Palácio dos Placebos: Uma carta a Paul Auster

Tudo isso é ficção, ainda que seja verdade.

Matheus Borges
9 min readJan 25, 2018
Cópia de “Palácio da Lua”.

Em 2013, comprei via Estante Virtual uma edição usada de “Palácio da Lua” (romance escrito por Paul Auster e publicado em 1989). Era a cópia mais barata disponível no site e veio toda amarelada e com as páginas rabiscadas. Terminei a leitura e encontrei, na última página, anotações soltas e um número de telefone. Abaixo do número, escrito a caneta: “Paul Auster”. Tentei ligar, ainda que não soubesse o que diria ao famoso escritor. Talvez Paul Auster não atendesse e quem atendesse fosse Daniel Quinn, protagonista de “Cidade de Vidro”. Nesse livro, o primeiro da trilogia de Nova York, Quinn se vê envolvido numa sequência de mistérios depois de receber uma ligação. Quem liga é um desconhecido à procura de “Paul Auster”. Não o autor do livro, mas um detetive particular.

Duvidei da veracidade daquele rabisco, mas havia, naquela mesma página, outras informações escritas a lápis. Entre elas, um segundo nome e outros números. Joguei aquele nome no Google e descobri que aquela pessoa havia sido funcionária da editora Companhia das Letras. Minha cópia de “Palácio da Lua” é de 1990 e não foi publicada pela Companhia, mas pela editora Best Seller. Minha pesquisa apontou que Auster só viria a ser publicado pela Companhia das Letras em 1997. Com essas informações em mãos, intuí que faria sentido se o livro houvesse pertencido a alguém que trabalhasse no meio editorial e que talvez estivesse envolvido na transição da obra do escritor de uma editora para a outra.

Pensei muito no que faria a seguir. Eu poderia telefonar e ouvir a voz do escritor, ou a do protagonista de “Cidade de Vidro”. Eu poderia ouvir a voz do detetive. Eu poderia não ligar e deixar o mistério alimentar minha imaginação. Mas liguei. Quem atenderia? Auster ou Quinn? No entanto, ninguém atendeu. Bipes, zumbidos. O telefone já devia ter sido desativado. Durante os anos seguintes, dediquei mais tempo à ficção e concluí um romance chamado “Mil Placebos”. Continuei ligando nos anos seguintes, sempre no dia do meu aniversário (não sei por quê, virou um ritual particular).

Em fevereiro de 2017, vi um filme (o documentário “Sour Grapes”) em que um cara ligava para um número e dava com aquela mesma sequência de bipes e zumbidos. Ele se virava e dizia “isso não é um telefone, é um fax”. Dentro da minha cabeça, os bipes ecoaram e logo depois fizeram “click”. Era um fax o tempo inteiro, emitindo sinais de que a linha estava ativa e pronta para receber uma mensagem. Sinais que ignorei por, bem, por ignorância. Nasci em 1992 e nunca usei um fax. Meu negócio é e-mail. Lembro que meu pai tinha um aparelho desses em seu escritório de contabilidade e que era barulhento. Aquela época era uma época de máquinas barulhentas — aparelhos de fax, modems de internet, impressoras matriciais. Hoje, os dispositivos domésticos são todos silenciosos, máquinas sorrateiras camufladas no cenário. Quanto ao fax, eu já devia ter suspeitado. Há um livro chamado “Here and Now”, que compila a correspondência entre Auster e o escritor sul-africano J. M. Coetzee. Nesse livro, há mais de uma menção a um aparelho de fax, a ter recebido seu último fax, etc.

Coincidentemente, nessa época terminei de escrever uma história que tem lá seus paralelos com objetos usados e minha descoberta tardia do fax. É um conto chamado “Cinema arcaico”. A história se passa num futuro indeterminado, onde os filmes já não filmados, mas gerados. O protagonista é Zairon, um jovem cineasta que pretende fazer um filme cujo tema é o ano de 2015. Para conferir verdade ao projeto, decide utilizar métodos muito antigos de produção cinematográfica, incluindo câmeras, roteiros de papel e atores. Tudo vai bem até o momento em que o filme precisa ser montado, pois a técnica da montagem é uma ferramenta imprescindível do cinema arcaico. Marsten, produtor do filme, tem um antigo computador Apple em sua casa.

“Não funciona”, diz ele ao montador, um homem centenário. “Está aqui como objeto de decoração”.

Marsten o comprou numa feira de antiguidades, o que coloca Zairon em estado pensativo. A quem pertenceu esta máquina primitiva e que mistérios escondem seus circuitos?

Malcolm, o montador, pergunta:

“Onde está o fio?”.

Marsten não sabe o que responder, pois nunca ouvira essa palavra antes. O computador é ligado e nele estão fotografias muito antigas que retratam a rotina de um jovem casal.

Detalhe da última página.

Em vez de telefonar, eu precisava escrever. Por um lado, isso era uma vantagem, pois detesto falar ao telefone e sempre considerei minhas habilidades conversacionais, em língua inglesa, bem inferiores às de escrita e leitura. Nunca estive em países de língua inglesa. A utilização do idioma nunca foi uma necessidade prática do cotidiano. Nunca fui a Nova York, cenário de grande parte dos livros de Paul Auster. Nunca fui a Nova York, porém caminhei em suas ruas labirínticas ao lado de Quinn e Fogg e Zimmer, enquanto tentavam desvendar os mistérios de suas próprias vidas. Nas palavras do cantor cearense Marcondes Falcão, ao descrever a cidade em “Pato Donald no Tucupi”, essa é uma cidade em que eu nunca estive / mas porém nunca me acostumei.

Por outro lado, como eu poderia não me sentir intimidado diante disso? Em primeiro lugar, eu precisaria escrever uma carta num idioma que não é meu. Em segundo lugar, eu precisaria aprender a usar um fax. Em terceiro, havia a possibilidade de que o destinatário seria o próprio Paul Auster, um dos principais autores norte-americanos vivos, um grande nome da ficção pós-moderna, autor de “A Música do Acaso” e “O Livro das Ilusões”. Escrevi a carta enquanto lia “4 3 2 1”, o romance mais recente do autor. Foi uma experiência esquisita, extremamente esquisita, ler Paul Auster enquanto escrevia uma carta para Paul Auster.

Como disse há alguns parágrafos, nasci em 1992 e meu negócio é e-mail. Nunca precisei escrever carta e mandar fax. Agora, eu precisava fazer as duas coisas. Entre as poucas cartas que escrevi na vida, estavam as missivas da infância destinadas ao Papai Noel. Eram cartas que eu escrevia na companhia de minha mãe. Escrevíamos as cartas, selávamos, íamos juntos à agência dos Correios. O endereço do destinatário era sempre o mesmo: Travessa Hiller, XX. Não sabia que lugar era aquele, mas o Papai Noel sempre respondia. Comentei com minha mãe o quanto a letra do Papai Noel se parecia com a dela. Ela riu. Alguns meses mais tarde, depois de passar um dia na casa dos meus tios, percebi que a placa da rua dizia:

“Travessa Hiller”.

Furioso, briguei com minha mãe. Por que ela nunca me disse isso? Por que ela nunca me contou que o Papai Noel era vizinho da Dinda Lúcia? Ela riu mais ainda.

Concluí a carta para Paul Auster. Fiz da carta uma história de si mesma. Meu nome é Matheus, sou um escritor brasileiro de 25 anos. Em 2013, comprei uma cópia usada de “Palácio da Lua” e encontrei este número. Descobri recentemente que não era um telefone, mas um fax. Escrevo porque achei que seria estúpido não escrever, porque encontrar este número fez com que eu me sentisse como um dos personagens de seus livros. Nenhum deles ignoraria a coincidência. Todos eles seguiriam uma manifestação física das forças do acaso. Há poucos meses concluí “Mil Placebos”, meu primeiro romance. Como é difícil escrever um livro. Etc. Etc. Etc.

A história do número do Paul Auster encontrado num livro do Paul Auster se tornou algo como um folclore particular entre meus conhecidos e eu. Todo mundo que ouviu a história ansiava por sua conclusão, talvez até mais do que eu próprio. A história, um fragmento apócrifo unindo minha vida à do autor norte-americano, ganhava ares de manifestação religiosa ou conspiração cuidadosamente planejada. Houve quem disse que o próprio Paul Auster anotava seu telefone em uma quantidade limitada de livros. Auster sabia que seus leitores reagiriam daquele jeito, associando o telefone à história de Daniel Quinn. Era uma maneira de fazer com que os leitores reafirmassem a fé na sua ficção. Eu, apesar de até gostar do mistério e de sua aparente irresolução, também ansiava por estabelecer contato. Um fax.

Carolina, minha namorada, disse que sua dinda, Graça, ainda tinha um aparelho de fax. Fui até lá. Seria curioso se, depois de anos de falsas respostas às minhas cartas chegando através de uma dinda, uma resposta verdadeira chegasse à casa de outra. Enviei o fax. Durante as semanas seguintes, o aparelho foi observado de perto durante 24 horas por dia. Houve uma tarde em que recebi uma ligação de Graça avisando que o fax começara a se mexer. Isso aconteceu enquanto eu lia trechos do meu conto “Camelo” para uma plateia de duas pessoas no Sicredi Porto Alegre. Eu não estava sozinho. Alguns colegas escritores estavam lá.

“O fax se mexeu”, eu disse, provocando uma comoção em meus amigos.

Logo depois, Graça ligou para dizer que o sinal fora interrompido e o aparelho imprimira uma folha em branco.

Diapositivos encontrados na minha rua.

Nos primeiros dias de 2018, outro fato me levou a perseguir as forças do acaso. Saí de casa e encontrei um diapositivo antigo. Mostrava um homem de camisa de flanela e capacete branco, parado em frente a um trem carregado de madeira. Dois dias depois, encontrei um segundo diapositivo, caído no mesmo ponto da calçada em que o primeiro foi encontrado. Na foto, não havia um homem, apenas árvores. No dia seguinte, encontrei uma terceira imagem naquele mesmo lugar. Mais árvores. Em todas elas, havia apenas uma data: “Dec/76”. Quando coisas assim acontecem, ainda mais em grupos de três, o cérebro instintivamente busca uma explicação plausível, ou ao menos um padrão.

Observei as fotografias durante muito tempo. Desde criança, nutro enorme fascínio por fragmentos de memórias que não são minhas: Anotações sem contexto em volumes de ficção pós-moderna, fotos de um jovem casal num antigo computador Apple, rostos desconhecidos em lâminas Kodak. Memórias do que foi vivido pelos outros, mas que passaram a ser minha propriedade. Memórias que poderiam ter sido minhas, mas não são. A falsa memória de que um dia eu vi um alienígena no circo. Era um palhaço, minha mãe me disse. Eu tinha medo de palhaços e de seres extraterrestres, então minha mente deve ter confundido as duas coisas.

Memórias, todas elas, e as ficções que se criam no meio do caminho. O fato de que alguém não podia esquecer o número de um autor e o anotou na última página de um livro escrito por ele. O fato de que essa pessoa deve ter morrido e seus livros, vendidos a um sebo. O fato de que eu comprei esse livro e de que uma terceira voz se interpõe ao diálogo entre autor e leitor. A voz de um primeiro leitor, dizendo eu estive aqui, por favor não me esqueçam. O fato de que eu próprio escrevo ficção e de que tudo isso aconteceu comigo. O fato de que fazer um relato disso tudo é transformar os eventos em uma narrativa fictícia. O fato de que esse texto não pode ser chamado de autoficção, pois autoficção implica transformar as próprias experiências em narrativa fictícia. O que aconteceu aqui, em primeiro lugar, foi uma vidificação do fictício, as patas poderosas do simulacro invadindo minha vida através de um livro velho. O que estou fazendo é retornar os fatos a seu estado original. O fato de que o escritor Matheus Borges pode elaborar um texto longo sobre si mesmo, transformando-se no personagem Matheus Borges, que escreve uma carta para o escritor Paul Auster, que agora também é personagem dessa história. Diz aquela famosa frase de Marx, tão popular nas redes sociais, que a história sempre se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Poderia ser: a história se repete, a primeira vez como vida e a segunda como ficção (ou vice-versa).

Pois em janeiro de 2018, tentei mais uma vez enviar a carta, dessa vez através de um aplicativo de fax online. Mensagem enviada, dois dias depois chegou a resposta, um e-mail enviado através do endereço de uma pessoa próxima. Paul Auster não tem e-mail, não tem computador. O escritor agradeceu o contato e gostou da história envolvendo a cópia usada de “Palácio da Lua” — Moon Palace. Ele me parabenizou por ter concluído meu livro.

O nome “Daniel Quinn” tem as mesmas iniciais de “Dom Quixote”.

O título “Mil Placebos” tem as mesmas iniciais de “Moon Palace”.

A dinda Lúcia é “Maria Lúcia” e a dinda Graça é “Maria da Graça”.

Ambas possuem aparelhos de fax, assim como Paul Auster.

Paul Auster vive no Brooklyn e não na Travessa Hiller.

Hiller também é o nome de uma cidadezinha no estado da Pensylvannia.

A sigla do estado da Pensylvannia é “PA” — as iniciais de “Paul Auster”.

Matheus Borges se assustou com um palhaço e não com um alienígena.

Matheus Borges enviou cartas ao Papai Noel e a Paul Auster.

Ambas foram respondidas.

Tudo isso é ficção, ainda que seja verdade.

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