Avisem para a direita que a esquerda não morreu

eDemocratize
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8 min readFeb 25, 2016
Foto: Al Jazeera

Desde a vitória de Mauricio Macri na Argentina, a direita latino-americana vive a ilusão de que os setores progressistas do continente perderam a força. Depois da derrota no referendo de Evo Morales neste mês na Bolívia, essa ilusão vive mais forte do que nunca. Mas se nem o barulho de canhões conseguiu matar a esquerda no passado, não será a derrota nas urnas que fará isso.

Se os ventos que sopram da Europa e da América do Norte são positivos para a esquerda mundial, o mesmo não se pode dizer sobre a América Latina. Enquanto o partido Podemos representa na Espanha uma espécie de “nova roupagem da esquerda”, alcançando multidões e quebrando barreiras, a experiência progressista latino-americana parece estar próxima do seu fim.

E o primeiro efeito disso foi a queda dos kirchneristas na Argentina. Apesar de Cristina Kirchner não representar “a melhor face” do progressismo latino-americano do século XXI, foi a derrota do seu candidato nas urnas no ano passado que parece gerar uma espécie de efeito dominó contra outros governos ditos de esquerda na América Latina. No seu lugar, o neoliberal Mauricio Macri assumiu o poder do nosso país vizinho, prometendo cortar o que ele acredita ser a raiz do problema econômico da Argentina: o excesso de gastos públicos.

Essa novela definitivamente não é nova. Nossos países sofreram com experiências neoliberais por toda década de 80 e posteriormente nos anos 90, sendo a própria Argentina a principal afetada. As duas primeiras décadas pós-ditaduras no continente latino-americano foram marcadas por esse tipo de governo — um verdadeiro laboratório para instituições financeiras estrangeiras, como o Fundo Monetário Internacional. A novela que a Grécia vive agora, é a mesma que vivemos antes dos anos 2000.

A diferença que surge na direita latino-americana é a nova roupagem. Se antes tínhamos homens engravatados, com ideias conservadoras e tradicionais, que pouco se importavam com programas sociais mínimos, agora é diferente. A mais recente medida de Mauricio Macri foi cortar os impostos para as classes mais baixas da Argentina — sim, o populismo continua o mesmo. Ao mesmo tempo, ele espera que com essa atitude consiga driblar os sindicatos do país que já se posicionavam para exigir reajustes salariais, algo que o novo governo neoliberal considera um verdadeiro pecado. Parece que o drible não deu certo, e sua popularidade já sofre uma dura queda.

Essa roupagem descolada de Macri, sendo meio que o tiozão hipster do Instagram, já vem sido plagiada aqui no Brasil. Novas siglas partidárias como o Partido Novo, e até mesmo os bons moços do Movimento Brasil Livre, repetem a mesma estratégia. O objetivo é fazer o que a direita do século XX não conseguiu fazer sem precisar de rifles: conquistar a opinião da geração mais jovem. Ou seja: ser descolado, evitar ao máximo associar sua imagem com a política tradicional, e por trás da cortina aplicar exatamente as mesmas medidas adotadas pelos governos de direita no passado.

Foto: Felipe Malavasi/Democratize

Parece estar dando certo.

Parece.

A mais recente derrota da esquerda no continente veio da Bolívia. Em referendo, o presidente Evo Morales não conseguiu garantir a possibilidade de mais uma reeleição para continuar a aplicar as medidas progressistas em seu país. Se a derrota de Cristina na Argentina foi celebrada pela direita daqui com fogos de artifício, a de Evo na Bolívia só faltou marchinha militar.

Se formos considerar ainda a situação caótica que vive a Venezuela, com o presidente Nicolás Maduro não conseguindo dar continuidade ao programa socialista de Hugo Chavez, podemos decretar uma grave crise na esquerda latino-americana. Claro, eu poderia ainda citar o exemplo do Partido dos Trabalhadores no Brasil mas, cá entre nós, estamos falando de esquerda e não centro.

Sim, vivemos uma crise política dentro da esquerda na América Latina. Sim, isso pode significar a derrota de governos como o de Evo nas próximas eleições na Bolívia, ou de Maduro na Venezuela, e até mesmo Rafael Correa no Equador. Mas ser derrotado não significa morrer.

Enfrentamos em décadas passadas situações ainda piores contra governos de esquerda em nosso continente. No Brasil, João Goulart foi arrancado do poder por militares armados em 1964. No Chile, o socialista Salvador Allende foi bombardeado pelos militares de Pinochet com apoio de Washington em 1973. Fomos perseguidos, e muitos de nós morreram. Só no Chile, mais de 40 mil vidas foram perdidas por conta do massacre feito pela ditadura de Pinochet — que foi o primeiro laboratório do neoliberalismo na América Latina.

A última foto de Salvador Allende vivo, em La Moneda

Mas olha só. Aqui estamos novamente.

O inimigo desta vez não veste farda. Seu uniforme é o terno e a gravata. Pelo menos o inimigo físico. Temos que lembrar do nosso inimigo invisível: nós mesmos.

Faz parte da derrota admitir os erros e fazer o máximo possível para repensar a forma que tudo foi feito. E temos que fazer exatamente isso na esquerda de hoje: auto-crítica. Evitar cometer os mesmos pecados do passado, com negacionismo de fatos inegáveis. E quais foram os nossos erros?

Bom, bem na realidade os erros da esquerda na América Latina ocorrem de forma diferentes, dependendo de determinado país.

Na Venezuela e na Bolívia, por exemplo, é acreditar que existe espaço dentro de um regime democrático — e ainda, em tese, burguês — para reeleições intermináveis. O culto a personalidade transforma uma ideia coletiva na figura de um homem só. Isso parece ser bom no começo, mas quando as coisas começam a dar errado, não vai ser o “coletivo” a ser culpado. E sim o homem.

Um partido tão amplo e com tantas figuras políticas como o MAS (Movimento ao Socialismo, de Evo Morales) não pode viver refletido na figura de apenas uma pessoa. Se estamos falando de um projeto coletivo para o coletivo, por que não abdicar do personalismo de ideias?

O mesmo vale para a Venezuela. Hugo Chavez foi um dos homens mais importantes do século XXI para a política latino-americana. Fez maravilhas em um país criminalizado por quase toda nação de primeiro mundo. Diminuiu a pobreza, levou o Estado aonde ele não existia — favelas e periferia — , criou nos bairros uma espécie de “comuna” para que a própria população determine quais políticas públicas deve seguir, etc. Mas a experiência venezuelana abraçou tanto a sua figura que, após a sua morte, não importa quem os socialistas coloquem na Venezuela durante a crise política e econômica: não vai dar certo. Ele não é Chavez.

A revolução de um homem só acaba quando ele morre — ou quando se torna impossibilitado de continua-la.

Um dos erros da esquerda latino-americana foi o de se contentar com políticas públicas, confiando ainda que quase cegamente nas estruturas do sistema político democrático burguês. A revolução socialista na Venezuela não aconteceu. Se tivesse acontecido, o governo de Maduro não precisaria entrar em conflito diariamente com a iniciativa privada, a acusando de “sabotagem”, esvaziando supermercados e aumentando propositalmente e com objetivos políticos os valores de produtos.

No Brasil, o erro foi acreditarmos que o Partido dos Trabalhadores seguiria a sua história, quando se aliava automaticamente com o PMDB e demais siglas de centro-direita como o Partido Progressista. Algumas pessoas que ainda se auto-intitulam socialistas ou de esquerda, até mesmo marxistas, continuam se contentando com programas sociais como o Bolsa Família, enquanto ignoram quase que de forma robótica o “Bolsa Banqueiro”, ou o “Bolsa Empresário”.

Nadando quase que fora dessa onda, o governo de esquerda no Uruguai conseguiu lidar com o mantra da personificação da imagem de “líder”, elegendo o candidato apoiado por Pepe Mujica. Se fosse no Brasil, ou na Argentina e Venezuela, o fariam tentar a reeleição. Ainda bem que não o fez. Sua obra será lembrada, mas o processo político por uma esquerda consolidada no Uruguai continua.

Foto: Reprodução/Google

E o que devemos fazer então?

Ouvir a rua é o primeiro passo. Abrir o leque para novos atores é outro.

A rua já demonstrou sua capacidade de articulação. Movimentos como os que temos no Brasil desde 2013, seguem o mesmo padrão até hoje: uma organização horizontal, que consegue atingir massas e reproduzir um discurso de esquerda. Seja o Movimento Passe Livre, ou até mesmo os secundaristas em São Paulo e Goiás. Eles são a nova cara da esquerda latino-americana.

Não devemos confiar cegamente na nova experiência europeia, mas tirar lições. O crescimento do Podemos na Espanha é um exemplo: um movimento que nasceu das ruas, dos Indignados, e construiu um programa político através da participação de todos os seus membros, e de toda comunidade em torno dele. Apesar de Pablo Iglesias já ter feito discursos lamentáveis sobre o significado de “esquerda”, não se trata disso. Exatamente pelo fato de que o Podemos não é só o Iglesias.

Outro exemplo: a forma como Bernie Sanders consegue alcançar através de seu discurso grandes camadas da população dos Estados Unidos, um país onde socialismo era visto como palavrão por todo um século. Sim, Sanders é um social-democrata — e não socialista — , mas consegue ser ainda mais progressista do que Cristina Kirchner, por exemplo. Ou até mesmo que o próprio Partido dos Trabalhadores. Inegável, não? Quando assistirmos a presidenta Dilma Rousseff declarando guerra contra o centro financeiro do Brasil, ai sim podemos rever esse parágrafo.

De qualquer forma, não devemos “copiar” cegamente Sanders ou o Podemos, e sim ter como inspiração a forma como ambos discursos conseguem atingir a maior parte da população — coisa que novos partidos de esquerda na América Latina, como o PSOL, não conseguiram fazer até hoje.

E a direita?

Ela pode comemorar seu momento de popstar agora. Mas todos sabemos o que significa um governo de direita em países subdesenvolvidos, e isso uma hora vai acabar. Na Argentina, por exemplo, parece que vai acabar mais cedo do que esperávamos.

Mas, de qualquer forma, deixem os meninos celebrarem. Enquanto eles encenam o nosso velório, a esquerda vai renascer de novo. E de novo. E de novo. E mais uma vez.

Texto por Francisco Toledo, co-fundador e fotojornalista da Agência Democratize

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