A importância de atuar pela própria comunidade, segundo articuladores da Baixada e do Complexo do Alemão
Adriano de Araújo e Camila Moradia contam como a sociedade e o poder público se comportam durante a pandemia
Escreveram Lucas de Andrade e Vivian Bonaço
Movidos pelas causas sociais em suas respectivas trajetórias, Adriano de Araújo e Camila Santos se mobilizaram para fazer a diferença.
Adriano de Araújo trabalha como coordenador-executivo do Fórum Grita Baixada, uma “coalização de organizações e pessoas da sociedade civil articuladas em prol de iniciativas voltadas aos direitos humanos e a segurança pública, tendo na Baixada Fluminense seu olhar e seu território de ação”. Com o avanço da pandemia, o Fórum se sensibilizou com a vulnerabilidade social do momento e decidiu organizar um catálogo que mapeia e reúne informações sobre ações solidárias em toda a Baixada Fluminense.
Camila Moradia, como prefere ser chamada Camila Santos, “mulher negra, mãe e favelada”, atua como coordenadora do Mulheres em Ação no Alemão (MEAA) e ativista habitacional no Complexo do Alemão. Com a disseminação da Covid-19 no Brasil, a ativista percebeu a necessidade de criar um projeto para suprir as necessidades dos moradores das favelas. Junto com as instituições Mulheres em Ação no Alemão, Coletivo Papo Reto e Voz das Comunidades, criou o Gabinete de Crise do Complexo do Alemão. Nele, conscientizam a população sobre os riscos e cuidados com o vírus, além de receber alimentos e kits de higiene para distribuição na localidade.
Convidamos os dois para uma entrevista onde nos contam um pouco mais sobre seus trabalhos, a realidade social das regiões onde atuam e suas reflexões de como a sociedade e o poder público se comportam durante a pandemia.
Pergunta: Em todos esses anos, quais demandas em seu local de atuação você considera mais urgentes? Essas mesmas demandas foram consequentemente mais agravadas pela pandemia?
Adriano de Araújo: A Baixada Fluminense é um amplo território com diversos municípios. Todos eles possuem problemas sociais comuns como a ocupação do solo, o saneamento e o acesso regular a água potável, a coleta regular de lixo, uma economia local que não consegue fixar seus moradores (cidades-dormitório), a ausência de políticas públicas que apoiem o protagonismo da juventude periférica, a precariedade dos equipamentos de saúde pública e a violência em suas diversas matizes.
Na atualidade, a Baixada Fluminense apresenta, em média, o dobro do número de homicídios por mil habitantes em relação a capital. A Covid-19 é mais uma expressão dessa violência de Estado. Então, para as periferias, é a continuidade agravada da forma como o Estado se apresenta nesses territórios periféricos: um Estado mortal, racista e genocida.
Camila Moradia: Saneamento básico, habitação e saúde. Na realidade, não existem políticas públicas pensadas de acordo com a necessidade das favelas. Então, tudo por aqui é demanda, mas essas foram as que mais se agravaram com a pandemia.
Pergunta: Qual a importância do trabalho que vocês oferecem e como eles impactam a população mais pobre, que não tem suas necessidades supridas apenas com ações do governo?
Adriano de Araújo: O Fórum Grita Baixada tem a missão de contribuir para a articulação das forças vivas da Baixada Fluminense, apoiar a mobilização e a incidência política que possam, juntas, interferir na melhoria das condições de vida da população mais pobre. Apesar de dialogarmos com temas como saúde, educação pública, mobilidade e cultura, é na temática da segurança pública que temos nos retido, pois entendemos que o direito à vida é o mais básico direito.
Uma das principais lutas práticas do FGB hoje é apoiar mães e familiares de vítimas da violência de Estado, seja no apoio a atendimentos psicossociais, seja na luta por políticas públicas municipais, estaduais e federais de justiça como o enfrentamento ao racismo e à violência de Estado e o apoio ao protagonismo da juventude periférica.
Camila Moradia: O trabalho que realizamos é feito de acordo com a necessidade das favelas. Nós somos todos moradores. Nós vivemos essa realidade. Não dá para pedir que o morador lave a mão se não tem água.
Nosso trabalho é pressionar o poder público e também criar uma alternativa imediata. Através das redes sociais conseguimos água, sabão e álcool. Entregamos ao morador imediatamente e ainda conseguimos fazer a Cedae ir até o local resolver o problema (da falta de abastecimento).
Pergunta: Como vocês têm realizado o mapeamento e o monitoramento de iniciativas solidárias em apoio a famílias atingidas pela pandemia do coronavírus? Quais critérios são levados em consideração para esse acompanhamento? Como se mantém os contatos com organizadores dessas campanhas?
Adriano de Araújo: Começamos a observar uma grande quantidade de postagens nas redes sociais solicitando doações de alimentos e materiais de limpeza e higiene para o apoio às ações de solidariedade a famílias vulneráveis da Baixada. Optamos por reunir essas ações em um catálogo. Organizamos as informações por cidades e depois por bairros na perspectiva de que alguém, que queira contribuir com as organizações, possa identificar facilmente as mais próximas.
Para facilitar a reunião de informações, criamos e disponibilizamos um formulário online onde qualquer um pode inserir os dados relativos às ações desenvolvidas. De tempos em tempos, atualizamos o catálogo, sistematizamos as informações que constam no formulário online e publicamos uma nova edição revista e atualizada.
Entendemos que num momento como esse, com famílias passando fome e sem recursos, onde tudo é urgente, não nos caberia criar critérios exigentes para que as organizações pudessem registrar as ações. Nos preocupamos em solicitar o endereço da organização e meios de comunicação e informação como sites, páginas de Facebook, telefones, nome do responsável (pela ação). Dados que possam facilitar, por parte dos doadores, a verificação do funcionamento da organização e da iniciativa.
Camila Moradia: O gabinete de crise é formado por três instituições: Mulheres em Ação no Alemão (MEAA), o Coletivo Papo Reto e o Voz das Comunidades. Somos moradores e nossas instituições já realizam algum trabalho dentro da comunidade, o que nos facilita. Nós já temos identificadas as localidades mais críticas. Muitas famílias dessas áreas já são acompanhadas por nós mesmo antes da pandemia. Essas famílias foram priorizadas num primeiro momento. Mas, nessa fase, nós entendemos que todos precisam. Vamos de casa em casa e entregamos a ajuda. O contato com os organizadores é feito através das redes sociais.
Pergunta: Em algum momento os trabalhos de vocês se equivalem ao que deveria ser desempenhado por autoridades na área de assistência social? E qual seria a principal diferença?
Adriano de Araújo: O trabalho permanente do Fórum Grita Baixada em nada se assemelha ao trabalho da área da assistência social, seja das organizações caritativas, seja dos governos. Nossa ótica é de um ator externo a ótica governamental. O Estado, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, é por nós problematizado e tensionado. Não temos o olhar da assistência aos “desassistidos” porque enxergamos no povo organizado e mobilizado a força da transformação da sociedade.
A crítica da violência ou da desigualdade é a crítica ao Estado e ao processo de dominação de um grupo às custas da exploração de uma grande maioria. Machismo, racismo, feminicídio, LGBTfobia, hospitais sucateados, violência nas periferias e a precarização do trabalho são faces desse estado brasileiro que foi sendo construído ao longo dos séculos.
Entretanto, com a gravidade da COVID — 19, representada pela fome de famílias inteiras, desemprego e desalento, nos vimos na necessidade de humanamente nos colocarmos a serviço, junto com tantas outras organizações da Baixada.
Camila Moradia: A todo momento. Não temos no gabinete ninguém formado em Serviço Social, mas a população recorre a nós sempre. Além de providenciar alimentos, remédios, insumos e água, nós ainda temos que nos informar sobre Bolsa Família, aluguel social, auxílio emergencial, cartão-alimentação das escolas. A principal diferença é que eles têm a caneta. Eles são — ou deveriam ser — as pessoas ou o braço preparado para isso. Nós fazemos porque conhecemos a realidade dos nossos. Se não fizermos, ninguém mais vai fazer.
Pergunta: Quais políticas públicas integram os jovens à cidadania hoje nos municípios? A grande maioria deles está à frente de coletivos que se organizaram para ajudar os mais pobres durante a pandemia. Como “recompensá-los”?
Adriano de Araújo: A política pública que a juventude da periferia conhece é a da violência do Estado.
A política pública que poderia integrar com sucesso os jovens seria a cultura, o esporte, as artes e o lazer. A educação e o trabalho mereceriam atenção especial para não reproduzirem uma lógica meramente produtivista. Mas, a juventude da periferia, embora tenha muitos traços em comum, é também diversificada. Questões raciais e de gênero precisam ser consideradas. Então, é preciso em primeiro lugar ouvir a juventude e não fazer por ela. A recompensa é, na verdade, devido ao fato de se perceber útil num momento tão difícil como esse. Essa é a recompensa. É de ordem subjetiva. Não há como quantificar a felicidade ao perceber que uma família desesperada pela fome encontrou acalanto e esperança na organização popular. Os governos estão muito atrás disso. Ao contrário, só vêm produzindo mais dor e sofrimento.
Camila Moradia: Dentro do Alemão não vejo nenhuma. Em muitas favelas também não vejo. Os jovens que estão à frente dessas mobilizações são seres que entenderam em algum momento da vida que nós podemos e que teríamos que fazer alguma coisa por nós mesmos.
Eu não acredito que eles — e me coloco nesse grupo — busquem recompensa. Quando conseguimos uma solução já estamos sendo recompensados.