A Febre e o banzo nosso de cada dia

Alessandro Padin
padin
Published in
2 min readMar 2, 2021

Uma pesquisa superficial sobre o significado de banzo revela que se tratava de uma tristeza profunda e letal que afetava negros desterrados e escravizados em terras estranhas. Uma melancolia sem remédio, sem cura. No entanto, quando se faz uma busca mais cuidadosa, é possível encontrar análises mais apuradas sobre o fenômeno como a de Davi Nunes, no texto Banzo: Um estado de espírito negro, publicado no Portal Gelédes.

Para ele, tendo os negros escravizados como referência, o banzo “é o núcleo atômico de um sentimento que se desenvolveu no processo de escravização, e ainda hoje é um estado de espírito ao mesmo tempo aterrorizador e poderoso, uma transcendência diante dos traumas seculares”. Era exatamente isso que precisava ler, pois foi a impressão que tive ao assistir o filme A Febre, dirigido por Maya Da-Rin.

O longa retrata, não um negro, mas o cotidiano de Justino, um indígena de 45 anos da etnia Desana, que trabalha como vigia em um porto de cargas, em Manaus. Vive, desde a morte da esposa, com a filha Vanessa, uma enfermeira que está de malas prontas para estudar medicina em Brasília. Melancólico e taciturno, é confrontado o tempo todo com os fantasmas da ancestralidade que não têm sentido no mundo urbano do homem branco.

Seria a febre que acomete Justino, e que dá título ao filme, um tipo de banzo? Pensei que estava dando um rodopio tremendo fazendo essa analogia, mas preferi correr o risco de fazê-la. Há sutilezas na obra que desnudam a crise que o corrói por dentro, como os sons (Um animal? Uma criatura mítica? O sons da mente?) , que ouve na mata quando desce do ônibus às margens de uma rodovia, após um dia de trabalho percorrendo uma “selva” de contêineres no cais do porto. Ele para, olha, pensa, luta contra a sua natureza, mas segue pra casa.

Um caçador vive dentro dele e quer sair, mas a febre não deixa. Essa espécie de banzo o mortifica e, em um exercício de empatia e compaixão, nos faz pensar que talvez hoje, neste mundo de hiperconectividade e inflação de imagens e aparências, estejamos provocando a nossa própria melancolia sem remédio, sem cura. Depois dos negros e dos índios, é possível diagnosticar que nós mesmos, brancos e urbanos, estejamos provocando o nosso próprio desterro, escravizados pelas vaidades e longe, cada vez mais, do que realmente somos ou poderíamos ter sido.

--

--

Alessandro Padin
padin
Editor for

Escritor, jornalista e professor universitário