Polêmico, o angustiante Vazante transforma a pipoca em cacos de vidro

Alessandro Padin
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3 min readMar 7, 2019

Não é um filme fácil. Se você não estiver em um dia legal, é bem capaz de achar a obra um porre. Deixe, então, para outro dia, mas não deixe de assistir Vazante, da diretora Daniela Thomas. O longa, que estreou em 2017, foi produzido todo em preto e branco e se passa em 1821, em uma fazenda na região dos diamantes, em Minas Gerais, onde uma menina de 12 anos é oferecida em casamento a um senhor de escravos muito mais velho.

Infelizmente, é um filme muito comentado e pouco visto. Tudo isso por conta do polêmico debate ocorrido durante o lançamento em setembro de 2017, no 50º Festival de Cinema de Brasília. A diretora foi acusada, então, de reforçar o status quo do domínio da elite branca sobre os escravos negros, em sua maioria retratados, segundo parte da crítica, de forma linear, sem subjetividades.

A diretora afirmou, na oportunidade, que não teve a intenção de fazer um filme militante e definitivo sobre a questão racial no país. O crítico de cinema Juliano Gomes, da revista Cinética, destacou, no entanto, que invocar uma posição de neutralidade nos tempos atuais é impossível. “Seu filme é político, sim, e está profundamente a serviço do status quo”.

Os desdobramentos da polêmica podem ser vistos aqui, aqui, aqui e aqui.

Por que você deve assistir o filme?

Direto ao ponto: Thomas conseguiu transmitir o Zeitgeist, o espírito do tempo daquele período. A fotografia, o perfil das personagens e o cotidiano modorrento e sufocante do desenrolar da trama revelam a construção de um país que teve muito de brutalidade e desafeto. Os silêncios e as distâncias traduzem um Brasil que só conhecemos por livros e gravuras.

Chamam a atenção os espaços: A casa, sem quase nenhuma mobília, a senzala escura e os desdobramentos que ocorrem nos poucos espaços compartilhados como a mata e o entorno da Casa-Grande, onde se desenha um país miscigenado. Remete ao que o antropólogo Roberto DaMatta chama de gramática de espaços e temporalidades.

Mas o fato é que tempo e espaço precisam, para serem concretizados e sentidos como “coisas”, de um sistema de contrastes. Cada sociedade tem uma gramática de espaços e temporalidades para poder existir como um todo articulado, e isso depende fundamentalmente de atividades que se ordenam também em oposições diferenciadas, permitindo lembranças ou memórias diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização (Roberto DaMatta, antropólogo).

A incomunicabilidade entre escravos e os brancos só é quebrada pelos contrastes da violência e do sexo. O filme não adocica estas relações e reforça a crueldade da escravidão. Um personagem específico, o negro forro Jeremias transformado em espécie de capitão do mato, retrata bem as complexidades dos relacionamentos também entre os africanos.

Em certa passagem da trama, promete ao senhor “suavizar” um dos escravos rebeldes, que tentava, em vão, se comunicar em um dialeto africano que ninguém ao redor, a não ser os membros da sua etnia, entendia. Encontrado morto em meio a plantação (suicídio ou fome?), provocou a fúria de um Jeremias embriagado de aguardente:

Ninguém morre aqui sem eu mandar!

Não há, no filme, um final feliz como em um folhetim. Há só amargura. E é com amargura que devemos olhar esta parte da história, sem a necessidade de recontá-la com filtros ideológicos.

É fundamental encarar tudo isso, mesmo que não seja agradável, tal como a primeira fala que surge no filme em meio a chuva torrencial dos trópicos, aos sons das correntes dos escravos e de canções africanas:

- Quanta disgracera.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MATTa, Roberto da. A Casa & A Rua — Espaço, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1997

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Alessandro Padin
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Escritor, jornalista e professor universitário