Pintura: Diogo Santos Bessa.

Doutora, substantivo feminino

A trajetória de Danieli Balbi, a primeira doutora transgênero da UFRJ

pagdezenove
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8 min readJun 1, 2020

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Escreveram Fábia S Oliveira e Thallys Braga.

O dia começou mais cedo que o normal naquele apartamento de Santa Teresa. Ansiosa, a inquilina — uma moça negra de 31 anos, alta, de cabelos trançados — levantou antes de o despertador tocar e correu à janela para verificar como estava o tempo. Do lado de fora, as ruas íngremes e sinuosas do tradicional bairro carioca brilhavam sob a luz do sol.

Fazia 29 graus.

Engoliu uma xícara de café, bateu o portão de casa e se apressou ao mercado para comprar os alimentos e bebidas que serviria mais tarde em um coquetel. No caminho, percebeu que aquele seria um dia agitado. A todo tempo alguém lhe chamava e interrompia seu fluxo de pensamentos. Na volta para casa, mesmo que tentasse apressar os passos, continuavam falando e insistindo por respostas. Parou. Tentando equilibrar as bolsas pesadas nos braços, pegou o aparelho celular, na esperança de acalmar a euforia de familiares e amigos. “Vou me arrumar e pegar um táxi. Nos encontramos às 14h na Faculdade de Letras”, digitou para o melhor amigo, no começo da tarde de sexta-feira, 9 de agosto.

Danieli Christóvão Balbi chegou pontualmente ao prédio da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi recebida pela mãe e a madrinha, que aguardavam animadas a cerimônia que seria comandada pela moça. Depois de quatro anos de trabalho, chegara a hora dela defender sua tese de doutorado sobre letras, política e cultura. No burburinho incessante do auditório, Balbi deu início à apresentação, que duraria 20 minutos. A cerimônia terminou com os elogios da banca examinadora e se estendeu até à Lapa, em uma noite regada à samba e cerveja. Os amigos e a família estavam em êxtase. Naquela tarde quente de inverno, assistiram a UFRJ formar sua primeira doutora transgênero.

A primeira vez que Danieli entrou no prédio acinzentado da Faculdade de Letras foi em 2007, depois de ser aprovada no curso de Português e Literatura. Quando a notícia da aprovação chegou ao conjugado em que morava no Engenho da Rainha, Zona Norte carioca, a mãe e as tias não ficaram surpresas. Afinal, assistiram a menina crescer dentro das bibliotecas da escola. Durante a infância, Balbi passava parte dos seus dias explorando estantes e folheando clássicos da literatura brasileira. Em casa, tagarelava sobre o desejo de escrever. Por outro lado, as chefes da casa se sentiram aliviadas quando a menina conquistou a cadeira na Universidade. “Para elas, mulheres negras, da periferia e com poucos recursos, aquilo significava a garantia de um futuro melhor”, conta Balbi.

Além de apresentar os livros, o colégio também antecipou os desafios que a jovem encontraria na faculdade. Durante o ensino médio, os seguranças e inspetores tentavam impedir que ela usasse o banheiro feminino da escola. Mais frequente, a professora de matemática insistia em chamá-la por seu nome de registro, mesmo com a menina se auto-nomeando Danieli. Mais tarde, aos 17 anos, precisou encarar os olhares de alunos que não estavam acostumados com uma jovem transgênero nos corredores da UFRJ.

Foi no movimento estudantil que Balbi conquistou espaço de expressão e segurança. Entrou em todos que podia, protestou por direitos e virou uma figura conhecida na Faculdade de Letras. “Lá dentro, eu me tornei inquestionavelmente A Dani”, conta, colocando ênfase na vogal para exemplificar o quanto era respeitada.

Quando não fala sobre os assuntos que lhe afligem, Balbi é brincalhona, ri a toa e arranja espaços para divagar sobre a vida. Sua voz é genuinamente doce e simpática. Fala muito, responde às perguntas com detalhes minuciosos, mas sempre arranja um jeito de sintetizar as ideias no fim de cada frase para se fazer compreendida.

Ainda que tenha se juntado aos coletivos com a intenção de tornar o espaço universitário mais plural, ela confessa que, até hoje, busca descobrir como realizará o objetivo. Quando a Lei Nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas, entrou em vigor em 2012, Balbi viu os corredores da UFRJ ganharem mais cor. A presença de estudantes pretos, pardos e indígenas vindos de escolas públicas aumentou 39% nas instituições federais. Foi nessa época que o ensino superior brasileiro começou a ser associado à diversidade pelas boas e más línguas. Porém, quando se trata de pessoas trans e travestis, Balbi continua sendo uma exceção nos corredores. Apenas 0,2% dos alunos de Instituições Federais são transgênero, segundo a Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior).

“Na maioria das vezes, devido ao preconceito, as pessoas trans sofrem rejeição da família e são forçadas a abandonar a escola sem terminar os estudos.”, escreve Jaqueline Gomes de Jesus, psicóloga, escritora, ativista e primeira doutora da UnB (Universidade de Brasília). Quando ultrapassam os limites da escola e chegam à graduação, o preconceito e a intolerância de colegas e até de professores obrigam trans e travestis a abandonarem o sonho do diploma. “(Por causa disso), enfrentam grandes dificuldades de inserção no mercado de trabalho, entre outras iniquidades, que as tornam altamente vulneráveis, nos níveis social e pessoal”, explica Gomes de Jesus.

Em 2018, o ensino superior brasileiro começou a criar caminhos para mudar esse cenário. No mês de março, a UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) foi pioneira ao criar cotas para transgêneros e travestis. Depois, houve um crescimento de programas de inclusão em todo o país, e criação de políticas para garantir que o grupo permanecesse estudando. Outras dez instituições, incluindo a UFRJ, aderiram ao sistema de cotas. Nos coletivos LGBTs, criou-se a sensação de que 2018 era o início de um futuro promissor, onde homens e mulheres trans estariam mais presentes na produção científica brasileira e nos corredores das universidades. Parecia que o ensino superior estava se articulando para compensar anos de exclusão e negligência através da educação de qualidade.

Só que não. Em agosto de 2019, no Ceará, a UNILAB (Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira) tentou criar um vestibular específico para o grupo, mas foi impedida. 120 vagas seriam preenchidas por pessoas trans e travestis em 19 cursos de graduação, se o Ministério da Educação não interviesse no processo seletivo. Pressionado pela bancada evangélica, o governo federal suspendeu a prova com a justificativa de que “a Lei de Cotas não prevê a reserva de vagas para transgêneros e intersexuais”. Depois da anulação do exame, anunciada pelo presidente Jair Bolsonaro no Twitter, nenhuma outra instituição federal criou políticas de acolhimento a essas pessoas.

Um dos únicos direitos que continuam sendo garantidos a alunos trans pelo Ministério da Educação é o uso do nome social no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). A permissão só foi concedida depois que participantes denunciaram os constrangimentos que sofreram na realização das provas de 2013. Na prática, a mudança garantiu que estudantes trans e travestis pudessem ser chamados da forma que preferem nos dias de realização do exame, e não pelo nome que consta no registro de nascimento. A cada ano, o número de solicitações para o atendimento personalizado cresce. Em 2019, 2.068 alunos puderam assinar os nomes com os quais se identificam nas provas do vestibular. Para jovens como o Pedro*, de 17 anos, ser chamado no masculino é um sonho tão grande quanto uma vaga na Universidade.

Muito antes de pensar em ser engenheiro, Pedro adotou esse nome porque era o que mais combinava com sua identidade. A família ainda não sabe, mas ele é um menino e sonha alto, sem tirar os pés do chão. Em casa, estuda para a próxima edição do ENEM porque quer trabalhar com tecnologia, inovação e robôs, e também conhecer pessoas parecidas com ele. Na Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste onde mora, ser negro significa receber olhares ameaçadores e ser seguido em mercados. Em casa, se assumir trans é um perigo para a estabilidade emocional da família. Por isso, ingressar na Universidade representa “a entrada em um novo mundo, com pessoas diferentes, mas parecidas comigo”, desabafa.

Buscar um lugar para se expressar com segurança e poder realizar seus objetivos profissionais, para Pedro, é coisa de gente corajosa como as que ele segue nas redes sociais. O menino conta com entusiasmo que se inspira em pessoas trans e negras que fazem o que gostam e provam que “podem chegar a qualquer lugar, até aos mais alto níveis”. Na academia, chegar ao topo significa ser doutora e professora — ambos substantivos femininos.

Dezenove quilômetros separam o Fundão, onde Danieli Balbi se formou, do campus da Praia Vermelha, onde a moça se tornou a primeira professora transgênero da UFRJ. No mesmo agosto de 2019, assumiu uma disciplina na Escola de Comunicação Social (ECO) da instituição. “Eu só mudei a cadeira de lugar”, brinca, para logo em seguida explicar que saiu da posição de aluna para ensinar, com o quadro negro de fundo.

Em suas aulas, Balbi não segue o padrão imposto pela academia para que pessoas LGBTs falem apenas sobre questões ligadas a gênero. Leciona na matéria Comunicação e Realidade, que não tem como foco a transexualidade. Acha importante, entretanto, que os alunos conheçam sua história para que valorizem a pluralidade da Universidade. Em seu primeiro dia como professora, contou a eles sobre seu processo de transição e a trajetória até se tornar uma pioneira na ECO. A reação, conta, foi uma surpresa positiva. “As turmas são diferentes das que eu estudei. São mais acolhedoras, dispostas às diferenças e íntimas da diversidade”, diz.

Apesar de ensinar há anos — antes da ECO, ela deu aulas para turmas de Ensino Médio e foi monitora –, a professora confessa não saber como descobriu sua vocação. Quando se trata da dramaturgia brasileira, sua maior paixão, ela tem uma desconfiança. Do portão para dentro de sua casa, a menina era uma fã fiel das telenovelas brasileiras. Brincava de atuar nas ruas do Engenho da Rainha e já arriscava escrever roteiros de peças teatrais junto às amigas. Levou as ideias para a Faculdade de Letras, trabalhou com curta-metragens, e, mais tarde, se tornou doutora no assunto.

Quando, no começo de maio, perguntei à professora qual é o maior ensinamento que tirou das leituras dramaturgas, ela se calou por segundos antes de responder, como se nunca tivesse pensado em como foi influenciada por seus livros. “Gosto muito de uma frase do Vianinha sobre agarrar nossas tragédias na unha e encará-las de frente”, disse, fazendo referência ao ator e diretor de teatro e televisão Oduvaldo Vianna Filho. Depois, se estendeu por três minutos e divagou entre as obras e os compromissos sociais das suas peças de teatro favoritas.

Balbi adora falar sobre transexualidade e contar suas experiências, deixa isso claro, mas também quer ser ouvida sobre seus trabalhos. Sua voz ganha um tom de sorriso todas as vezes que fala sobre a sala de aula, onde tem passado maior parte dos seus dias. Apesar de ter entrado para a história da UFRJ, essa nunca fui sua intenção e nem será a linha de chegada. Quer continuar estudando o que lhe desperta curiosidade.

Enquanto se dividia entre as aulas na Escola de Comunicação e a defesa do doutorado, Danieli também se preparava para a próxima etapa da sua carreira acadêmica. Nesse ano, se tornou caloura do curso de Economia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). “É isso, eu posso ser professora, doutora, estudante, economista. Olha só que coisa doida?”, disse, sorrindo.

Danieli Balbi momentos antes de se tornar a primeira doutora trans da UFRJ. Foto: Arquivo Pessoal

*Pedro é um nome fictício. Ele foi criado para preservar a identidade do entrevistado.

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