Por que a autogestão é essencial para as organizações regenerativas

Rogério Silva
PACTO organizações regenerativas
7 min readAug 17, 2020

Rogério Silva & Ana Karolina Andrade. Photo by Adrien Converse on Unsplash.

Ainda que 120 anos nos separem da gênese da administração científica, boa parte das organizações ainda opera na ideia de que enquanto algumas poucas pessoas são pagas para pensar, muitas são pagas para executar o que já foi pensado por outras. A cisão entre estratégia e operação é possivelmente o legado mais sombrio que nos deixaram Taylor e Fayol [1], porque é também um dos mais perenes. Sua aliança com a cultura autocrática brasileira oferece explicações sobre como historicamente cuidamos de nossas organizações públicas e privadas.

Mas a história não é escrita por uma única mão. Os últimos 120 anos também testemunharam a emergência de inúmeros modos de resistir a este legado da administração científica. No plano teórico, a administração reinventou-se sob influência de muitas ciências. Sociologia, antropologia, psicologia, psicanálise, física quântica e ecologia são alguns dos paradigmas que transformaram gestores e organizações e criaram muitas novas teorias e realidades.

No plano político não foi diferente. A aparição do sujeito de direitos, da responsabilidade social corporativa, das novas experiências de propriedade e do paradigma do Comum [2] lançaram enorme pressão sobre o tradicional ensimesmamento das organizações, querendo reconhecê-las como concessões da sociedade e como órgãos a ela pertencentes. Submeter as organizações à cultura tornou-se um denso campo de disputas, com perdas e ganhos para adversários em todo o espectro político. É neste cenário de disputas que o conceito de autogestão é reconhecido neste ensaio a partir de dois registros.

No primeiro deles, a autogestão é percebida como estratégia de conservação de poder. Ela favorece que os trabalhadores flertem com zonas de autonomia e de criatividade, produzindo ao redor deles um ambiente institucional líquido, quase invisível, adoçado pela narrativa do empreendedorismo e pela promessa de infinitas zonas de liberdade. Os motoristas de aplicativos são a categoria de trabalhadores que melhor ilustra este fenômeno, a ponto da Uberização [3] ter se tornado parte do vocabulário de crítica aos novos arranjos do mundo do trabalho.

No segundo deles, a autogestão é percebida como dispositivo de produção de poder distribuído. Ela aposta na corresponsabilidade entre organização e trabalhadores, refuta o trabalho precarizado, favorece a criação de sentido para o trabalho e aposta na construção progressiva de zonas de autonomia que ampliam a potência de cada trabalhador e da organização como um todo. É neste segundo registro que vamos nos aprofundar.

Orientadores para autogestão

Conhecer a infraestrutura ética e política que dá sustentação aos modelos amplia a capacidade de escolha das organizações e evita que alguém possa entrar desavisado em tais modos de operar, comprando “gato por lebre”. Aqui estão alguns orientadores que nos parecem importantes para pensar e colocar em prática modelos de autogestão.

1| As pessoas são órgãos de percepção da realidade

Cada pessoa é um ponto de contato com a realidade, um canal que de modo permanente interage com o mundo externo, o escuta, o influencia e aprende com ele. Logo, se uma organização conta com 20 pessoas, ela possui 20 pontos de contato com a realidade ou 20 órgãos de percepção. Façamos esta mesma conta considerando clientes e fornecedores e constataremos elevado potencial de conexão de cada organização com a sociedade.

O problema é que muitas organizações não levem isso em conta. Elas compreendem que apenas um seleto grupo está apto a analisar, aprender e pensar sobre esta realidade, delegando à maioria o papel de meros terminais de execução de tarefas. O primeiro princípio da autogestão reconhece que cada pessoa precisa de autonomia para responder à realidade, bem como ser estimulada a trazer a realidade para dentro da organização. A conexão e a capacidade de resposta de uma organização ao ambiente é proporcional à autonomia com que sua equipe cuida desses processos.

2| Distribuir poder amplia a potência das ações

Se valorizamos as equipes e as pessoas a ponto de investir em sua autonomia reflexiva, propositiva e executiva, enviamos a elas um recado de que confiamos em seus talentos, capacidades e responsabilidade. A mensagem de confiança costuma operar de duas maneiras. Ela torna as equipes mais seguras e estimula um ciclo virtuoso de responsabilidade.

Ao favorecer este ciclo, é inevitável que as pessoas e equipes ampliem sua implicação com os processos de trabalho e em torno dele produzam mais sentido. E vem do sentido e da responsabilidade o compromisso de fazer melhor, de qualificar as práticas, ampliando seu potencial transformador.

3| Equipes efetivamente autônomas requerem poder de decisão

O processo de distribuição de poder em uma organização não é algo trivial. Ele é sempre um campo de disputas e tensões no qual os avanços são progressivos e incluem também retrocessos. Quando uma organização aposta em autogestão genuína, contudo, deve estar claro que a distribuição de poder é também um caminho sem volta. As pessoas e equipes que experimentam situações nas quais acumulam maior poder dificilmente aceitarão um caminho contrário.

Ao criar mecanismos que ampliam as capacidades de reflexão e ação das pessoas, conferindo maior poder de decisão a elas, é importante que a organização esteja preparada para sustentar a experiência autônoma, trocando controle por responsabilidade e trocando a ideia de “linha única de comando” por múltiplas zonas de autonomia executiva. A mudança de modelo organizacional e de mentalidade é significativa.

4| A boa autonomia requer interdependência

Distribuir poder e viver em uma organização com múltiplos pólos autônomos pode parecer uma ode à fragmentação. Poderíamos dizer o mesmo do corpo humano, caso compreendêssemos que a autonomia funcional dos órgãos, aparelhos e sistemas fosse fruto de múltiplos centros independentes.

Ao contrário do isolamento e do caos, a autonomia organizacional só terá sentido se uma viva dinâmica de interdependência entre a partes produzir inteligência coletiva, unidade estratégica e sinergia operacional. Agir com interdependência lembra a importância da pactuação coletiva de papéis e responsabilidades, dos mecanismos de diálogo entre pessoas, equipes e áreas e da necessidade de que cada parte da organização cuide das demais: partilhando informações, regulando calendários, fazendo pedidos claros, cumprindo e ajustando acordos e nutrindo a ideia de que para sobreviver e cumprir seus papéis na sociedade, é preciso agir coletivamente.

5| Grupos autônomos precisam de bom feedback

As dinâmicas de interdependência são como dança. Se você já assistiu a uma dupla a “bailar el tango”, por exemplo, perceberá que os movimentos feitos por um dos dançarinos são sempre em relação aos movimentos feitos pelo outro, e a graça está na dinâmica aí estabelecida, que contém padrões mas também elevadas doses de resposta improvisada. O conceito de improviso deve ser aqui compreendido como prontidão, capacidade de interpretar e responder, capacidade de propor e alterar, e assim por diante.

Bons mecanismos de feedback contêm duas dimensões. Uma dela diz respeito à qualidade das conversas entre as pessoas e à produção e a troca de informações entre pessoas e equipes. A outra diz respeito ao modo como se responde à informação. Abertura para os dados, pedidos, alertas e recomendações; análise das decisões e suas consequências; e velocidade do processo de resposta são fundamentais para que os modelos e autogestão prosperem.

6| Informação abundante estimula autonomia

Quanto mais informação as pessoas e equipes possuem sobre a realidade e sobre os movimentos organizacionais, mais elas se responsabilizam pela organização. Dito de outro modo, se uma organização espera que suas equipes ajam de modo inteligente, estejam alinhadas ao todo e respondam prontamente às oportunidades e riscos trazidos do mundo externo, é fundamental que as informações circulem de modo aberto e sejam acessíveis e inteligíveis.

É preciso proteger dados sigilosos e ninguém duvida disso. Mas as poucas exceções servem exatamente para confirmar princípios de abertura e transparência. Quanto mais abundante é a informação, mais as equipes ganham consciência sobre um todo, sentem-se incluídas no processo, são convocadas a amadurecer e posicionam-se para produzir soluções para as ações. Nem sempre é um processo fácil, mas traz incontáveis ganhos para a organização.

7| Uma organização coesa requer processos decisórios e acordos claros

Os processos de distribuição de poder e de ganho de autonomia nas equipes tende a ampliar a entropia organizacional. Isto significa que cada equipe ganhará maior autoridade sobre os processos, o que tende a criar zonas de tensão. As tensões podem aparecer em “bolas divididas”, quando duas equipes entendem que devem agir sobre o mesmo problema de modo descoordenado. Podem também surgir no “deixa que eu deixo”, quando ninguém assume um problema supondo que a responsabilidade é do outro. E podem ainda surgir quando uma equipe toma uma decisão que influencia, obstruindo, alterando ou acelerando o trabalho de outro subgrupo.

Por isso os modelos de autogestão requerem a melhor descrição possível de papéis e responsabilidades, ajustadas periodicamente, além de processos decisórios claros e que sigam um ritual mínimo que a eles confira consistência. O respeito aos rituais decisórios amplia o respeito das pessoas às decisões e seu compromisso com elas. Por sua vez, o compromisso das equipes com as decisões de uma organização é um atributo fundamental de sua coesão.

Referências

[1] Frederick W. Taylor (1856–1915) e Jules Henri Fayol (1841–1925) foram os precursores das abordagens clássica e científica da administração. Seu legado é de indiscutível importância e possui dimensões tanto luminosas quanto sombrias.

[2] Para o Instituto Procomum, “ (1) os bens comuns (o planeta, o patrimônio sócio-ambiental, o corpo, o urbano, o digital), (2) a gestão desses bens por comunidades que se auto-governam, um modelo de governança operado por uma rede entre comuneiras e comuneiros, (3) um processo político que nos convoca a agir para além das formas estratificadas do mercado e do Estado, (4) uma alternativa econômica que produz no interior das comunidades (locais ou globais) relações de reciprocidade (dádiva), generosidade e solidariedade,(5) a vida em coletivo, (6) uma transformação cultural de grandes proporções, como resultado de um processo escorado em afetos, sentidos e na espiritualidade.

[3] Para Kalil (2019), em resumo de tese doutorado publicada no Nexo, o conceito implica (1) a existência de alguma autonomia dos trabalhadores para determinar a carga horária e a jornada de trabalho; (2) uma relação direta entre dependência e precariedade, em que quanto maior a dependência na plataforma para sobreviver, maior a precariedade das condições de trabalho; (3) o gerenciamento da força de trabalho pelo algoritmo, sendo que a intensidade da coordenação e do controle de mão de obra varia em cada plataforma; e (4) uma acentuada desigualdade econômica entre os trabalhadores, as plataformas e os tomadores de serviços.

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Rogério Silva
PACTO organizações regenerativas

Sócio da Pacto, é doutor em saúde pública pela USP, psicanalista pelo CEP e consultor em avaliação, estratégia e cultura organizacional