Colagem: Pedro Henrique Cabo.

Nas ruas ou de casa, o jornalismo não para

Três jovens repórteres contam um pouco da sua rotina e suas expectativas sobre o cenário atual para a profissão

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12 min readJun 18, 2020

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Escreveram Fábia S Oliveira, Lucas de Andrade e Pedro Henrique Cabo.

Mesmo durante a pandemia, alguns profissionais não puderam parar e viram o volume de trabalho aumentar. Os entregadores de aplicativos que você usa estão a postos para um novo pedido. A todo instante, recebem notificações de uma nova entrega a ser feita. E o que seriam de nossas ruas sem os coletores de lixo? Responsáveis pela limpeza urbana, eles asseguram a manutenção da ordem sanitária das cidades. Além desses trabalhadores, os jornalistas, que também desempenham um papel fundamental para a sociedade, mantêm suas rotinas de trabalho. Porém, alguns puderam se adaptar ao home office.

Conversamos com três jovens que, de suas casas, constroem novas narrativas para o jornalismo brasileiro. Jefferson Barbosa, Mayara Mangifeste e Euro Mascarenhas Filho falam sobre os desafios de ser comunicador em locais como a Baixada e as periferias do Rio e o quanto essas regiões, ricas em potencial, podem moldar seus perfis profissionais.

Uma voz da Baixada que interessa ao Brasil

Foto: Jefferson Barbosa/Reprodução.

“Todo o tempo em que estou acordado, trabalho. Compenso tentando dormir ao máximo, mas sempre sou interrompido por uma reunião virtual ou uma missão logo cedo.”— Jefferson Barbosa, em texto para a revista Gama.

Aos 22 anos, Jefferson Barbosa impressiona com a quantidade de projetos em que já se envolveu. Atua no jornalismo desde 2013, mesmo antes da maioridade e formação acadêmica. É morador da Baixada há 15 anos, mas nasceu na Paraíba. Enquanto trabalha de casa, deixa o livro de cordel “A Paraíba, de Filipéia à João Pessoa” na mesa, para ler sempre que deseja fugir da correria imposta pelo home office.

À frente do Voz da Baixada há 7 anos, assumiu um novo desafio mais recentemente. O PerifaConnection, cuja descrição enfatiza uma disputa sobre a narrativa de periferias, trata-se de um coletivo que fundou com outros jovens dessas mesmas regiões no Rio de Janeiro. Após breve passagem pela Carta Capital, chegou à Folha de S. Paulo em janeiro e, semanalmente, às quintas-feiras, textos dos integrantes são publicados em formato de coluna no jornal. Ocasionalmente, há ainda um espaço no podcast Mamilos onde o coletivo dialoga com os temas trazidos pela edição do programa.

O jovem repórter ainda produz outros textos como freelancer: “São textos que eu tenho um pouco mais de tempo porque não são tão factuais e aí eu mando para alguns veículos. Agora, eu estou escrevendo um para a revista de ensaios chamada Serrote, com uma pegada de jornalismo mais literário, pois parte muito das vivências que eu tenho vivenciado no contexto da Covid-19”. Em “Aperreio, plantas, samba e fé”, para a Revista Gama, narrou suas primeiras impressões sobre a pandemia somadas ao senso de pertencimento que vem de suas raízes nordestinas, de sua negritude e pela concepção territorial da Baixada como seu lugar desde que passou a morar na região.

“Esse sentimento de pertencimento precisa ser vitaminado, precisa ser construído, precisa ser investigado até”.

No enfrentamento à crise do coronavírus, Jefferson partiu para o “corre”. Seu coletivo uniu-se a movimentos sociais como a ONG Criola, o Instituto Marielle Franco e o Movimenta Caxias. A iniciativa “Agora é a Hora” tem o objetivo de “garantir a segurança alimentar e ao mesmo tempo o acesso à política pública de renda emergencial” e já ajudou mais de 8.000 mulheres negras da região metropolitana do Rio de Janeiro e suas famílias.

Jefferson confessa que todas essas atividades, somadas à faculdade que ainda não concluiu, geram ansiedade. Apesar de estar em casa, e sair apenas eventualmente para ajudar a quem precisa, dispõe de pouco tempo de lazer com a sua família. Conciliar tudo isso tem sido um grande desafio. “Rotina é algo muito difícil. Pessoalmente, tenho a impressão de que a gente está trabalhando mais, tanto com o jornalismo, como em outras coisas. O volume de trabalho aumentou muito”, conta.

Mas trajetórias como a sua são indispensáveis para uma constante renovação na mídia. Jefferson vê com otimismo um futuro para grupos como o seu coletivo e diz que o local ocupado hoje pelo PerifaConnection se tornou essencial para os jornais tradicionais. “Eu acho que ele vai demorar a deixar de fazer sentido. São vozes como as nossas que pautam muita coisa do futuro e acho que isso não tem volta, sabe? É sobre a gente protagonizar esses espaços, ocupá-los”.

A tecnologia a serviço dos dados de segurança pública

Foto: Mayara Mangifeste/Reprodução.

Muito organizada, acorda às 9h e fica 45 minutos sem mexer no celular. Nesse tempo, lava o rosto, bebe um copo d’água, faz uma meditação diária por aplicativo. Depois, toma o seu café da manhã bem calma à luz do sol na varanda, se exercita, parte para o banho e se sente pronta para o plantão às 11h. “Parece assim a vida perfeita, mas não. Tem dia que isso não funciona.” Esse é o novo dia-a-dia de Mayara Mangifeste, que já trabalha remotamente há 2 anos para o laboratório de dados Fogo Cruzado.

Ela avalia que a plataforma trouxe um impacto positivo para a cobertura jornalística sobre segurança pública, por causa da transparência dos dados que disponibiliza. Devido à pandemia do coronavírus, o Fogo Cruzado começou a produzir relatórios que correlacionam informações sobre a violência ao período da quarentena para demonstrar o impacto trazido pela Covid-19 na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Mayara tem especialidade em veículos digitais. Ela acredita que esses novos meios aproximam o público leitor e ao mesmo tempo aprimoram o fazer jornalístico. “Eles ajudam na cobertura jornalística em relação ao acesso a uma certa quantidade de informação quase instantaneamente e de forma até mais íntima”. Entretanto, pondera: “Tenho que fazer os recortes sociais porque eu ainda acredito que não é todo mundo que tem acesso. Então, eu acho complicado generalizar”.

Matérias como “Baixada Fluminense em tempos de coronavírus”, veiculada no Corre Mídia, é um dos exemplos de seu portfólio. A partir de dados obtidos pelo Fogo Cruzado, elaborou, em conjunto, a reportagem “Começou a temporada de matar políticos na Baixada Fluminense”, publicada pelo The Intercept Brasil. Nela, constrói uma retrospectiva dos casos de assassinatos de políticos da Baixada Fluminense nos últimos 4 anos.

Ela considera que nem mesmo a pandemia atrapalha os planos de grupos de extermínio em conseguir sucesso nas próximas eleições municipais. “Existem casos e casos. Grande parte dos políticos baleados, feridos ou mortos simbolizavam algum tipo de conflito já existente. Eu acredito que a pandemia não impediria um futuro a esses grupos e outros possíveis acertos de contas”, opina.

A independência da comunicação popular

Foto: Euro Mascarenhas Filho/Reprodução.

Nascido no município de Mesquita, Euro Mascarenhas Filho mantém seu ritmo de trabalho, agora em casa, no centro do Rio. Embora diga que em nada o home office substitui o contato e as sensações de apurar, entrevistar e produzir nas ruas, admite que trabalhar remotamente eleva o nível de exigência e precisão às matérias que faz. Repórter do Diário da Pandemia na Periferia e apresentador do programa Quintas Resistentes, ambos do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), Euro vê na cobertura que realiza hoje o maior desafio de sua carreira até o momento.

“Você primeiro olha dados de contaminação oficiais, cruza com falas de moradores locais, pessoas que são lideranças. O desafio está na apuração em si para conseguir realizar uma reportagem remota, que colha depoimentos, fontes que vão fazer com que você tenha o máximo de precisão”, relata. Perguntado sobre como separar o que consome como leitor e o olhar que precisa ter como repórter, Euro diz selecionar veículos de comunicação que considera confiáveis para se manter informado. Assim, não se perde com o alto fluxo de informações e também não se assusta com “urgências”, que analisa com cautela.

“Tudo que é tratado com esse peso de notícia-bomba será que é tão bombástico assim? Muitas vezes são certos desdobramentos de algo que aconteceu lá atrás ou uma exploração de um fato sendo transformado em coisa extraordinária”, justifica. O repórter diz se manter focado no que realmente quer saber, procura por análises de assuntos que lhe interessam e encontrou uma maneira de filtrar temas que gostaria de desenvolver com maior profundidade em suas matérias. “Às vezes, esses acontecimentos são reflexos de um mesmo fenômeno que precisam ser mais bem pautados, mais bem reportados e investigados pela imprensa”, conclui.

Euro acredita que seria complicado elaborar os temas que mais o interessam, como a matéria “Jacarezinho: a luta contra o Covid-19 na favela com um dos piores índices sociais”, num veículo de mídia tradicional. “Eu acho que para emplacar uma ideia seria um pouco mais difícil, por ser um jornalista novo também”, diz. A liberdade, a troca e o senso colaborativo com que hoje pode desenvolver suas matérias no NPC são muito importantes para o jornalista.

A pandemia e o pandemônio

Foto: Antônio Cruz / ABR

Até se fala em outras coisas, mas, desde a notificação do primeiro caso de coronavírus no país, em fevereiro, e a implementação das medidas de distanciamento social, na segunda quinzena de março, a imprensa dedica grande parte de sua cobertura à pandemia do coronavírus. Entretanto, profissionais da área de comunicação debatem sobre a qualidade do conteúdo apresentado. Soma-se a isso a crise institucional provocada pelo governo de Jair Bolsonaro, que também não poupa trabalho da imprensa de ataques diários.

Jefferson observa que a cobertura da mídia atualmente tem sido muito intensa. Para ele, há uma disputa entre a mídia hegemônica e o governo Bolsonaro nas informações, dados e estudos sobre o novo coronavírus, que forçou ainda mais a tensão entre eles. Ele entende também que o jornalismo não pode se pautar somente pelas narrativas autoritárias desse governo. “A sociedade democrática tem o desafio de ter uma narrativa paralela. Ter uma narrativa nossa! Impor o que importa pra gente”, completa.

Para analisar o impacto do coronavírus na cobertura da mídia, Mayara afirma que primeiramente precisa definir dentre os veículos hegemônicos quais não fazem papel de assessoria de comunicação do governo. Prática que ela condena e vê nisso uma contribuição para a desinformação. “Levando em consideração os veículos restantes que considero como fontes confiáveis, acho que estão fazendo um trabalho muito bom na cobertura”, opina. Ela faz uma ressalva de que não faz o papel de tiete da grande mídia, mas acredita que o principal trabalho de informar está sendo cumprido. Porém, se preocupa com o excesso de notícias em torno do mesmo tema.

Em relação ao presidente, ela não hesita em afirmar que, se o cargo não estivesse ocupado por um genocida, estaríamos em um outro caminho. Ela lamenta o poder de influência do presidente sobre os estados e municípios: “Eu moro em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e o prefeito daqui estava indo muito bem com as restrições. Mas, de uns dias pra cá, já estava flexibilizando, porque ele estava seguindo o governador do Rio. O mesmo que, no início, estava batendo de frente com o presidente, mas, dias depois, também quis abrir um negócio ou outro”.

Para Euro, a crise do coronavírus fez o grande público valorizar a mídia tradicional. Porém, vê com preocupação a cobertura sobre as consequências do vírus nas favelas quando ocorre uma tentativa de romantizar como as comunidades se organizam em redes de solidariedade. Ele argumenta que o verdadeiro problema se perde quando o jornalismo acaba “escondendo a ausência de serviços públicos, escondendo que você tem ali um vácuo de poder em que os moradores acabam assumindo uma ‘bronca’ que não deveria ser deles”.

Recentemente, veículos como O Globo e a Folha de S. Paulo anunciaram que deixariam de cobrir o dia-a-dia do Palácio da Alvorada no “cercadinho” por falta de segurança. Euro, porém, considera a decisão insuficiente caso a imprensa continue a destacar as declarações do presidente e de outros integrantes do governo sem explicar o absurdo que representam: ‘“Ah, Bolsonaro diz que a terra é plana!”, a gente sabe que não. Do jeito que você enfatiza isso, não quer dizer nada. Você contribui para espalhar notícia falsa, faz confusão na cabeça das pessoas. Nem tudo que eles dizem é interessante, nem vale ser manchetado. Há muitos erros na condução”.

A urgência por uma imprensa antirracista

Foto: Naldinho Lourenço

O assassinato de George Floyd, homem negro, pelo policial branco Derek Chauvin, da corporação da cidade de Minneapolis, nos EUA, reacendeu o debate sobre o racismo sistêmico e a violência policial em todo o mundo. No Brasil, houve protestos com a tradução literal do movimento Black Lives Matter: Vidas Negras Importam. A cobertura da mídia hegemônica foi criticada. Além de trazer poucos repórteres e debatedores negros à discussão, houve declarações racistas feitas por apresentadores brancos de canais de notícias 24 horas.

Jefferson avalia os reflexos das manifestações antirracistas nos Estados Unidos de maneira positiva para o jornalismo nacional, já que se tornou inevitável não falar também da realidade da população preta brasileira, um tema historicamente negligenciado pela imprensa. Além disso, a repercussão “forçou” uma cobertura da mídia com mais representatividade de pessoas pretas. “Eu, que participo do movimento negro, posso dizer que a percepção que a gente tem é que o racismo nunca foi tão discutido como agora. Ainda que seja por reflexo dos Estados Unidos, a gente nunca teve esse debate tão à tona”.

O desafio agora é como o debate racial se fixa às narrativas da mídia. Dar continuidade ao espaço, que não é suficiente, às pessoas pretas, não só na equipe de repórteres, mas também comentaristas, apresentadores e tantos outros profissionais que constroem e constituem os veículos midiáticos, é um dos caminhos indicados pelo jornalista. “Cada preto a mais seja um tijolo a menos dessa barreira do racismo nessa mídia hegemônica. Eu acho que nós somos parte de um processo. Precisamos conseguir irrigar mais, conseguir ter mais penetração no corpo dos repórteres e em outros veículos, mas eu acho que sim cumprimos o papel”, completa.

Euro destaca dois maus exemplos. Durante uma cobertura ao vivo, a jornalista Leila Sterenberg, da Globo News, insinuou que um manifestante negro foi preso pela polícia porque seria um “batedor de carteira”. A jornalista achou conveniente especular o que teria feito o rapaz, mesmo sem nenhum vídeo ou declaração da equipe de reportagem presente no local. “Quer dizer, ela não tem certeza do que está acontecendo. Ali claramente houve tensão devido à repressão em cima dos manifestantes, mas ela já julgou que um cara preto, sem camisa, era batedor de carteira”, diz.

Na recém-estreada CNN Brasil, chamou sua atenção a presença de William Waack, demitido da Rede Globo por um episódio de racismo em Washington, durante as eleições presidenciais americanas em 2016, para comentar sobre a eclosão dos protestos antirracistas no país após a morte de George Floyd. “É um contrassenso gigantesco do início ao fim. A gente vê o quanto a mídia hegemônica e tradicional é racista, o quanto existe essa discriminação racial dentro da nossa imprensa e como ela é parte desse motor”, conclui.

O que será o amanhã?

Crédito: Associação Riograndense de Imprensa (ARI)

Sobre o futuro do jornalismo, Jefferson diz não encontrar respostas fáceis. Para ele, a inovação em acessibilidade, formatos e maior proximidade com o grande público são os principais passos que devem ser dados em direção a uma comunicação mais democrática. Deseja que o jornalismo comunitário, sua principal área de atuação, não seja visto apenas como um serviço básico de informação, mas que seja mais valorizado por ser “o jornalismo mais próximo das pessoas, mais cotidiano, mais integrado à simplicidade e à vida real”.

Mayara expressa temor em relação aos próximos anos. Ao mesmo tempo em que reconhece aprimoramentos da profissão trazidos pela tecnologia, confessa uma angústia existente durante e após a era Bolsonaro: “Eu acredito que ele é o inimigo direto da imprensa”. Ela acredita que a melhor forma de combate é o aperfeiçoamento constante do jornalismo: “Quando nos formamos, fazemos um juramento do compromisso com a verdade. Nós temos que usar esse poder. Pode ser entre amigos ou familiares, ou no site que você escreve. É usar esse ‘privilégio’ — que não deveria ser um privilégio, mas um direito — para fazer diferença. Eu acho que precisamos continuar trabalhando, de forma transparente, se desconstruindo e aprendendo. Sempre contra o sistema político opressor que vem de cima para baixo”.

Embora veja um fortalecimento da imprensa em todos os meios, Euro não vê chances de haver uma autocrítica da classe jornalística que, segundo ele, seria necessária para avaliar como o Brasil caminhou à atual direção. “Óbvio que há vários outros agentes culpados por isso, mas muita gente que fala para o grande público tem essa responsabilidade. As decisões editoriais têm responsabilidade nisso também”.

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Um coletivo de jovens da Baixada e da ZO em busca de boas histórias.