Colagem: Pedro Henrique Cabo.

Tem uma pedra no caminho

Desigualdade e exclusão à sombra da educação à distância

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8 min readMay 21, 2020

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Escreveram Gabriele Freitas, Lucas de Andrade e Pedro Henrique Cabo.

Suponha uma prova de atletismo em que os competidores estejam em lugares diferentes, sem um ponto de partida em comum. Agora, imagine que essa mesma prova seja disputada entre dois grupos de atletas: o primeiro, com toda a estrutura necessária para uma possível vitória, e o segundo, cujo desempenho pode ser comprometido pela falta de recursos. Possivelmente, o comitê organizador dessa prova sequer cogitaria realizá-la sob essas condições desiguais.

Em decisão quase unânime, por 75 votos a 1, o Senado Federal decidiu, na última terça-feira 19 de maio, pelo adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Um dia após a votação, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) anunciou o adiamento da prova por um período de 30 a 60 dias em relação ao que foi previsto nos editais. No cronograma anterior, o modelo impresso seria aplicado nos dias 1° e 8 de novembro e, a versão digital, nos dias 22 e 29 de novembro. Entretanto, o adiamento não encerra o debate acerca das condições impostas pela organização para a realização do exame. Educadores afirmam que os critérios utilizados não levam em conta a realidade de milhões de brasileiros.

Em duas ocasiões diferentes, o ministro da educação Abraham Weintraub afirmou que o Enem se trata de uma competição e sua função não seria corrigir injustiças sociais, mas selecionar os melhores. Soma-se às polêmicas declarações do ministro a veiculação do vídeo “Enem 2020: O Brasil não pode parar!”, divulgado no dia 4 de maio pelo Ministério da Educação (MEC). Na peça publicitária, foram reproduzidas falas como: “Estude, de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda à distância dos professores!”. O conteúdo causou indignação entre políticos, ativistas, professores e estudantes que ressaltaram a dificuldade de estudar remotamente por causa da pandemia.

Alunos chegam para fazer a prova do Enem em Brasília Foto: Jorge William / Agência O Globo

O legado da desigualdade

Microdados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) mostram que, no Enem 2018, 32% dos inscritos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro declararam não ter computador em casa. Destes, 75% vêm de escola pública e 68% são negros. Esses dados também evidenciam a desigualdade entre Niterói, cidade com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, e Japeri, que se encontra entre as dez piores.

O adiamento do exame não diminui as disparidades apresentadas porque não atenua as diferenças historicamente existentes. Professora da rede municipal de Duque de Caxias e ativista da educação, Rose Cipriano ressalta que “é importante lembrar que o Enem sempre foi um processo excludente. (O modelo) considera que um estudante do Colégio Santo Inácio, de classe média alta, com acesso aos bens sociais e culturais, está no mesmo patamar que os estudantes do Parque das Missões ou da Mangueira, que lidam frequentemente com aulas suspensas devido aos conflitos nestas áreas”.

“Eu diria que é o mesmo que colocar uma Ferrari para competir com um carrinho puxado a mão”.

Charge Enem 2020 de Matheus Ribs

Para a professora, o ensino virtual não alcança a qualidade das aulas presenciais. Ela relata que, na Baixada, muitos estudantes não têm acesso a internet e que, fora do período da pandemia, já utilizavam a rede de lan houses ou da associação de moradores. “Acompanho vários casos que as escolas e pré-vestibulares comunitários auxiliam na inscrição pela internet. Muitas famílias só têm um telefone para uso coletivo e não falamos de pacote de dados. Falamos de pacotes para acesso às redes sociais. Estamos falando de celulares que não comportam muitos aplicativos”.

A eficiência do estudo remoto não depende apenas do acesso a computadores e celulares. Muitos alunos da rede estadual também relatam não terem pacote de dados de internet. Em abril, o secretário estadual de Educação, Pedro Fernandes, anunciou que mais de 750 mil chips foram comprados para que estudantes e profissionais da educação tenham acesso ao conteúdo online. Desde que as medidas de distanciamento social foram implementadas, a rede estadual utiliza a plataforma Google Classroom para manter as aulas via EaD, mas Cipriano informa que os “chips [prometidos] aos estudantes não chegaram até hoje. E, mesmo chegando, o acesso à educação vai restringir as aulas pela tela de smartphones”.

A professora prossegue sua crítica à educação à distância (EaD). Para Rose Cipriano, a aprendizagem não acontece simplesmente quando o aluno liga uma tela e assiste a transmissão de um determinado conteúdo: “A educação é um processo que acontece a partir de trocas e interações. É você olhar para o aluno e, embora ele diga que entendeu, perceber que toda a sua expressão, todo o corpo diz o contrário”. Ela ainda relata que os profissionais da educação são orientados a simplesmente ligarem suas câmeras e realizarem aulas online. Muitas vezes, os educadores se tornam alvo de situações como bullying virtual. Ela conclui que eles não tiveram nenhuma formação para esse tipo de plataforma: “Nós somos professores e não comunicadores digitais”.

Infográfico: data_labe/Reprodução.

Com um histórico de trabalho com alunos que necessitam de educação especial, Rose alerta que o ensino à distância não oferece, na maior parte dos casos, as adaptações necessárias para garantir a aprendizagem e o desenvolvimento desses estudantes de forma satisfatória. “O ensino remoto não leva em consideração a diversidade e as variadas formas como a aprendizagem pode acontecer”, declara. Embora tenha aprimorado os recursos de acessibilidade às pessoas com deficiência edição após edição, o INEP não estendeu os direitos inclusivos a quem desejasse optar pela versão digital.

Para a edição deste ano, o MEC havia anunciado como novidade a implementação do ENEM Digital. As 101.100 vagas disponíveis para a aplicação do formato foram preenchidas antes mesmo do adiamento da prova anunciado pelo INEP. No estado do Rio de Janeiro, além da capital, seis municípios receberão o novo modelo: Duque de Caxias, Niterói, Nova Iguaçu, Petrópolis, São Gonçalo e Volta Redonda.

Raffaela Lupetina, doutora em educação e pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação, Diversidade e Inclusão (LEPEDI), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), afirma, em nota, que “o cancelamento do Enem 2020 seria a alternativa mais viável para evitar a realização de um processo seletivo excludente e desigual” e repudia a ausência de acessibilidade do Enem Digital 2020.

No dia 30 de março, o INEP informou no site:

“Não haverá recursos de acessibilidade, tais como: prova em braile, prova ledor tradutor intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), videoprova em libras, prova com letra ampliada ou superampliada, uso de leitor de tela, guia-intérprete, auxilio para leitura, auxilio para transcrição, leitura labial, tempo adicional, sala de fácil acesso, mobiliário acessível). Os recursos de acessibilidade serão assegurados no Enem impresso”. No entendimento do LEPEDI, a nova versão “também pode e deve ser realizada de forma acessível” para que “os candidatos com deficiência possam escolher participar do Enem Digital ou do Enem Impresso”.

4 de fevereiro, segundo dia de aula no Pré-Vestibular Comunitário São José. Foto: Arquivo Pessoal.

Tem uma pedra no meio do caminho

Cleiton Xagas, professor do Pré-Vestibular Comunitário São José em Campo Grande, Zona Oeste do Rio, ressalta as dificuldades do ensino remoto: “Tanto nós professores não fomos preparados para dar boas aulas à distância nem os alunos estão acostumados e preparados para estudar a partir dessa modalidade de ensino”.
Segundo dados do Instituto Península, 83% dos professores não se sentem preparados para dar aula online e 90% nunca experimentou o ensino remoto.

O acesso precário à internet dificulta a comunicação entre professores e alunos, porém eles acharam uma alternativa para se adaptar a baixa capacidade de banda larga. O professor criou um grupo no WhatsApp com os alunos onde são compartilhados áudios e imagens dos conteúdos que seriam ministrados presencialmente. “Todos os alunos do grupo preferiram os áudios porque o acesso a vídeos é complicado pela internet. Então, a gente vê que um outro desafio em manter as aulas à distância durante a pandemia são as desigualdades sociais porque não são todos que têm condições de ter uma boa internet. Com relação às matérias exatas, a situação fica pior pois os professores precisam demonstrar o cálculo”, explica.

A desmotivação também foi um ponto ressaltado pelo professor, que sentiu seus alunos duvidarem ainda mais sobre sua capacidade. Porém, os professores e coordenadores do pré-vestibular acharam uma alternativa de tentar auxiliar seus alunos: “Nós criamos uma metodologia de apadrinhamento onde cada coordenador fica responsável por cuidar, não só com relação aos estudos, mas também às questões sentimental e psicológica, de grupos de alunos individualmente. Então, temos toda uma rede para tentar ajudá-los de alguma forma. Essa estratégia está funcionando, não atingindo a todos como gostaríamos, mas de uma certa forma está dando certo”.

Equipe do Pré-Enem da UFRRJ faz videoconferência via Plataforma RNP. Foto: Arquivo Pessoal.

A cerca de 30 quilômetros do Pré-Vestibular Comunitário São José, uma iniciativa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), no município de Seropédica, atende a moradores da cidade e de toda a região da Baixada Fluminense: o “Pré-Enem da UFRRJ”. O programa está presente nos três polos da universidade: Seropédica, com capacidade para 150 alunos; Nova Iguaçu, 150; Três Rios, 100. Desde 2006, mais de 3.500 alunos já foram contemplados com as vagas oferecidas. Neste ano, 1.383 pessoas se inscreveram somente para o curso localizado em Seropédica. Dos 150 classificados, 147 declararam morar no município.

Entretanto, “o resultado final da seleção dos novos vestibulandos e a realização da matrícula por eles foram adiados. Assim como o calendário de seleção dos novos tutores de disciplinas e demais bolsistas que constituem a equipe pedagógica nos três campi”, comenta Eriknatan Medeiros, tutor-supervisor e coordenador da área de ciências humanas do pré-vestibular. A equipe, porém, mantém o ritmo de trabalho em home office: “Tanto os tutores de disciplinas quanto o apoio pedagógico estão divididos em comissões. Dessa forma, trabalhamos com criação de conteúdo em nossas redes sociais; publicação dos aprovados em anos anteriores com uma arte exclusiva; melhoramento das apostilas; produção de vídeos para o canal no YouTube”.

Mas todo o curso se mobiliza para amparar os estudantes mesmo após o ENEM ser adiado: “Embora saibamos que muitos dos nossos vestibulandos não têm acesso a internet, sabemos que precisamos fazer o mínimo para aqueles que têm”, esclarece. O e-mail e as caixas de mensagens do curso nas redes sociais foram abertos para tirar dúvidas de alunos e auxiliá-los com apoio pedagógico. Nas próximas semanas, vídeo-aulas serão postadas no canal do Pré-ENEM no YouTube e apostilas elaboradas serão catalogadas para estarem à disposição dos alunos posteriormente. Até agosto, a equipe promete finalizar uma plataforma Moodle, com suporte para a transmissão de aulas em tempo real.

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Um coletivo de jovens da Baixada e da ZO em busca de boas histórias.