Hangzhou — A casa de Jack Ma

Rafael Torres
Pádua
Published in
8 min readJun 14, 2019

Desde o final de maio eu e os amigos e sócios Matheus Goyas, João Duarte e Marcos Moura começamos uma viagem de cerca de 30 dias por diversos países para entrar em contato com diferentes contextos e culturas. Nosso objetivo era abrir a cabeça e conhecer de perto o que tem sido feito no cenário da tecnologia no mundo todo (mais detalhes aqui).

Sem dúvidas a nossa experiência na China tem sido muito especial e, por isso, decidimos compartilhar um pouco do que estamos vendo por aqui. O Matheus Goyas registrou nesse texto um pouco da nossa primeira parada na cidade de Shenzhen e, depois de passar dois dias por lá, pegamos um avião para Shanghai onde passamos a noite para, no dia seguinte, partir para uma agenda extensa e muito rica na cidade de Hangzhou.

A cidade

Hangzhou é a capital e cidade mais populosa da província de Zhejiang com cerca de 10 milhões de habitantes e mais de 20 milhões de habitantes na região metropolitana, formando assim a quarta maior de toda a China.

Localização de Hangzhou

Como todas as principais cidades da China, Hangzhou também é uma cidade super moderna e está se desenvolvendo como um pólo de tecnologia (é a casa do grupo AliBaba e a cidade onde mora o fundador Jack Ma), mas, por ter uma história de mais de 7 mil anos, ela apresenta uma mescla interessante de história com modernidade.

No processo de abertura da China comunista, Hangzhou se tornou uma zona de desenvolvimento econômico e tecnológico em 1993 e acelerou bastante o seu crescimento e desenvolvimento desde então.

Ao contrário de Shenzhen, em Hangzhou gastamos bastante tempo no deslocamento, pegando vários pontos de trânsito muito intenso e caótico. Por causa da agenda corrida, nós não tivemos muito tempo para conhecer a cidade, mas deu pra ver que ela é muito bonita (é uma das pontas do Grand Canal, patrimônio da humanidade pela Unesco), muito grande (como tudo o que vimos na China até agora) e com muita coisa em construção.

WeDoctor

Na parte da manhã, visitamos uma health tech chinesa chamada WeDoctor.

A China tem um sistema de saúde complexo e desgastante para os pacientes, sendo normal passar várias horas na fila dos melhores hospitais para uma consulta que não dura nem 5 minutos (não muito diferente do que vivemos no Brasil).

Para resolver esse problema e ajudar os chineses a acessarem o sistema de saúde com menos desgaste, a empresa foi fundada em 2010 oferecendo uma plataforma de agendamento de consultas online para os hospitais. Ao longo desses anos a WeDoctor desenvolveu uma lista extensa de produtos e serviços atacando (e digitalizando) praticamente todas as etapas da cadeia de valor de healthcare.

Com uma estratégia agressiva de verticalização, atualmente eles oferecerem um plataforma para agendamento de consultas online, prontuário eletrônico para hospitais, consultas e prescrições de remédio online (telemedicina), assistente de diagnóstico para os médicos através de AI, clínicas físicas, soluções para que as empresas se responsabilizem pela primeira consulta de seus funcionários (hardware, software e marketplace de médicos), clínicas móveis para atender a população rural nos lugares mais remotos da China, plataforma de treinamento dos médicos menos experientes e qualificados em contato com os médicos dos principais hospitais, personal health record para os pacientes terem controle dos seus dados de saúde e desde 2018, depois de coletar e enriquecer toneladas de dados de todas as etapas da cadeia, estão entrando no setor farmacêutico e de seguros saúde.

Como já estamos nos acostumando a ver aqui na China, a dimensão dos números impressiona bastante. Ela já levantou mais de U$ 1B num último valuation de mais de U$5B, tem mais de 200 milhões de usuários espalhados por todo o país, cerca de 3.500 funcionários (aproximadamente 50% deles são software engineers), mais de 3200 hospitais parceiros e por aí vai.

O que também tem chamado muita atenção por aqui é o tamanho da ambição das empresas chinesas. Desde a sua fundação a WeDoctor tem buscado integrar verticalmente todo o seu ecossistema de saúde (pacientes, médicos, hospitais, empresas, farmacêuticas, seguradoras e o governo) e tem uma visão bem ousada de assumir a responsabilidade por todo o sistema de saúde da China, dá pra acreditar? E, segundo o CFO que nos recebeu durante a visita, eles acreditam estar bem perto disso!

Estratégia da WeDoctor para se tornar uma HMO completa

Hema Store

Saindo da WeDoctor, passamos pela sede do grupo AliBaba para conhecer e almoçar na Hema Store, um novo conceito de supermercado criado pelo grupo de Jack Ma.

A loja é um supermercado com vários restaurantes e, além disso, também serve como centro de distribuição para compras online e offline. Confuso né?

A China como um todo vive há alguns anos um movimento amplo que é chamado de O2O (online to offline), onde as experiências se misturam até o ponto onde você tem dificuldade de separar o que é online e o que é offline. E a Hema é exatamente isso.

Como tudo na China, a loja também é cheia de QR Codes, onde você pode buscar todas as informações dos produtos, pagar suas contas, entre outros. A medida que você vai escolhendo os produtos que quer comprar, coloca em uma sacola e, ao finalizar a compra, coloca tudo numa pequena esteira que percorre todo o teto da loja até a área de logística. Em menos de 40 minutos as suas compras já estarão dentro da sua casa.

Além de funcionar como um supermercado / centro de distribuição / delivery, na Hema também encontramos restaurantes de diversas especialidades. E aqui acho que vivemos a experiência mais bizarra dentro da loja. Eles tem vários aquários com todo tipo de vida marinha (peixe, lagosta, camarão, tartaruga, caranguejo gigante, enguia, entre vários outros). Se você quiser comer ali mesmo, basta escolher o que deseja e o funcionário da loja "pesca" e já manda direto para a esteira para que o prato seja preparado para você.

Uma das bancas de frutos do mar da loja.

Ah, e como parte de um dos maiores grupos de tecnologia do mundo, é claro que não tem funcionários nos caixas. O checkout é todo automatizado, bem simples e sem ninguém para conferir se você pagou. Como tudo na China a loja tem câmeras para todo lado e, com tecnologia de ponta em reconhecimento facial, eles garantem que ninguém vai sair sem pagar.

Ant Financial

Depois do almoço fomos conhecer a Ant Financial, braço de serviços financeiros do grupo AliBaba.

A empresa foi criada em 2014 (em um spinoff polêmico) a partir do Ali Pay, que surgiu em 2004 como um meio de pagamento para compras no Taobao (principal plataforma de ecommerce do grupo) e evoluiu para se tornar a principal empresa de pagamentos do mundo, atuando em 200 países e transacionando mais do que Visa e Mastercard juntas.

Desde 2011 a China vive um fenômeno interessante de mobile payments. Ao contrário da maioria dos países ocidentais, a população chinesa nunca teve aderência relevante ao cartão de crédito e, com a revolução dos smartphones e a oferta de serviços de pagamento mobile como o AliPay, eles acabaram "pulando" essa etapa, saindo direto dos pagamentos em dinheiro para os pagamentos mobile, através das digital wallets. Na prática, absolutamente todos os estabelecimentos, de grandes lojas até artistas de rua, aceitam pagamentos pelo AliPay e pelo WeChat Pay (digital wallet da grande rival Tencent) e praticamente nenhum aceita cartão de crédito, sendo que muitas vezes eles nem sabem o que é. Basta você mostrar o QR Code da sua digital wallet para que o vendedor o escaneie e o valor da compra é debitado instantaneamente do seu saldo naquela conta. É bem fácil, bem eficiente e já está completamente entranhado na vida cotidiana chinesa.

Apesar de ter surgido como uma empresa de pagamentos e de ter se tornado a maior empresa do mundo no segmento, a visão é que esse não é um negócio isolado, que precisa parar de pé sozinho, com boas margens. Eles enxergam pagamentos como parte de um negócio muito maior e isso conversa diretamente com o momento que estamos vivendo na indústria de pagamentos no Brasil. Vimos o crescimento acelerado de várias empresas com o PagSeguro e Stone e agora estamos vendo o mercado se tornar muito competitivo com as taxas sendo zeradas e as empresas tendo que se tendo que se reinventar para oferecer outros serviços e diminuir a dependência de pagamentos.

Depois de dominar o mundo de pagamentos, a Ant Financial passou a oferecer diversos serviços financeiros, desde investimentos, crédito, uma espécie de consórcio para seguro de saúde e credit scoring, que curiosamente é usado pela embaixada Canadense para dar visto aos chineses, em vez de comprovantes de renda.

Ao longo da visita, fomos conhecendo mais de perto a história da Ant Financial e do grupo AliBaba em paralelo e uma história que me marcou foi a entrada deles no negócio de cloud services. Desde 2009, com o crescimento acelerado do grupo como um todo eles chegaram à conclusão de que nem eles nem as empresas e pessoas que confiavam nos produtos do grupo podiam depender de fornecedores estrangeiros para hospedar seus serviços e informações. Eles guardam na entrada do prédio os últimos servidores da IBM e da EMC que a empresa usou e mostram com orgulho o Ocean Base, servidor próprio que eles desenvolveram que é mais barato e mais eficiente do que os americanos.

Olhando para o futuro, a empresa é hoje a maior proprietária de patentes relacionadas a blockchain no mundo e tem investido muito dinheiro nisso, pois acreditam que muito dos serviços financeiros que temos hoje serão radicalmente impactados pela tecnologia. Ainda pensando em futuro, eles tem uma estratégia agressiva de crescimento internacional em dois formatos diferentes: 1) Aquisição de empresas que possam gerar valor para toda a cadeia deles, sendo principalmente empresas de tecnologia; e 2) Aquisição de participação minoritária em empresas de pagamento em todo o mundo. Eles entendem que pagamentos é uma indústria muito sensível a regulação de cada país, as variáveis de cada cultura e, quando compram participações minoritárias conseguem trazer consumidores e comerciantes para a rede deles, conseguem apoiar o desenvolvimento dessas empresas, mas mantém a operação na mão da empresa local.

Próxima cidade do nosso roteiro: Shanghai!

Se quiser saber mais sobre Shenzhen, a primeira cidade do nosso roteiro:

Shenzhen: o que você PRECISA saber sobre o Silicon Valley asiático!

--

--