Carlos Lacerda e o desencanto da política

Alessandro Padin
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5 min readJul 17, 2019

Minha esposa dá risada quando me vê com a obra Carlos Lacerda — Depoimento nas mãos: — Quantas vezes você já leu este livro?!?

Surradinho, comprado em um sebo, foi lançado originalmente em 1977 pela Nova Fronteira em um projeto do Grupo Estado que tinha objetivo de formar um banco de informações históricas para o futuro.

Entre os meses de março e abril de 1977 (um mês antes da morte de Lacerda), os jornalistas Melchiades Cunha Junior, Ruy Mesquita Filho, Ruy Portilho e Antero Luiz, do Jornal da Tarde, realizaram 34 horas de gravações com o político no Sítio do Alecrim, no Rocio, em Petrópolis.

Como recorda Ruy Mesquita, então diretor do Jornal da Tarde, no prefácio:

Foi em um dia qualquer de outubro de 1976 que Melchiades Cunha Junior, redator do Jornal da Tarde, entrou na minha sala para propor uma empreitada jornalística que não hesitei em aprovar com entusiasmo, embora sabendo que não poderia render dividendos para o jornal a não ser a longo prazo e em circunstâncias imponderáveis: a formação de uma espécie de banco de informações históricas, destinadas precipuamente a servir a quem, no futuro, pretender estudar a vida política deste país nos últimos quarenta anos.

Entrevista para o livro Carlos Lacerda — Depoimento (foto: Iarli Goulart)

Junto com D.Pedro I, considero Carlos Lacerda um dos personagens mais fascinantes da história do Brasil. Político combativo, temperamental, para muitos um conspirador nato (era chamado pelos inimigos de o “Corvo), também foi escritor, jornalista, tradutor (traduziu, por exemplo, “Minha Mocidade” de Winston Churchill) e empresário.

Lacerda produziu ódios e paixões. Para isso, basta ler livros como Carlos Lacerda — Meu amigo (Antonio Dias Rebello Filho), Quase Tudo (Danuza Leão) e o essencial Samuel Wainer — Minha Razão de Viver, escrito pelo amigo de infância que se tornou jornalista, revolucionou a imprensa brasileira com o Jornal Última Hora e que se transformou em um dos seus grandes inimigos. Há uma obra só sobre o tema, Lacerda x Wainer: o corvo e o bessarabiano (Ana Maria de Abreu Laurenza), mas este ainda não li.

Em Carlos Lacerda — Depoimento, a atualidade assusta pela semelhança de fatos políticos de 50, 60 anos atrás com o que vivemos nos últimos 25 anos, daí eu sempre recorrer ao livro, como já percebeu minha esposa. Funciona como se fosse uma enciclopédia, onde encontro respostas para dúvidas quando avalio o cenário.

Carlos Lacerda amparado por policiais após o atentado da Rua Tonelero

O reencontro com o comunista Mário Lago

Além disso, tem passagens incríveis, que renderiam outros livros, filmes, como quando Lacerda, preso em 14 de dezembro de 1968, um dia após a implantação do AI-5 pelo presidente Costa e Silva, reencontrou na cadeia Mário Lago. O ator, comunista, e Lacerda, não se falavam há mais de 30 anos. Segue a cena do reencontro em uma cela do Quartel da Polícia Militar, no Regimento de Cavalaria da Polícia Militar, no Rio de Janeiro:

E aí, de repente, chega de calça de veludo, com aquele calor enorme, o Mário Lago, que era o secretário do Sindicato dos Atores. E o Mário Lago, evidentemente, não tinha relações pessoais comigo, por motivo de ordem política, desde o tempo de estudante, quando ele fundou a Federação dos Estudantes Ateus. Era mais uma de suas prisões, porque nessa época ele era preso de dois em dois dias. Ele tinha sido preso na saída de uma filmagem de um capítulo de uma novela ou de uma peça de teatro em que ele fazia o papel de vilão e, como todo vilão, vestia calça de veludo. Então saiu com aquela roupa assim mesmo, naquele calor desgraçado. Nos encontramos assim (não nos víamos desde o tempo da Faculdade de Direito), houve aquele momento de hesitação, e eu disse: “Ô Mário, preso fala um com o outro, não é?” Aí estendemos a mão, apertamos a mão e ficamos amigos.

No período de cadeia (prisão que foi motivada principalmente por sua participação na Frente Ampla), há outra passagem curiosa, quando resolveu fazer uma greve de fome e ouviu o irmão dizer:

Carlos, eu te conheço, eu sei que não adianta tirar da tua cabeça isso. Agora, eu queria que entendesses bem o que está se passando: os jornais não estão noticiando nada disso; as praias estão repletas; está um sol maravilhoso e está todo mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento disso! Então você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra da Dercy Gonçalves?

Entrevista de Carlos Lacerda ao programa Firing Line, de William Buckley Jr., em 1967 (traduzido pela página Tradutores de Direita)

Por que, mais uma vez, recordei Lacerda?

Voltando no tempo, ao início dos anos 60, Lacerda foi um dos artífices da candidatura de Jânio Quadros à presidência da República e todos sabem o que aconteceu depois. Em um dos capítulos de Carlos Lacerda — Depoimento, ele relata momentos cruciais do período, mas um aspecto guarda semelhanças com o atual momento da política nacional.

Os extremos em disputa sangrenta pelo poder, as instituições questionáveis sendo perigosamente questionadas e as redes sociais dando voz ao que há de mais brutal agem como fermentos para um desencanto com a política, sentimento que carrego agora e que Carlos Lacerda exprimiu quando Jânio Quadros renunciou meses após ser empossado.

É isso…isso foi o principal fator do 31 de março: a despolitização do povo, a decepção do povo. Por isso é que ontem, quando, fora da gravação, depois do jantar, falávamos de AI-5, lembrei que era preciso não esquecer a origem de tudo isso, que é até mais remota, se vocês quiserem, porque vai muito mais longe. Mas a origem mais próxima foi essa decepção do povo com todo o processo democrático, quando o Jânio jogou aquilo tudo para o ar. Então, houve assim a uma despolitização rápida, toda gente se desinteressou, toda gente se desiludiu, houve uma sensação de ressaca, como se tivesse havido assim um porre nacional coletivo e no dia seguinte todo mundo estivesse com uma ressaca monumental. E o Jânio tranquilo lá.

E você, como está se sentindo?

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Alessandro Padin
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Escritor, jornalista e professor universitário