixas de som. Renton dança sozinho e isso provoca nele uma catarse solitária que toma forma como o pequeno quarto afundando na tela, transformando-se num túnel infinito e estroboscópico, uma viagem interminável capaz de levá-lo a todos os cantos sem sair do lugar. Enquanto isso, “Lust for Life” continua tocando. Não sua versão original, é claro, mas um remix do The Prodigy.

Êxtase de Renton ao usar heroína na sequência inicial de “Trainspotting”, embalada por “Lust for Life”. 1996.
Êxtase de Renton ao ouvir “Lust for Life” no epílogo de “T2”.

À medida que os anos avançam, cresce em nós a vontade de revisitar a adolescência e a infância. Não um momento específico, mas um tipo idealizado de sensação que algum dia existiu dentro de nós. Para satisfazer essa necessidade, folheamos as páginas de velhos álbuns de fotografia, retornamos às músicas que ouvíamos em determinada época, relemos as cartas que guardamos em uma caixa de papelão na prateleira mais alta do armário. Utilizamos o quarto em que habitávamos na casa de nossos pais como ponto de acesso mediúnico para nos comunicarmos com uma antiga versão de nós mesmos. É o desejo de retornar ao que um dia já se foi, um estado anterior ao que hoje somos. Tempos em que o futuro era bem maior que o passado e as possibilidades eram infinitas. Claro que há uma parcela de autoilusão nesse processo, pois é fácil ignorar as agruras em benefício da segurança trazida pela idealização.

Ondas de nostalgia em massa podem ser observadas de tempos em tempos. Bandas de vinte anos atrás lançam um álbum novo ou filmes ganham uma sequência décadas depois de terem sido lançados. É impossível não sentir que a cultura vive em estado de nostalgia eterna, condenada a se afundar nas memórias que tem de si mesma. Assim como entrar em nosso quarto na casa dos pais não nos reconcilia com o passado, a materialização desses produtos culturais não vai de encontro à nossa expectativa. Daí, a popularização de uma frase bastante famosa entre o público espectador contemporâneo: “A sequência nunca é melhor que o original”. Como público, consumimos uma sequência meia-boca num dia e um reboot mal pensado no outro. Ciclo interminável de desejo e decepção. Entramos no cinema aguardando uma nova experiência inesquecível e saímos desgostosos. Bad trip de nostalgia. No entanto, tal como o Renton de 1996 recorrendo a um supositório de ópio antes de parar com as drogas para sempre, retornamos na semana seguinte para uma sessão do filme de “Power Rangers” (não faz todo sentido que nessa analogia o supositório de ópio seja “Power Rangers”?).

“T2” tem consciência de sua função cultural e das limitações que essa condição impõe à sua existência. Em vez de se contentar em ser apenas mais um produto da retrofilia, confronta as causas desse estado de espírito.

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