Odeio praia

Alessandro Padin
padin
Published in
2 min readJul 24, 2020

Odeio praia, odeio. Aquela imensidão, ou nem tanto assim, de areia que macia acolhe nossos pés carcomidos pelo sapato do dia. Odeio por aquela visão de horizonte infinito que nos torna pequenos e ninguém gosta de se sentir pequeno. Por aquela mágica de fazer as crianças correrem sorrindo como se o mundo fosse delas. Criança não pode se sentir assim. Porque ali os velhos podem respirar um ar juvenil e velho tem que respirar mofo de travesseiro puído.

Milho, queijo coalho, amendoim torrado na latinha tosca são iguarias e não pode! Odeio mais ainda quando vejo que o super-herói no seu traje esgarçado descolorido é, de fato, um ser de poderes especiais que não morre de sede sob o sol escaldante enquanto vende o seu algodão doce; Não pode! Herói mora no último andar do prédio mais alto da cidade mais cintilante que a inteligência humana já criou. Um absurdo tudo isso.

Odeio praia, odeio. Um dia desses como qualquer outro derrubaram algumas árvores perto dela. Arrogante, fez que não viu, que não ouviu. Então, praia, vá a merda. Pois é por sua causa, você tão arrogante nesta beleza imensurável e sedutora, que o homem se sente seguro o bastante para devastar tudo o que há na frente pra ficar perto das suas franjas, do seu sorriso, da sua maré que inspira amores, poemas e canções.

Mas um dia, praia, o seu dia vai chegar e vou ver tudo de camarote. O homem que você empoderou e encantou vai ver que, no alto da sua inteligência, concretar tua areia tornaria tudo mais fácil. É isso que séculos de evolução civilizatória nos mostram: o ideal é tornar tudo mais fácil. Já pensou que incrível chegar perto das marés com um sapato de couro importado sem sujá-lo com esta areia grudenta? Um marco civilizatório, não?

As marés, então, putz que coisa aborrecida. Praia, o teu homem vai perceber que isso é uma violência que deve ser controlada. O vai e vem desse mar fedido diminuindo o seu tamanho e sem avisar. Onde ele vai colocar tanta gente com os seus aparelhos modernos de som tocando no último volume? Onde vai jogar o lixo para ser mastigado pelo manguezal. É preciso dar um fim nisso e você, praia, assistirá tudo passivamente. Eu te odeio por isso.

O amor está no limiar do ódio e também o inspira. O homem que pensa te amar, odeia tudo ao redor, mesmo que inconscientemente. Saia dessa letargia, desse jogo permanente de sedução. Olhe ao redor, não seja prepotente. Tudo está desmoronando, as pessoas estão ficando tristes, mesmo que os teus ares da manhã e o teu sal possam limpar tudo o que há de negativo. Praia, faça alguma coisa!

--

--

Alessandro Padin
padin
Editor for

Escritor, jornalista e professor universitário