A capacidade de se encantar para não cair no precipício

Alessandro Padin
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2 min readOct 22, 2019

O clichê é inevitável: viver não é fácil. Aliás, nunca foi, nunca será. Não existe uma estratégia ou mesmo um termômetro que regule o grau de dificuldade que é andar por aí, enfrentando desafios e atendendo expectativas, que nem sempre são as nossas. Uns padecem da fome de matéria, outros da fome de espírito, alma. O vazio de cada um é tão intransferível que desconcerta.

Mas estes dedos que bailam pelo teclado agora não o fazem para exprimir o lamento do cético de cabelos ralos esbranquiçados que viu um mundo azul acinzentar-se. São os dedos do homem que, mesmo sabendo serem cinzas por vezes os dias, é possível pinçar cores na aquarela para seguir em frente, um passo de cada vez.

É a capacidade de se encantar que nos salva do precipício. Quando foi a última vez que você chorou ao ouvir uma música, ler um poema ou ver uma paisagem? Quando foi a última vez que você não reprimiu a criança que mora adormecida dentro de você? Quando você de fato percebeu que toda essa fortaleza aparente só o deixa mais doente, triste e cinzento?

Ballaké Sissoko by B. PEVERELLI

Como disse G.K. Chesterton, a imaginação não gera a insanidade, mas sim a razão que o faz. A poesia, ressalta o escritor inglês, mantém a sanidade porque flutua facilmente num mar infinito; a razão procura atravessar o mar infinito, e assim torná-lo finito. O resultado é a exaustão física e mental. É isso que torna os dias mais cinzentos.

Então faça como o homem de cabelos ralos esbranquiçados: chore ao ouvir uma música que o encante. Chore ao ouvir Ballaké Sissoko e sua Kora Manding, uma harpa de vinte e uma cordas. Deixe que a mágica melodia desperte toda a emoção, feche os olhos, imagine um mundo menos cinza e pense em paisagens coloridas e no sol que vai brilhar no dia seguinte.

O encantamento acorda a criança que está dormindo dentro de nós, não para nos entorpecer equivocadamente de infantilidades sem preocupações, mas para nos entorpecer de vivacidade da alma pura. Assim poderemos atravessar os caminhos cheios de tanta razão, fórmulas prontas, cinismo e brutalidade que têm levado tanta gente embora desse mundo.

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Alessandro Padin
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Escritor, jornalista e professor universitário