Um santo negro em uma festa católica de índios

Alessandro Padin
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4 min readJul 28, 2022

Interessando em conhecer índios ainda não civilizados e as matas intocadas do Brasil, o pintor e desenhista francês Auguste François Biard fez, entre os anos de 1858 e 1859, incursões pelo Espírito Santo e Floresta Amazônica. Esteve, também, no Rio de Janeiro, onde pintou quadros do imperador Dom Pedro II, da imperatriz Teresa Cristina e das princesas Isabel e Leopoldina. As narrativas dessa aventura estão no livro Dois anos no Brasil, que pode ser encontrado na Biblioteca Virtual do Senado Federal.

Biard, Auguste François. Índios no Amazonas

Na obra, o artista, que foi retratista oficial da corte de Luís Filipe I, traça um perfil ácido do país, apesar de reconhecer que nunca havia visto povo tão hospitaleiro como o brasileiro. Em muitas passagens, Biard revela-se preconceituoso e inconsequente, caso o julguemos com o olhar de hoje. É possível, no entanto, condescender considerando-o como um “homem do seu tempo”. O fato é que ele passou parte da viagem matando e empalhando animais e destilando azedume contra estrangeiros que viviam no país, negros e índios.

Mesmo que ao terminar de ler o livro, você o considere um babaca narcisista, é preciso celebrar que narrativas como a de Biard cheguem aos nossos tempos. É uma oportunidade, por vezes triste e desanimadora, de entender aspectos da nossa formação cultural e comportamental, muitas delas ainda presentes no nosso cotidiano. Veja o trecho abaixo, com atenção ao grifo:

Tudo me era novidade. Demoraria até que me fosse dado penetrar nas florestas virgens. Apenas existia pequena dificuldade, aliás, apresentada várias vezes no Rio: nos países em que predomina a escravidão fica feio a quem quer que seja carregar embrulhos; o costume é de se fazer acompanhar de um negro, que leva esses pequenos objetos, sempre fáceis de se meter nos bolsos. Há como uma espécie de desonra em se conduzir volumes de qualquer natureza. Meu caso seria ainda mais grave pois teria de carregar às costas uma mochila de soldado com a caixa de tintas, um pau para apoio do pára-sol, e, deste modo, passar por entre ricaços, moças e até negros de mãos vazias, os quais se sentiriam chocados com a minha figura.

Uma venda de escravos no Rio de Janeiro, de Auguste François Biard

O que acha?

Para concluir, leia este trecho da passagem de Biard pelo Espírito Santo. Lá, o francês presenciou cenas que revelam, com detalhes, o que resultou do encontro de culturas diferentes neste caldeirão que é o Brasil.

De repente ouvi ao longe rumo um tanto confuso, como se alguém batesse num tambor cuja pele estivesse molhada. Que história seria essa? Pela manhã vim a saber que se tratava da festa de São Benedito, divindade de grande devoção dos índios. Eles faziam preparativos para essa festa uns seis meses antes e guardavam dela uma recordação pelos outros seis meses do ano.
Desde o momento em que esse tambor começa a ser trocado, não pára mais, nem de noite nem de dia. Não deixei de ir me divertir um pouco nessa festa que se realizava numa povoação chamada, se não me engano, Destacamento.

Afinal chegara o momento ansiosamente esperado: surgiram duas figuras importantes. A primeira era um índio alto, revestido de uma túnica branca a lembrar um pouco o roquete de um coroinha e tendo na mão um guarda-chuva vermelho ornado de flores amarelas; na outra mão trazia uma bandeja que também se pendurava de um velho chale de franjas amarrado à cintura como um talabarte.
Dentro da bandeja vinha São Benedito, que, não sei por que, é preto, todo cercado de flores. Ali se colocam as ofertas feitas ao santo. A segunda personagem, digna de fazer parte do exército do imperador Soulouque, cingira uma farda azul celeste toda enfeitada de chita em xadrez encarnado; usava dragonas como as do general La Fayette, e na cabeça um chapéu de pontas, fenomenal no tamanho e encimado por um penacho que já fora verde.
Como emblema ostentava uma rodela com três cerejas bem vermelhas. Esta última figura é o comandante. Para se merecer essa graduação torna-se indispensável possuir umas pernas de resistência superior à de todas as outras da Terra, pois durante as cerimônias o capitão não cessa de dançar. Ele precede ao cortejo, sempre num passo de dança, com uma baliza nas mãos.
A princípio, pensei tratar-se de um círio. Atrás dele vai o homem de guarda-sol vermelho, levando o santo; depois os músicos em duas fileiras, e em torno da imagem as velhas devotas no seu cancã.
Meio escondidas nos postigos ou nas portas se surpreendem jovens e bonitas cabeças. Diante de cada pessoa convidada para o banquete, o cortejo parava; o capitão entrava, a dançar, e dava uma volta pelo interior da habitação. Dali se pas sava a outra casa e, nesse passo, chegaram à igreja toda enfeitada com palmeiras; a iluminação era feita por meio de cabaças cheias de azeite. Fora preparada a mesa defronte do altar; por precaução estenderam-lhe por cima uns panos sem dúvida com receio da investida das aranhas e de outros bichos malfeitores. Trancaram São Benedito na caixa, após terem retirado as ofertas, e nós então voltamos.

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Alessandro Padin
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Escritor, jornalista e professor universitário