Comércio permanece bloqueado pela Prefeitura, mas camelôs trabalham sem qualquer restrição. Foto: Thallys Braga.

Fora das grades da Prefeitura, a vida segue para os camelôs de Campo Grande

Ambulantes competem aglomerados por uma clientela escassa. Prefeitura ainda não sancionou lei que garante renda emergencial.

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8 min readJun 25, 2020

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A quarta-feira amanheceu mais quieta que o normal no centro comercial de Campo Grande, bairro da Zona Oeste carioca. Por volta das 9h da manhã, a rua Coronel Agostinho, endereço de 423 lojas, estava cercada por seguranças armados. Na entrada, os trabalhadores, que chegavam para mais um dia de expediente, se apertavam uns contra os outros para cruzar o único trecho liberado à passagem em uma barreira de grades. Em seguida, a maioria seguia em direção às lojas, que funcionavam com apenas metade das portas abertas. Os que arriscavam fugir da normalidade, se sentavam em bancos públicos para fumar cigarros e atraíam um senhor que, com certa timidez, oferecia exames de vista. “Bom dia, meu amigo. Vai óculos?”. Os possíveis clientes faziam que não. Com exceção do vendedor, todos estavam quietos.

A calmaria era garantida por policiais militares e guardas municipais, que cumprem ordens da Prefeitura do Rio de Janeiro para controlar o fluxo de pessoas no centro comercial. Há pouco mais de um mês, o calçadão se tornou o primeiro trecho da capital fluminense a ser bloqueado parcialmente. Ao passo que lidera os números de óbitos causados pelo coronavírus, Campo Grande também acumula mais denúncias de aglomerações que qualquer outro bairro da cidade. Por isso, apenas lojas de serviços essenciais, como as farmácias, podem funcionar. Ambulantes são proibidos. A julgar pela monotonia do lugar, a restrição estava funcionando. Mas nas ruas transversais ao calçadão, havia barulho suficiente para acreditar que o comércio seguia com normalidade naquele 17 de junho.

Bom dia, chefe. Tô te vendo sem máscara, hein. Comigo é cinco!”, repetia uma camelô, com sua máscara abaixada. Caixas de som de lanchonetes e de lojas de roupas disputavam a atenção de poucos clientes, que àquela altura já perambulavam livremente pelas calçadas. O ar estava impregnado com o cheiro doce de pipoca que um senhor vendia.

Um jovem de vinte e poucos anos, magro, de tamanho diminuto, comia um pacote cheio delas, quando foi abordado por dois guardas municipais. Sem máscara, Matheus começava mais um dia típico do seu trabalho, que desempenha com ou sem medidas de restrição, de segunda a sábado, de 9h às 19h. Os guardas ameaçavam recolher os produtos que o camelô vendia, sem qualquer timidez, próximo às grades de contenção da Prefeitura.

Os ambulantes que descumprirem as restrições e venderem seus produtos em áreas bloqueadas correm o risco de perder a autorização de trabalho, ou de ter suas mercadorias recolhidas, por determinação do prefeito Marcelo Crivella, publicada no início de junho.

A fiscalização é feita através de operações conjuntas da Subsecretaria de Licenciamento, Fiscalização e Controle Urbano, da Secretaria Municipal de Fazenda, da Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP), da Guarda Municipal e da Vigilância Sanitária. Na prática, os seguranças cumprem suas funções apenas dentro das grades de contenção. Fora delas, camelôs de Campo Grande competem por uma clientela escassa, aglomerados em calçadas estreitas, muitos sem máscaras.

Minutos após a abordagem, o jovem voltou a ser expor seus produtos próximo às grades. As capas coloridas para celular balançavam na prateleira com o vento forte da manhã. No momento em que os guardas se distraíram, a voz grossa do menino se juntou ao burburinho incessante do comércio: “Capa ou película, capa ou película. Fone de ouvido, carregador turbo. Vai carregador portátil, senhora?”.

Ganhar na quarta para gastar na quinta

O motivo pelo qual Matheus deixa sua família, num condomínio do Minha Casa Minha Vida, em Santa Cruz, para trabalhar nesta pandemia, é explicado com um tom de desabafo: “Se eu não vender, não ganho nada”. Mesmo preenchendo os requisitos para receber o auxílio emergencial do Governo Federal, nem ele, nem a mãe, haviam visto a cor do dinheiro até 17 de junho. Ativistas de direitos dos trabalhadores informais argumentam que esse é um dos motivos para que a Prefeitura do Rio ofereça assistência financeira para ambulantes. Maria de Lourdes, coordenadora do MUCA (Movimento Unidos dos Camelôs), sugeriu uma alternativa: “A Prefeitura deveria garantir um auxílio equivalente à renda que recebíamos com o trabalho na rua, um valor próximo ao salário mínimo”. Ela reiterou que nem todos têm acesso ao auxílio emergencial e, por isso, não resta opção a não ser o trabalho nas ruas.

Com 46 anos, Maria é pouco conhecida como Lourdes, mas muito pela profissão que exerce há 25 verões. Nas ruas do Centro da Cidade, seu nome é Maria dos Camelôs. No começo desta pandemia, ela percebeu que seria perigoso continuar arriscando a própria saúde para montar sua barraca. Decidiu, então, ficar em casa, onde iniciou uma campanha para ajudar os 1.800 colegas que fazem parte do Movimento Unidos dos Camelôs. Em uma entrevista por telefone, ela explicou, de forma incisiva, o que a motivou a arrecadar 25 mil reais:

“No início da quarentena, a gestão de Marcelo Crivella declarou que doaria 10 mil cestas básicas para os ambulantes legais que estavam sem trabalhar. Porém, nós, os credenciados, somos 14 mil. Cada um tem direito a um auxiliar de serviço. Ou seja: o certo seria 28 mil cestas básicas”, disse, para logo em seguida acrescentar, em tom esclarecedor: “Ainda assim, esses dados são irreais. Muitos dos meus colegas trabalham na rua sem autorização, movimentam a economia da cidade, e também precisam ser assistidos. Diante da demora por ajuda, nos organizamos para atender às famílias que já estavam sentindo as consequências da crise”.

Maria começou a ficar mais aliviada quando firmou um acordo com o Instituto Unibanco e conseguiu suporte financeiro para o projeto. Além dos camelôs que compõem o Movimento, a parceria possibilitou que outros 1.700 recebessem cestas básicas durante três meses. Campo Grande está entre os bairros alcançados. Ainda assim, 2.100 famílias ficaram na fila e não receberam as cestas do MUCA, tampouco as da Prefeitura.

Com esse cenário caótico em mente, e “mensagens desesperadoras” chegando com frequência no celular, Maria protocolou, em 13 de abril, uma denúncia contra a Prefeitura do Rio de Janeiro. Elaborado junto ao Ministério Público, o documento alegava que o Prefeito estava “agindo com descaso e morosidade na distribuição das cestas básicas e faltava uma renda emergencial para suprir a necessidade alimentar dos trabalhadores informais”.

No dia seguinte à publicação do manifesto, os grupos de camelôs no WhatsApp ficaram agitados com a chegada de uma novidade. Na Câmara Municipal do Rio, a bancada do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) havia conseguido aprovar o projeto de lei 1728/2020, que garante uma renda básica emergencial a trabalhadores autônomos, incluindo ambulantes. Na prática, o valor pago pela prefeitura deve ser de um salário mínimo (R$ 1045) enquanto durarem as medidas de isolamento social. Para quem já recebe o auxílio do governo federal, a renda carioca seria um complemento de R$ 445.

O projeto chegou a ser vetado pelo prefeito Marcello Crivella em maio, mas no começo deste mês a Câmara do Rio derrubou o veto. Até agora, no entanto, a prefeitura não regulamentou a lei e, portanto, ninguém recebeu o dinheiro. Enquanto isso, nos grupos de WhatsApp, aumentam os relatos de ambulantes que voltaram às ruas.

Em 4 de junho, quando Crivella autorizou que os trabalhadores informais retomassem as atividades, Maria só conseguia pensar numa coisa: “Ele tá botando a gente na rua para não pagar o nosso dinheiro”.

Se arriscar mais para ganhar menos

A cinquenta e dois passos de distância de Matheus, em uma esquina pouco movimentada, outro camelô desafia os cercos da Guarda Municipal. Carlos*, um homem de 31 anos, faz o que pode para ser notado pelos clientes, que andam às pressas e, raramente, param e compram seus produtos. Sua barraca tem de tudo um pouco: biscoitos amanteigados, esponjas para lavar louças, carregador e fones para celular. A última novidade chegou há pouco mais de três meses: máscaras de proteção fácil, de diferentes cores, estampas e tamanhos — estas, aliás, se tornaram a principal concorrente das capas para celulares nos camelódromos de Campo Grande.

A venda de todos esses produtos, que o Carlos trata como especiarias, borrifando álcool a cada intervalo de trinta minutos, decaiu por causa da pandemia. Seus principais clientes, os lojistas, que antes sassaricavam pela calçada durante o horário de almoço, agora estão em casa, seguindo as recomendações das autoridades de saúde. Ainda assim, parte do seu lucro será destinado à taxa que a Prefeitura cobra para manter a licença dos ambulantes, o que lhe causa certa irritação.

Para trabalhar nas ruas, os ambulantes legais precisam pagar a chamada Taxa de Uso de Área Pública (TUAP), um valor anual, que varia de acordo com o tipo de serviço — quiosques e bancas de jornais pagam taxas maiores que os ambulantes, por exemplo. Se não pagar a autorização até o próximo dia 30, Carlos corre o risco de perder sua licença de trabalho, o que o obrigaria a ficar em casa, ou trabalhar de forma irregular.

Quando começaram a acontecer as primeiras mortes por Covid-19, Carlos considerou deixar as ruas para preservar a saúde de sua família. Chegou a solicitar o auxílio emergencial, mas, por uma irregularidade no CPF, não foi aprovado. Por esse motivo, teme não receber também a Renda Básica Carioca, caso seja sancionada pelo Marcelo Crivella. Porém, de qualquer forma, deixar de trabalhar não está nos seus planos, mesmo que se assuste com o avanço da doença no bairro, explica.

Naquela quarta-feira, Campo Grande já contabilizava 219 óbitos, e figurava o topo no ranking do Painel Rio COVID-19. Essas informações foram ditas por ele durante nossa conversa, o que confirmei mais tarde. Por temer a grandiosidade dos números, ele adotou medidas de proteção recomendadas pelas autoridades de saúde. Durante os trinta minutos que o acompanhei, se lembrou de usar o álcool três vezes. Sem saber, ele cumpre os protocolos impostas pela Prefeitura do Rio, mas não sabe do que se trata o termo “regras de ouro”. Carlos disse que não presenciou nenhuma ação de conscientização desde o início desta pandemia.

Clientes começam a circular nas ruas ao redor do calçadão. Foto: Thallys Braga.

Em nota, a Guarda Municipal afirmou que “durante o patrulhamento de rotina, os agentes orientam ambulantes, comerciantes e a população em geral para evitar aglomerações e respeitar a distância mínima de 1,5 metro. Com apoio de carros de som, os agentes realizam ainda ações de conscientização nos centros comerciais, além de controlar os bloqueios parciais implantados nos bairros de Bangu, Campo Grande e Pavuna. A Guarda Municipal também verifica denúncias relativas a aglomerações por meio da Central 1746, que funciona 24 horas”.

Sobre a livre circulação dos camelôs nos arredores do calçadão, a Secretaria Municipal da Fazenda explicou que, “no último mês, 166 ambulantes não autorizados foram orientados a desocupar as ruas de Campo Grande. O comércio ambulante do bairro também registrou seis autos de infração, 12 barracas removidas e um quiosque fechado no período”.

Próximo às 11h da manhã, a pochete em que Matheus guarda seu dinheiro já estava razoavelmente cheia. A quarta-feira estava sendo mais produtiva que a terça, me contava, quando foi chamado por um Guarda Municipal. Seu rosto imediatamente ganhou um tom de seriedade e, um pouco sem jeito, o menino caminhou em direção à grade da Prefeitura. Conversou por um instante com o segurança e, na volta, levou aos colegas a notícia que recebera: a viatura da Guarda chegaria a qualquer instante e, daquela vez, seriam mais rígidos.

O jovem deixou de lado a nossa conversa, organizou seus produtos e partiu, sem se despedir, em direção a uma ruela mais segura. À medida que virava a esquina, sua clientela diminuía, e a concorrência de Carlos aumentava; agora, seria mais um berrar a frase que mais se ouve nos arredores de Campo Grande, com ou sem pandemia: “Capa ou película, capa ou película. Fone de ouvido ou carregador turbo, senhora?”.

No calçadão, dentro das grades, tudo seguia em seu devido lugar.

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