Por que conversar com qualidade é essencial para as organizações

Rogério Silva
PACTO organizações regenerativas
6 min readMar 30, 2020

Este texto foi escrito por Rogério Silva e Cris Chiófalo, sócios da Pacto. A imagem é de JR Korpa no Unsplash. Para referência utilizar Silva R & Chiófalo, C. Por que conversar com qualidade é essencial para as organizações. São Paulo: Pacto, 2020.

Desde que Breuer [1] e Freud reconheceram que a palavra era capaz de curar, muitas ciências dedicaram-se ao trabalho de investigar a centralidade da palavra para os sujeitos e os grupos. A onda ganhou contribuições da antropologia de Levi Strauss [2], da linguística de Saussure [3], da psicanálise de Jacques Lacan [4] e encontrou, em praias recentes, as formulações de Maturana [5] e de Rosemberg [6].

Para aqueles que trabalham com cultura organizacional, as conversas são território privilegiado de ação. Como nos ensinou Schein [7], a cultura das organizações é moldada por crenças e valores, pelo que dizemos uns aos outros e pelo modo como aquilo que dizemos transforma-se em jeito de agir, cristalizando crenças, valores e expectativas em infra-estrutura, dinâmica e identidade organizacional.

O modo como conversamos é determinante para moldar a cultura de uma organização. Cada um de nós sabe o que acontece quando uma organização é marcada por conversas de má qualidade. Elas tornam-se incapazes de articular equipes e ações porque submergem num clima pesado que eclipsa o prazer de trabalhar, reduz o desempenho e produz sofrimento organizacional. Boa parte dos burnouts se dão em ambientes nos quais as palavras ora não circulam, ora fluem com violência. Se palavras constroem realidades, elas machucam pessoas.

Por outro lado, todos já experimentamos situações nas quais há bons níveis de conversação. Neles, constitui-se um campo de liberdade que nos permite estar com os outros de modo mais autêntico, praticando transparência. Ele nos autoriza a prestar atenção em nossos sentimentos e necessidades e nos impulsiona a desejar e a realizar mais, favorecendo nosso bem estar e nossa criatividade.

Em tempos nos quais as organizações estão em busca de inovar serviços e ampliar seu impacto positivo na sociedade, é notável como ambientes conversacionais seguros podem ajudar. Ele encoraja as pessoas a tomar riscos, a assumir novas responsabilidades e a arriscar-se mais, sem que isso lhe submeta à autocensura e à censura real ou imaginária que opera nas organizações.

Quando fazemos a palavra circular facilitamos que a realidade organizacional seja produzida em diversas vozes, o que significa produzir cultura organizacional. A circulação da palavra propõe que todos os membros de um coletivo sejam reconhecidos: todas as cores e gêneros falam; todo o organograma fala. Se silêncio e palavras violentas produzem paralisia e sofrimento, boas conversas permitem coexistência, inteligência coletiva, corresponsabilidade, qualidade e resultados.

Estratégias para conversar melhor

Evoluir a qualidade das conversas requer algumas apostas. É preciso apostar em um processo gradual de evolução das competências conversacionais e agir de modo a sensibilizar as pessoas. Promover micro-experiências no cotidiano, refletir sobre o percurso, celebrar as conquistas e sustentar o movimento impulsiona a organização desenvolver “musculatura conversacional”.

Mas é preciso criar condições. A primeira delas é eleger um método. A Psicologia Social [8], a Análise Institucional [9], a Ontologia da Linguagem [10] e a Comunicação Não-Violenta são algumas das possibilidades. À medida que cada uma delas requer saberes teóricos, capacidades de manejo e um algum tempo, é importante que cada organização escolha um caminho que lhe seja viável.

A segunda delas é constituir espaços de experimentação. As conversas devem progredir como competência mobilizada no cotidiano, e não como domínio teórico. Saber, por exemplo, o que é comunicação não-violenta e comunicar-se de modo não-violento são coisas diferentes. Espaços de experimentação podem tomar poucos minutos de uma pessoa, mas ter grande potência. E podem ser abrangentes quando a organização resolve criar conversas em grupo.

Um exemplo de boa prática são as duplas de escuta empática. Em cerca de dez minutos duas pessoas podem acessar seus sentimentos e necessidades e fazer um scan de seu humor, o que ajuda a regular a agenda do dia, o tom das conversas e as prioridades. A escuta empática fortalece as capacidades de autopercepção e heteropercepção, operações básicas para viver em grupo.

A partir de um “e aí, tudo bem?” instaura-se um exercício que permite compartilhar como estamos naquele momento. Propor uma escuta genuína requer que aquele que escuta flutue no discurso do outro, tomando-o como objeto de investigação, sem juízos de valor. A escuta que espelha e devolve percepções ao narrador lhe oferece uma imagem de sua narrativa e, por isso uma imagem de si mesmo. A escuta-de-si estimula um tipo de letramento emocional que favorece que nos reconheçamos com o outro.

Para o trabalho com grupos, as salas de escuta, as rodas-de-conversa e os círculos restaurativos são boas estratégias para evoluir na qualidade das conversas. Nestes espaços pode-se reconhecer problemas conversacionais e padrões de violência comunicacional. Pode-se também oferecer conceitos ao grupo, processar situações críticas em roleplaying e apoiar o grupo a modular o tom da conversa.

Fazer a palavra circular para que os menos eloquentes falem e para que sintomas sejam percebidos e processados estimula que todos comprometam-se a experimentar, compartilhar aprendizados, desafios e ampliar sua capacidade de dialogar. Os espaços coletivos servem também para humanizar o processo, ajudando as pessoas a não idealizar uma boa conversas, como se isso tivesse a ver com o modo de fala dos sábios orientais: pausadas, profundas e enigmáticas.

Nada disso. Conversas de qualidade permitem que as tensões apareçam e criam condições para tratá-las. Conversar com qualidade implica poder dizer ao outro, por exemplo, que sua fala fere seus valores essenciais e não dialoga com suas necessidades em uma dada situação, e permite dizer “basta”. Isto ilustra que conversar bem implica escutar e acolher, mas também escutar-se e acolher-se, o que em alguns momentos pode significar encerrar um papo e sair de cena.

Conclusão

São muitos os sinais de que a sociedade brasileira está profundamente descontente com o seu modo de viver. A confiança nas instituições é baixíssima e os níveis de intolerância beiram o insuportável. Dos indicadores de feminicídio aos bate-bocas virtuais, somos testemunhas e membros de uma sociedade que conversa cada vez menos e que se violenta cada vez mais.

Como afirma Bernardo Toro [11], nosso futuro passa pela aquisição de competências essenciais à vida, como nos reconhecer como membros de uma mesma espécie e elos em uma mesma comunidade, disso derivando o cuidado com os ecossistemas, os outros e conosco: “temos que (…) chegar a um nível superior de humanização. Os valores mais importantes serão saber cuidar, fortalecer relacionamentos e trocar com os demais”.

Neste paradigma, a forma como conversamos é fundamental. Conversas nas quais possamos falar se impor ao outro e nas quais não precisemos nos proteger da imposição do outro. A boa conversa não investe em campos de proteção e clausura, mentira e hipocrisia. Ao contrário, é a via para que possamos estar em um campo comum de existência e de perceber que os aliados e os adversários tecem juntos a realidade em que participam. Quando Breuer e Freud disseram a seus espantados colegas vienenses que a cura da histeria estava no uso da palavra, talvez não imaginassem o legado que estavam a nos deixar.

Referências

[1] Josef Breuer foi o médico austríaco orientador de Sigmund Freud, criador a psicanálise.

[2] Filósofo e antropólogo fundador da Antropologia Estrutural.

[3] Ferdinand de Sausurre foi o filósofo e linguista suíço que fez da linguística uma ciência autônoma.

[4] Médico psiquiatra e psicanalista francês que reconfigurou a Psicanálise Freudiana.

[5] Humberto Maturana é o neurobiólogo chileno que formulou a Teoria da Autopoiese e a Biologia do Conhecer com Francisco Varela.

[6] Marshall Rosenberg é o psicólogo americano que desenvolveu a Comunicação Não-Violenta.

[7] Schein, Edgar. Organizational culture and leadership. San Francisco: Jossey-Bass, 1992.

[8] Método de intervenção grupal criado pelo psicanalista argentino Pichón-Riviére.

[9] Método de intervenção em grupos e organizações de base psicanalítica. De origem francesa, tem em Félix Guattari, René Lourau e Georges Lapassade seus precursores.

[10] Método de trabalho individual e organizacional formulado pelos chilenos Fernando Flores e Rafael Echeverría, que consideram que a linguagem é central para compreender e transformar as realidades humanas, objetivas e subjetivas.

[11] Filósofo e educador Colombiano, é o formulador de Códigos da Modernidade.

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Rogério Silva
PACTO organizações regenerativas

Sócio da Pacto, é doutor em saúde pública pela USP, psicanalista pelo CEP e consultor em avaliação, estratégia e cultura organizacional