Fotos 1 e 2: União Coletiva pela Zona Oeste/Reprodução | Foto 3: Instituto Enraizados/Reprodução | Colagem: Pedro Henrique Cabo.

"Aqui é nós pelos nossos”

Jovens formam coletivos para frear a pandemia do coronavírus nas favelas do Rio.

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8 min readMay 7, 2020

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Escreveram Fábia S Oliveira , Isabelle de Oliveira e Thallys Braga

Manhã do dia 25 de março, sábado, um carro de som desfila sobre as ruas tortuosas das periferias de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, onde o sol é mais quente que em qualquer outro ponto da cidade. A picape vermelha percorre oito bairros da região, cruza com aglomerações e atrai ouvintes para anunciar a chegada de um novo inimigo comum: o novo coronavírus. “Acredite: a situação é muito grave e pode matar milhares de pessoas, principalmente em periferias como as nossas. Esse vírus mata. Não é só uma gripezinha”, alerta a voz feminina em alto e bom som.

Desde que a COVID-19 desembarcou no Rio, jovens começaram a se mobilizar para tentar frear os efeitos da pandemia nas periferias. Com a desigualdade social no acesso ao sistema de saúde, na falta de saneamento básico e condições precárias de moradia, as comunidades se tornaram rapidamente mais vulneráveis à doença. Para proteger a saúde e a integridade de vizinhos e familiares, novos coletivos ocuparam as periferias da Zona Oeste e da Baixada Fluminense. Naquele sábado de sol, o megafone também anunciou uma segunda mensagem: agora é nós pelos nossos.

Juntos pela Zona Oeste

No extremo esquerdo do mapa carioca, oito coletivos de Paciência, Santa Cruz e Sepetiba se juntaram para criar a União Coletiva pela Zona Oeste. Cada um desses grupos iniciou campanhas de conscientização para alertar suas comunidades sobre a doença que aos poucos chegava à Zona Oeste carioca. As inciativas estavam ganhando força quando o governador Wilson Witzel decretou as primeiras medidas de isolamento social do Rio, em 13 de março. As crianças ficaram longe dos refeitórios escolares, o movimento nas ruas reduziu para trabalhadores informais e o auxílio emergencial não tinha nem previsão de quando seria aprovado. As geladeiras e as despensas esvaziaram e a União Coletiva se deparou com um novo desafio: a fome.

O grupo atua em dez comunidades: Conjunto Cesarão, Ocupação Jesuítas, Favela do Aço, Urucânia, Complexo João XXIII, Nova Sepetiba, Portelinha , Conjunto Santa Veridiana, Favela do Rolas e Antares. Nos bairros em que há dados disponíveis para consulta, a taxa de pessoas vulneráveis à pobreza é maior que a média nacional. Os números são do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil.

Os números escancaram a realidade, mas não surpreendem quem cresceu nas ruas de Santa Cruz. “A gente conhece essas famílias, tomamos café nas casas delas. Às vezes compartilhamos dos mesmos problemas. O trabalho é de nós para os nossos”, conta Wanessa Afonso, estudante de 24 anos que integra a União. Esses laços foram fundamentais para a continuidade do trabalho. Os coletivos realizaram um mapeamento com as famílias em situação de vulnerabilidade social a partir dos dados que já tinham. A Plataforma Casa, por exemplo, tem cadastros de crianças da Favela do Aço; o Coletivo Martha Trindade trabalha com moradores e pescadores que foram afetados pelo vazamento de uma companhia siderúrgica em 2010. O boca-a-boca também ajudou: “A gente foi perguntando: ‘Olha, você sabe alguém que tá precisando de alguma ajuda?’, e as pessoas iam indicando”, contou Wanessa. Até o final de março, o mapa já reunia 2.000 famílias e 1.097 delas tiveram as despensas abastecidas.

De onde chega a ajuda

Antes de montar e distribuir as cestas básicas, com alimentos e itens de higiene pessoal, o grupo precisou buscar uma rede de colaboradores dispostos a financiar o projeto e realizaram uma campanha de arrecadação na internet. “Nossa estratégia é acompanhar como prioridade as famílias que por diversas razões não conseguiram apoio emergencial do governo”, diz a página da campanha. O apoio continua chegando de pessoas físicas e ONGs, mas nenhum dinheiro tem saído dos cofres públicos. A União Coletiva preferiu não recorrer ao governo porque, segundo a organização, “naturalmente, a região já é negligenciada e, no cenário da pandemia, a tendência seria piorar”.

A Prefeitura do Rio não embarcou nos trens do Ramal Santa Cruz — nem em ônibus, vans ou carros — para frear a crise na ZO. A Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH) encomendou 20 mil cestas básicas, que começaram a ser distribuídas no dia 25 de março para famílias vulneráveias, mas nenhuma chegou às periferias mais pobres de Paciência, Santa Cruz ou Sepetiba. A Companhia Municipal de Limpeza Urbana (COMLURB), que tem higienizado as principais vias de acesso às favelas da cidade, só apareceu uma vez, no Antares. A ajuda da Prefeitura tem chegado apenas com os Cartões Cesta Básica, que disponibilizam R$100,00 para as famílias de alunos da rede municipal de ensino. Mas o auxílio não beneficia todos os moradores: as mães que têm crianças de colo e que estão fora das escolas, por exemplo, não recebem. No CREAS de Sepetiba, os funcionários distribuem kits de higiene pessoal e fazem orientações sobre os cadastros para solicitar o auxílio emergencial disponibilizado pelo Governo Federal.

Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos afirmou que “as equipes fazem diariamente abordagens sociais na região ofertando acolhimento, encaminhamento para retirada de documentos, para tratamento de saúde, entre outras ações”. A Prefeitura não comentou sobre as cestas básicas.

A negligência das autoridades provoca um efeito colateral que pode agravar a pandemia: sem fiscalização ou campanhas intensificadas de conscientização, alguns moradores têm demorado a adotar as medidas de isolamento social. Santa Cruz é um dos bairros com mais casos de denúncias no ‘Disk Aglomeração’, segundo levantamento do Centro de Operações Rio (COR). Ainda assim, há noites em que o pagode e o funk tocam nos bailes até o amanhecer. A atuação da milícia na região, com a organização de eventos e o incentivo à abertura dos comércios, também torna mais difícil o controle das multidões. Na última quinta-feira (06), o prefeito Marcelo Crivella disse que pode determinar a qualquer momento o lockdown em bairros da Zona Oeste, incluindo Santa Cruz.

Para manter as comunidades em alerta, os coletivos investem nas conversas durante as doações nas ruas e faz postagens diárias nas redes sociais. No Cesarão, os pequenos ganharam uma campanha própria: o Criança Contra o Corona. Professores, jovens lideranças e coletivos da comunidade Cesarão têm recebido doações para confeccionar máscaras e comprar sabonetes para manter os menores protegidos. “É uma campanha feita por amigos, jovens da comunidade, para deixar nossa geração segura”, conta Kawan Lopes, criador da ação e membro da União Coletiva.

Foto: Kawan Lopes/Coletivo Nós
Foto: Kawan Lopes/Coletivo Nós

Mas o que fez os moradores das comunidades acreditarem de vez no perigo da pandemia foi a morte de familiares e vizinhos. Wanessa explica: “Falar para uma pessoa inserida em um contexto de tiroteio e fome que vai chegar uma doença contagiosa e fatal não causa o mesmo impacto causado nas pessoas privilegiadas. A gente fala: ‘Olha, diminui o risco se você lavar as mãos’, mas elas continuam ameaçadas por outros problemas sociais. O entendimento só chegou quando os nossos começaram a morrer”.

A escalada dos números ameaça a saúde da equipe e a continuidade do trabalho da União Coletiva. Até o fechamento da matéria, a taxa de letalidade do Coronavírus era três vezes maior em Paciência, Santa Cruz e Sepetiba que em Copacabana, bairro que lidera o número de casos na cidade.

O hip-hop unido por Morro Agudo

“Teve gente que recebeu a cesta e agradeceu a situação atual, justamente por estar há muito tempo sem comer. Comentam: ‘Pelo menos esse vírus fez as pessoas olharem para gente que está precisando e estão podendo ajudar’. Quando surgiu essa oportunidade, eu aceitei logo de cara. O hip-hop é sobre solidariedade, é o que a gente prega através da arte”, revela Luiz Gustavo Oguano, conhecido como Baltar, 25 anos.

O jovem integra o Instituto Enraizados, uma organização que conecta as pessoas através da arte, da cultura e busca reduzir as desigualdades sociais. Os artistas de hip-hop da instituição criaram o coletivo “Solidariedade BXD” para realizar ações de solidariedade em Nova Iguaçu, em bairros como Morro Agudo e arredores. Recentemente, o grupo se juntou à campanha “Rio Contra Corona”. Conduzida por Instituto Phi, Banco da Providência e Instituto Ekloss, com articulação do movimento União Rio, a iniciativa tem o objetivo de reduzir os impactos da crise através da distribuição de cestas básicas e kits de higiene pessoal às famílias em situação de maior vulnerabilidade.

Foto: Instituto Enraizados/Reprodução

Dudu de Morro Agudo, diretor-executivo do Instituto Enraizados, explica que, no primeiro momento, a iniciativa surgiu com a necessidade dos artistas do instituto, já que muitos perderam suas principais fontes de renda com as medidas de isolamento social. O organizador entrou em contato com amigos e ficou surpreso com o grande retorno. “Eu tentei conseguir uma média de 30 cestas básicas e consegui logo de primeira 300, e daí eu falei ‘vou doar para os amigos dos amigos do Enraizados, as pessoas mais próximas da instituição’”, conta.

Para evitar aglomerações no Instituto durante o mapeamento das famílias, os integrantes do coletivo resolveram criar um site que possibilita o cadastramento online. O foco são os artistas de rua e pessoas em vulnerabilidade econômica e social. As ações contam com carros, voluntários e pontos de coleta. Até agora, 1.300 cestas básicas já foram entregues e mais 1.000 estão na fila de espera.

O coronavírus intensificou, mas não foi o único causador da crise social que atinge Morro Agudo. Durante as ações, os integrantes do projeto se aproximaram de realidades extremas. “Quando se diz vulnerabilidade social, a gente imagina uma série de coisas. Mas eu presenciei, eu vi uma pobreza muito aguda e alguns casos de miséria aqui no meu bairro”, conta Dudu.

Por meio das redes sociais, o grupo republica e comenta as ações e pronunciamentos oficiais do prefeito do município diariamente. Para enfrentar a crise, a prefeitura começou a distribuir 65 mil cestas básicas para alunos da rede municipal desde 22 de abril, e já contemplou os bairros de Austin, Miguel Couto, Vila de Cava e Tinguá. Além disso, a prefeitura está entregando máscaras de pano, produzidas pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Espaço Municipal da Terceira Idade (ESMUTI) e órgãos ligados à Secretaria Municipal de Assistência Social (SEMAS). Segundo o site oficial da prefeitura, cerca de 400 máscaras já foram distribuídas e mais de 600 serão entregues à população.

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Um coletivo de jovens da Baixada e da ZO em busca de boas histórias.